Crítica Militante
2.11.2016 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Lenise Pinheiro
Assistir a Homens nas cidades é deparar-se com um mundo em que o feminino não existe. Não são apenas as mulheres que estão de fora dessa peça escrita pelo britânico Chris Goode. É todo um modo de existir no mundo – e de ser – masculino que se descortina quando o espetáculo se inicia. Sob a direção de Francisco Medeiros, Laerte Mello interpreta o monólogo no qual toma o papel de um narrador e passeia por situações diversas.
São homens de diferentes idades e profissões – em situações distintas. Mas são todos homens. Seres que quando pensam, sonham ou falam se referem sempre a outros homens – seus filhos, seus pais, seus namorados. O que se coloca, porém, foge aos limites das questões de gênero, tão em voga. Não se trata de uma contraposição às visões feministas, nem do reverso dos discursos afirmativos. O que estamos a vislumbrar é uma mirada específica do mundo. Uma mirada – em essência e por princípio – política.
Os recursos da encenação de Francisco Medeiros são mínimos, o que não invalida a sua opção clara e contundente pela palavra na atuação de Laerte Mello
Esse texto, que estreou em julho de 2014 no Fringe, do Festival de Edimburgo, foi escrito pelo próprio ator. Ou interpretado pelo próprio escritor. É uma voz assumidamente autoral que se coloca em cena. A falar das hesitações de Goode na hora da escrita, da sensação de onipotência que vive como criador, das muitas crises e conflitos vividos por seus personagens. A entremear tudo isso, um estranho pano de fundo, em que entram ataques terroristas, aviões desaparecidos e discursos do ex-primeiro ministro britânico David Cameron.
Na cena inicial, uma projeção mostra o depoimento de Michael Adebolajo. Em maio de 2013, esse britânico muçulmano assassinou um soldado. Justificou o crime falando dos ataques do exército de seu país aos países muçulmanos. Atropelou o soldado. Depois, tentou decapitá-lo com um cutelo. E, enquanto o corpo jazia na rua e ele esperava pela chegada da polícia, gravou esse depoimento – à época, amplamente reproduzido pelas redes de TV.
Escolher esse vídeo como prólogo do espetáculo é ofertar ao espectador pistas do universo que será delineado a seguir. Universo que não se restringe ao terror, suas motivações suas justificativas. Mas um campo em que a violência é uma potência. Onde a afeição ocupa um espaço secundário. Onde emoções são reprimidas. Onde o sexo não apenas permeia, mas dita as relações, como uma descomunal pulsão de vida e de morte.
Há uma força bruta e brutal em cada homem. Um menino assiste a um filme pornô no celular na manhã do seu aniversário de 10 anos. Um homem se mata tomando antidepressivos. Um pai e um filho estão sozinhos em uma cozinha, mas incapazes de realmente falar um com o outro. Parece haver certa parcialidade no olhar do dramaturgo. Homens são e estão além do que Goode apresenta. Podem ser acolhedores, amorosos, protetores. Mas seu vínculo estreito com a realidade – o que o leva a convocar fatos históricos e datas – é justamente o que lhe permite escapar do realismo estrito. Falar mais do masculino do que de homens. Observar a carne de patologias sociais. Amalgamar sites de pornografia a decisões políticas; bandas de rock a sentenças de prisão perpétua. Sem criar relações de subordinação ou causalidade. Aumentando a complexidade. Sem oferecer explicações totalizadoras. Acreditando que há perguntas que nem sequer conseguimos formular.
Sua escrita vigorosa e pungente plasma as situações que são apresentadas. Existe uma convulsão controlada no texto de Goode, um prenúncio de destruição. Os recursos da encenação de Francisco Medeiros são mínimos. Há, pode-se deduzir, uma restrição imposta pela produção. O que não invalida a sua opção clara e contundente pela palavra. Sem recursos de ilusão, sem a proteção da caixa preta. Com uma luz imóvel e um cenário restrito a uma mesa e uma cadeira, Laerte Mello não interpreta propriamente todos os papéis mencionados. Antes, passeia por eles. Emula alguns timbres de voz, mas sem a pretensão de transformar-se em outro. Dirige-se à plateia, escancara seus procedimentos.
Privilegiar o lugar do narrador – em detrimento da representação – é também dar vulto ao performativo. O entra e sai de situações e personagens empreendido por Laerte se dá a partir de um lugar do qual ele não se move. Um lugar que é do narrador, mas é também do ator. Um ator que não esconde em outros. Confunde o espectador. É muitos sem deixar de ser um e expondo, sempre, essa inteireza.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Serviço:
Homens nas cidades
Onde: Espaço dos Satyros 1 (Praça Franklin Roosevelt, 222, Consolação, São Paulo, tel. 11 3258-6345)
Quando: sábado, às 21h; segunda fase da temporada até 14/12
Quanto: R$ 30
Duração: 70 minutos
Classificação indicativa: 16 anos
https://www.youtube.com/watch?v=F-JPEIcn_wg
Ficha técnica:
Texto: Chris Goode
Elenco: Laerte Mello
Tradução: Fernanda Sampaio
Direção: Francisco Medeiros
Iluminação: Domingos Quintiliano
Videocenário: Marcela Biagigo
Preparação corporal: Renata Aspesi
Figurinos: Luan Mello
Produção: Fatal Companhia
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.