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Crítica

Com o traquejo de mestre Dias Gomes

16.2.2017  |  por Fernando Marques

Foto de capa: João Caldas

Em São Paulo

O artigo que se segue vai correr um pouco em zigue-zague, mas garanto que não bebi nada, nem água. O propósito é o de falar sobre Roque Santeiro, comédia de Dias Gomes com direção de Débora Dubois e músicas de Zeca Baleiro, relacionando o espetáculo a seu entorno recente e, ainda, às décadas de 1960 e 1970. Esse período pródigo em musicais teve em Dias Gomes um de seus autores mais atuantes. Vamos?

A prática dos musicais à brasileira, providos de texto e canções feitos por aqui, não desapareceu nos últimos anos. Seria inexato imaginar que assistimos agora a uma retomada do gênero – na verdade, ele jamais saiu de cena. Grupos como Galpão, Folias d’Arte, Latão e Clowns de Shakespeare vêm se dedicando a espetáculos com música pelo menos desde a década de 1990. Bastaria lembrar Romeu e Julieta, do Galpão, com estreia em 1992.

Mirando na tevê, quem os realizadores de ‘Roque Santeiro’ reencontraram foi Dias Gomes, o de palco. Por que não reler agora ‘O rei de Ramos’ ou ‘Vargas’? A obra é vasta

O que Roque Santeiro confirma agora é, sim, a tendência de retorno do musical brasileiro à praia das grandes produções, à esfera das montagens mais ricas em plateias, subvenções, dinheiro. Roque é um dos espetáculos a riscar o chão na área ocupada, até há pouco, por projetos que não ambicionaram mais do que oferecer traduções tecnicamente benfeitas de histórias, música e encenação norte-americanas. A pedra já havia sido cantada por Tim Maia em 2011.

A obra de Dias Gomes (1922-1999) nasceu no teatro: O berço do herói era o título original da peça publicada em 1965, mas proibida para o palco nesse mesmo ano. Transformou-se em novela dez anos depois, mudando de nome para Roque Santeiro; a censura interditou-a novamente. A novela foi afinal exibida em 1985, quando Lima Duarte e Regina Duarte nos deram interpretações antológicas de Sinhozinho Malta e Viúva Porcina. A peça, republicada em 1991, passou a chamar-se Roque Santeiro ou O berço do herói. O autor acrescentou letras a seu texto e retomou a figura do Cabo Roque (antes Jorge), dado por morto na Segunda Guerra e convertido em mártir.

João Caldas

Elenco em cartaz na Teatro Faap: aventura vitoriosa das cores nacionais

A cidade natal de Roque, a pequena Asa Branca, prospera explorando a lenda do suposto herói na luta contra o nazifascismo. Medalhas são comercializadas, aparecem turistas, abre-se um bordel e se planeja abrir outro mais. O deputado Malta, sua amante Porcina, pretensa viúva do cabo, o prefeito, o vigário e a cafetina lucram, todos, com a legenda. Eis que, passados 15 anos, o homem reaparece vivo e com saúde, e a situação complica-se.

A origem televisiva pode fazer pensar que os intuitos da montagem tenham sido sobretudo comerciais. No entanto, o espetáculo em cartaz no Teatro Faap, em São Paulo, pouco tem a ver com televisão, se o considerarmos do ponto de vista estético. Artes tão distintas não poderiam mesmo copiar uma à outra, por maior que fosse a timidez dos criadores.

Não há cacoetes, em Roque Santeiro, que decalquem as interpretações televisivas. Talvez algo no figurino e no cenário lembre o folhetim? Se houve inspiração nas imagens da tela, parece ter sido inteligente, saudável. O sotaque assumido por alguns dos intérpretes se assemelha ao dos craques da tevê, mas nem isso nos autorizaria a falar em transposição servil. Televisão, aqui, foi quando muito chamariz. A charmosa Porcina de Lívia Camargo, para ficarmos em um exemplo entre outros possíveis, afirma-se por si mesma e deve pouco à de Regina Duarte. O que é muito bom.

Se observarmos os musicais dos anos 1960 e 70, gênero de que o teatro frequentemente se valeu (e bem) para responder à ditadura, veremos tratar-se de espetáculos para os quais as canções tantas vezes foram especialmente compostas; que inventaram e lançaram músicas, não apenas as replicaram. Aqui reside outra das qualidades de Roque Santeiro, com as melodias maleáveis de Baleiro passeando por vários ritmos, do baião à valsa, atentas ao andamento da história. Temos também, claro, os bons atores-cantores (prazer em revê-lo, Dagoberto Feliz!) e o apoio decisivo do trio de músicos, Marco França (do Clowns potiguar) ao teclado. Flávio Tolezani e Jarbas Homem de Melo interpretam Roque e Malta, os principais papéis com o de Porcina (Tolezani e Feliz são vinculados ao Folias).

Nada contra as montagens que utilizam canções conhecidas. Naquelas mesmas décadas, dois exemplos desse tipo são o show Opinião, de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, de 1964, e o admirável Rasga coração, de Vianinha, de 1979, drama pontuado por canções tomadas a 40 anos de vida brasileira. Aquelas datas, 64 e 79, correspondem a balizas para os musicais realizados durante o período mais difícil da ditadura – sublinhe-se a aspiração popular de todos eles. Repertório em parte apagado pela atitude amnésica posterior, frequente até hoje.

Podemos apontar, em contraste, o diálogo entre teatro e música que fez saltarem do palco para as rádios canções como Upa, neguinho, de Arena conta Zumbi, de 1965, texto de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri com música de Edu Lobo, canção que Elis Regina potencializou. Ou a canção-título do drama em verso Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, uma década mais tarde. O épico Zumbi, genial até nas imperfeições, jamais foi publicado em livro; Gota d’água felizmente tem estado a salvo do dilúvio.

Não existe hoje uma tendência geral dos musicais que articule prática estética e propósito político, assim como se deu nos anos 1960 e 70. Não há pauta conjunta: alguns privilegiam a pesquisa, outros a bilheteria, outros ainda se equilibram entre os resultados artísticos e as discretas (ou, às vezes, óbvias) concessões ao público. Se Roque Santeiro teve intenções comerciais ao buscar na televisão os seus motivos (naturalmente as teve, sem problemas), a montagem resultou, de todo modo, em bom, por vezes ótimo teatro. O quadro final promove efeito de luz quase alucinatório, ao som do baião esperto que encerra os trabalhos. Mirando na tevê, quem os realizadores reencontraram foi Dias Gomes, o de palco. Por que não reler agora O rei de Ramos ou Vargas? A obra é vasta.

João Caldas

Competências do elenco e da direção sobressaem na obra de Dias Gomes

Bom teatro, sim, como vários outros espetáculos contemporâneos de Santeiro têm praticado. Cito alguns: Lisbela e o prisioneiro (peça de Osman Lins adaptada por Francisca Braga, com músicas conhecidas); Urinal (comédia, digamos, ácida com o Núcleo Experimental de Teatro, texto e música pertencentes aos norte-americanos Kotis e Hollmann, aclimatados com felicidade); Bilac vê estrelas (roteiro de Heloisa Seixas e Julia Romeu a partir do romance de Ruy Castro, direção de João Fonseca, boníssimas músicas de Nei Lopes e o impagável André Dias no papel do poeta); Galileu Galilei (texto de Brecht dirigido por Cibele Forjaz, música original de Lincoln Antônio e Théo Werneck, com Denise Fraga no papel do astrônomo). Todos vistos em São Paulo.

No Rio de Janeiro, assistimos há seis anos ao mencionado Tim Maia e, em 2016, a França Antártica. A dramaturgia desta peça é de Alberto Magalhães e Claudio Mendes, com direção de Mendes. Canções ao vivo, preexistentes, de autores vários. Elenco de cinco atores-músicos do grupo Irmãos Brothers, que narram com humor e ampla liberdade episódios relativos ao século XVI. As técnicas épicas em França Antártica, descendentes de Zumbi, valem uma ou duas teses de doutorado.

Por que essa enumeração, que mais parece um catálogo? Teremos a intenção de pedir dinheiro emprestado aos pobres artistas supracitados? Não, brasileiros, os motivos são outros e bem simples. O peso das grandes, paquidérmicas produções, que têm contado com o inocente aval da Lei Rouanet, não raro nos leva a não enxergar além delas. Somos impressionáveis, e o luxo nos enche os olhos.

Acho, por exemplo, que Bilac vê estrelas foi subestimado, malgrado alguns nomes estimáveis ligados ao espetáculo. Acho que França Antártica… Já disse o que acho. É claro, afinal, que uma aventura como a de Roque Santeiro, vitória das cores nacionais sobre as fúteis falanges estrangeiras, deve ser festejada. Uma vitória, ao menos provisória, sobre o nosso comodismo de espectadores convencionais, com a subserviência de exilados em nosso próprio país. Relevem o tom de comício.

Poderíamos apontar um problema em Roque Santeiro, devido a mestre Dias Gomes, que alongou a história de seu herói para além do necessário. Prefiro, porém, ressaltar a competência do elenco e da direção, e mais: a capacidade empática do espetáculo, que nos devolve por instantes o sentimento de pertencermos a uma cultura apta a incorporar todas as culturas. Somos um povo criativo, e que se danem os políticos à maneira de Chico Malta. Devemos aprender com os outros povos, não imitá-los. Confere?

Serviço:

Onde: Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis, São Paulo, tel. 11 3662-7232)
Quando: Sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 18h. Temporada indeterminada
Quanto: R$ 50 a R$ 90
Indicação: 14 anos
Duração: 120 minutos

Equipe de criação:

Texto: Dias Gomes
Direção: Débora Dubois
Músicas e direção musical: Zeca Baleiro
Com: Cristiano Tomiossi, Dagoberto Feliz, Edson Montenegro, Flávio Tolezani, Giselle Lima, Jarbas Homem de Mello, Lívia Camargo, Luciana Carnieli, Marco França, Mel Lisboa, Nábia Villela, Samuel de Assis, YaelPecarovich
Músicos: André Bedurê, Érico Theobaldo e Marco França
Assistente de direção e de cenografia: Luis Felipe Correa
Assistência de direção musical e preparação vocal: Marco França
Direção de movimento: Fabricio Licursi
Concepção e desenho de cenário: Débora Dubois
Confecção e pintura artística de cenário: Márcio Vinicius e André Aires
Artista plástico/esculturas: Paulo Bordhin
Figurinos: Luciano Ferrari
Produção de figurinos: ElenZamith
Iluminação: Fran Barros
Desenho de som: André Omote e Guilherme Ramos
Confecção de adereços e sistema de pétalas: LCR (Luis Carlos Rossi)
Sistema de maquinaria: Jorge e Denis Produções Cenográficas
Criação de logotipia: Tuagência
Designer gráfico: Richard Kovács
Visagismo: Gabriel Weng
Costura: Maria de Lourdes Oliveira, Janete Ferreira, Josete Viana, Josy Barbosa, Kakau Nogueira, Antônio de L. Junio, Camila Sanches, Maria Lúcia, Maria Aparecida Miyake
Alfaiataria: Pedro dos Santos, Valmiro Silva Santtana, Betto Rigor
Adereços de figurino: Tetê Ribeiro
Confecção de calçados: Porto Free
Fotografia de estúdio: Priscila Prade
Fotografia de cena: João Caldas Filho
Fotografia/makingof: Larissa Cardoso
Vídeo: Halei Rembrandt
Operação de luz: Rafael de Sá
Operação de som: Kleber Marques
Microfonista: Pollyana Oliveira
Diretor de palco: Nilton Araujo
Camareiras: Renata Reis e Sandra Matos
Assessoria de imprensa: Pombo Correio
Proposta de realização do projeto: Lívia Camargo
Lei e prestação de contas: Sonia Odila
Assessoria contábil: Beltrame Assessoria Contábil
Assessoria jurídica: Andrea Francez
Financeiro: Thiago Marchine
Coordenação: Elza Costa
Produção executiva e administração: Fabrício Síndice e Vanessa Campanari
Direção de produção: Edinho Rodrigues
Realização: Brancalyone Produções Artísticas

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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