Menu

Crítica Militante

As ideias em movimento de Kazuo Ohno

4.10.2016  |  por Dirce Waltrick do Amarante

Foto de capa: Kazuo Ohno Archive

É difícil definir a dança butô, que nasceu no Japão nos anos 1950 e recebeu influências do pensamento artístico ocidental e oriental, inclusive com forte trânsito pelo teatro.  Defini-la, como afirma a estudiosa Maura Baiocchi, talvez seja uma preocupação dos ocidentais mais especificamente. A palavra butô em japonês é formada por dois ideogramas: bu (dança) e to (passo). Mas há outras variáveis da palavra, segundo Baiocchi, podendo-se, por exemplo, interpretar bu como mãos e to como pés, ou bu como movimentos etéreos e to como gestos contraditórios e concretos.

Para Kazuo Ohno (1906 -2010), um dos pais do butô ao lado de Tatsumi Hijikata, pés e mãos são essenciais para a sua dança, pois, conforme se lê no recém-lançado Treino e(m) poema, que contém 154 aforismos do dançarino, originalmente transcritos de gravações em fitas cassete ao longo de diversos workshops promovidos por Ohno em seu estúdio no Japão, “as mãos são feitas para falar com eloquência, como se quisessem expressar nossos sentimentos. Mas os pés não falam tanto quanto as mãos, porque eles ancoram a vida. Será que não é por isso que o butô existe?”

Ohno definia a sua dança sempre de forma metafórica, por isso o leitor não encontrará no livro ‘Treino e(m) poema’ conceitos claros e diretos sobre o que é o butô

Mas os olhos também dançam, é preciso ficar atento: “Cuide bem de seus olhos, existem danças assim, só de olhos. Veja bem, há todo um mundo que é apenas deles”.

O fato é que a arte de Ohno parece ser feita, segundo suas declarações, de pequenos movimentos cheios de energia: “Quando vejo uma dança assim, não precisa de um movimento grande, pode ficar de pé, fazer somente um pequeno movimento – ah, que lindo!”

O mestre japonês afirmava, em seu discurso truncado, mantido assim na tradução de Tae Suzuki, que o dançarino precisa encontrar algo que está dentro dele e atingir o espectador; para tanto, é preciso ir além da técnica: “Se não está dentro de você, então não reverbera – mesmo que você tenha técnica, mesmo que seja grande o seu esforço”. E prossegue: “é mais importante comunicar sem fazer nada do que comunicar com um grito”.

Treino e(m) poema reúne 154 aforismos de OhnoKazuo Ohno Archive

Treino e(m) poema reúne 154 aforismos de Ohno

Treino e(m) poema nos apresenta o dançarino como professor, ou melhor, artesão, como ele gostava de ser chamado, e cristão batista convertido; por isso, o leitor verá muitas menções, nos seus ensinamentos, a Jesus e Maria, a Deus e à Bíblia.

Como professor, Ohno dizia não ter nada a ensinar. Em suas aulas divagava e se questionava numa linguagem repetitiva e muitas vezes sem sentido, mas bastante poética: “[…] é preciso refletir o que é reality. Só fazer a expressão assim, a borboleta que sobe as costelas assim, é uma escada então vou assim, a borboleta, assim e assim, isso não é reality”. Ohno definia a sua dança sempre de forma metafórica, por isso o leitor não encontrará no livro conceitos claros e diretos sobre o que é o butô.

No discurso de Ohno, percebe-se também o importante diálogo do butô com os bichos (a borboleta é só um deles) e com os mortos: “eu acho que a dança é um fantasma. Precisa ser um fantasma. Parece ter forma, parece não ter, não tem, sua forma.  Dentro de mim vivem aves, vivem animais, tudo vive. É preciso ser um fantasma […]. Em suma, treinamos para ser fantasmas”.

Por fim, no butô do artesão japonês, o nascimento e a loucura estariam lado a lado, comungariam a irracionalidade e a liberdade sem restrições: “o movimento do feto no útero materno era um mundo sem restrições. O mundo que você busca é como aquele útero materno, isto é, pura loucura. É um mundo inimaginável para um homem vivo”.

As ideias e as palavras como que dançam feito as imagens do livroHideko Yoshikawa

As ideias e as palavras como que dançam feito as imagens do livro

O que se percebe, na leitura de Treino e(m) poema, é que as ideias e as palavras de Ohno dançam, às vezes em movimentos circulares, como num ritual, e suas frases e ideias podem ser tão imprecisas e poéticas quanto os movimentos etéreos do butô, o qual não deveria necessariamente ser entendido. Para ele, mais importante do que entender era sentir, se emocionar: “[..] de vez em quando, depois que eu danço, vêm me dizer, ‘mestre, eu entendi, entendi sua dança’. Entendeu o quê? Fico um pouco decepcionado quando me dizem isso. Fico mais feliz quando me dizem que não entenderam o que eu estou dançando, que me digam, ‘não entendi, mas me emocionei’”. Segundo o mestre japonês, deve-se dançar também porque “não se entende. Dançar até onde puder, com todo o empenho. Cannot understand, tudo bem. Não se preocupem, façam”.

Os fragmentos reunidos em Treino e(m) poema datam de três diferentes períodos que abarcam os anos anteriores a 1977 e seguem de forma descontinuada até 1996, como se lê na apresentação de Toshio Mizota. O livro da n-1 edições – que vem se destacando pelo catálogo conceitual – conta também com um prefácio de Lígia Verdi e um posfácio de Éden Peretta, além de belíssimas fotos do dançarino. Por tudo isso, a obra resulta essencial para quem deseja conhecer Ohno.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

ohno-capa-1

Serviço:
Treino e(m) poema (256 páginas, R$ 68)
Autor: Kazuo Ohono
Tradução: Tae Suzuki
Editora: n-1 edições (2016)

Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.

Relacionados

Esparrela (2009), atuação, direção e texto de Fernando Teixeira, artista paraibano que lança a autobiografia ‘Trás ontonte’
Gravura de Lerrouge e Bernard a partir do artista francês Jacques Etienne Arago (1790-1854) mostra o movimento de pessoas e o Teatro São João no Rio de Janeiro, sob regime imperial, então principal sala do século 19 no país; detalhe da imagem estampa a capa do livro ‘Teatro e escravidão no Brasil’, de João Roberto Faria