Crítica Militante
A estreia de Cais ou da indiferença das embarcações, em 2012, teve ares de revelação. Debruçada sobre as gerações de uma mesma família, a peça veio evidenciar o cuidadoso trabalho da Velha Companhia e, sobretudo, chamar atenção para a escrita de Kiko Marques. Até então pouco conhecido, o dramaturgo surpreendia pela maneira como elegia o narrador da história, como emaranhava os pontos de vista, como entrelaçava morte e vida, memória e esquecimento. Em seu título mais recente, Sínthia, muitos dos traços presentes em Cais voltam a se manifestar. Especialmente, a capacidade de Marques de criar uma narrativa envolvente para o público.
Desde o século 20, a revolução do teatro – as mudanças e transformações que o colocaram em sintonia com as vanguardas artísticas – passa pelo drama. Ou, melhor dizendo, pela desconstrução do drama. Com Sínthia, algumas de suas convenções são postas de lado: os tempos se entrecruzam, não há linearidade, passado e presente convivem em uma mesma cena. Mas o gênero permanece como estrutura. Ainda que fragmentada, a narrativa se materializa cristalina diante do espectador. E dá provas de seu poder de mobilizá-lo.
Quando amarra ditadura à questão transgênero, ‘Sínthia’ está a eleger a identidade como foco. Quem somos – em sentido estrito e amplo. Qual imagem fazemos de nós
Ao longo de três horas, será apresentada a trajetória de uma família ao longo de três décadas. É por meio desse grupo de pessoas que o escritor será capaz de atar dois temas aparentemente sem conexão alguma: a ditadura militar no Brasil e a questão transgênero. Onde essas duas pontas se encontram?
Em 1968, Maria Aparecida espera um bebê. Tem certeza de que será uma menina. Mas é surpreendida com o nascimento de Vicente. Trata-se do seu quarto filho homem e seu marido, um militar, acaba de ser promovido a uma posição de destaque dentro da hierarquia dos quartéis. Muitos anos se passam. Ela se torna viúva, seus sonhos são postos de lado, até que, em uma noite de Natal, verá esse filho indesejado chegar vestido como a filha que nunca teve.
A sinopse da trama serve para apontar quais são os lugares em que a história do País se une a uma decisão tão íntima quanto a definição de identidade de gênero. Mas são muitos os movimentos tecidos por Marques para que essas temáticas, tão aparentemente desarticuladas, possam se imiscuir de forma imprevista.
Existe uma progressão no drama encenado, assim como um acirramento de tensões. Conforme são revelados os passos de Maria Aparecida quando jovem (Alejandra Sampaio), também se amplia o conhecimento que temos da personagem na maturidade (Denise Weinberg). O crescimento do bebê, cujo sexo ela supõe saber, faz-se acompanhar pela ascensão vertiginosa do marido (Henrique Schafer), cuja função ela julga conhecer. Suas suposições são a maneira de escapar à verdade, da violência da verdade.
Gradativamente, essa protagonista será confrontada com aquilo que tentou não ver. As manchas de sangue na farda do homem pacato que volta para casa se tornarão suas, quando ela estiver doente, sangrando – e tentando encobrir da família o que se passa. Os talheres domésticos, que podem emular o som dos instrumentos musicais, também emprestam incômoda materialidade às sessões de tortura apenas imaginadas. Os elementos usados no palco em formato circular não são muitos. Tudo está diante do público nessa espécie de arena. Cadeiras, uma maca, estantes de partitura serão manipuladas para ambientar diferentes situações.
O autor parece crer na possibilidade de reescrever a história. Quando fala dessa família, está, de certa forma, a expor a própria trajetória. No programa do espetáculo, conta que foi esperado como se fosse uma menina, Cíntia; que seu pai era oficial da PM carioca durante a ditadura militar; que cresceu em uma casa cercada pelo silêncio. O que vai à cena não tem aparência de pura recriação autobiográfica. Mas vem recoberto por essa vontade de encontrar um novo meio para se contar o vivido.
Além de escrever e dirigir, Marques também atua. Toma o lugar que seria seu por direito: filho de um militar e de uma dona de casa que sonhava com uma menina. Na peça, seu personagem não é um ator, mas um músico. Professor em uma universidade, atordoado com as contas a pagar, capaz de acreditar que uma obra de arte poderia redimir a sua própria história. Dizer o que não foi dito, demonstrar o que julga ser o mais importante diante dos passos que foram tomados: compaixão.
Alcançar a redenção por meio da criação artística não é exclusividade de Vicente, o personagem de Kiko Marques, mas aspecto já amplamente explorado pela literatura. Lembremo-nos de Antoine Roquetin, o protagonista sartreano de A náusea. Essa não é, contudo, uma proposição a ser sustentada com facilidade e, nesse ponto, a dramaturgia demonstra certas fragilidades. Os diálogos entre o artista/professor e seu pupilo deixam entrever certa ingenuidade – ou um achatamento das ideias que não faz jus às contradições e às complexidades expostas na obra. De maneira semelhante, o conflito de classes exposto entre mestre e aluno tem menos corpo que outros enfrentamentos.
Sua habilidade como diretor em criar cenas – e em instaurar mundos com elas – abre espaço, especialmente, para o trabalho de composição das duas intérpretes de Maria Aparecida. A substituição da doçura pela rudeza, o endurecimento paulatino dessa matriarca que tanto valorizava o feminino e acabou, ironicamente, se masculinizando. Quando amarra ditadura à questão transgênero, Sínthia está a eleger a identidade como foco. Quem somos – em sentido estrito e amplo. Qual imagem fazemos de nós. Aqui, feminino e masculino são discutidos para além dos gêneros. Mas como movimentos, como formas de ver o mundo.
O fôlego do título manifesta-se em sua amplitude de questões assim como no escopo do tempo a ser retratado. Em tempos de descontinuidade, sagas familiares não mais merecem o espaço que tinham antes. Com sua opção (já manifesta em Cais), Marques se aproxima de uma nobre linhagem de dramaturgos do século 20, como o brasileiro Jorge Andrade e os norte-americanos Tennessee Williams e Eugene O’Neill. Todos com olhos voltados para clãs colapsados e utilizando largas doses de suas histórias pessoais para erigir tais composições.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Serviço:
Sínthia
Onde: Espaço dos Fofos (Rua Adoniran Barbosa, 151, Bela Vista, São Paulo, tel. 11 3101-6640)
Quando: segunda temporada prevista para 22/10 a 13/11, em dias e horários a definir
Quanto: a definir
Encontro com o Espectador: O espetáculo Sínthia mobiliza o quarto diálogo entre público, artistas e críticos na segunda-feira, dia 26/9, às 19h30, no Ágora Teatro (Rua Rui Barbosa, 664, Bela Vista, São Paulo). A ação deste Teatrojornal – Leituras de Cena acontece toda última segunda-feira do mês em parceria com o Ágora.
Ficha técnica:
Autoria e direção: Kiko Marques
Com: Denise Weinberg, Henrique Schafer, Alejandra Sampaio, Virgínia Buckowski, Kiko Marques, Marcelo Diaz, Willians Mezzacapa, Marcelo Marothy e Valmir Sant’anna
Diretora de produção: Patricia Gordo
Cenografia: Chris Aizner
Desenho de luz: Marisa Bentivegna
Figurinos: Fábio Namatame
Direção musical e trilha original: Tadeu Mallaman
Preparação e desenho de movimento: Fabrício Licursi
Consultora vocal: Fernanda Maia
Assistente de direção: Mateus Menezes
Consultor histórico: Ricardo Cardoso
Consultor artístico: Bruno Meneguetti
Assistente no processo dramatúrgico: Cristina Cavalcanti
Colaboradores do processo dramatúrgico: Marcelo Laham e Maurício de Barros
Fotografia: Lenise Pinheiro
Assessoria de imprensa: Morente Forte
Design gráfico: Fabrício Santos
Assistente de produção: Lívia Ziotti
Diretor de palco: Fábio Mráz
Assistente de figurino: Juliano Lopes
Assistente de iluminação e operador de Luz: Jean Marcel
Operadora de som: Carol Andrade
Cenotécnico: Mateus Fiorentino
Quarteto de cordas: violino (Mica Marcondes), violino (Alice Bevilaqua), viola (Elisa Monteiro) e cello (Vana Bock)
Técnico de gravação e mixagem: Gabriel Spazziani
Produtor técnico do estúdio: Ricardo Martins
Piano: Jonas Dantas
Consultoria musical: Fernando Martin
Palestrantes da pesquisa: Jo Clifford, Marcos Napolitano, Maurício Cardoso, Amelinha Teles, Mariana Rosell, Cecília Heredia e Ricardo Cardoso
Produção geral: Velha Companhia
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.