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Crítica

Estética da existência

20.3.2017  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

Já se tornou banal falar sobre a crise da representação e o esfacelamento dos limites entre o real e a ficção no teatro contemporâneo. São muitos os experimentos artísticos que problematizam essas questões, acompanhados de reflexões críticas que colocam em xeque as convicções do pensamento ocidental que estabeleceram fronteiras rígidas sobre o que existiria de fato e o que seria invenção. No entanto, a curadoria da 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, ao escolher o documentário como um de seus eixos estruturantes, trouxe obras que alçaram esta discussão a um patamar mais elevado.

Nesse sentido, a mostra especial do libanês Rabih Mroué permite refletir sobre as maneiras que o teatro contemporâneo, ao embaralhar os registros real/ficcional, recupera a relação com a pólis, expandindo o espetáculo para além da sala de espetáculos. Em Tão pouco tempo, a atriz Lina Majdalanie vale-se da fábula para recontar a história recente do Líbano. No início da apresentação, o aviso de que se trata de uma obra de ficção é seguido pelo sinal de reticências, o que coloca em dúvida a veracidade dessa informação. Em Revolução em pixels, o próprio Mroué faz uma palestra-performance sobre fotografias e vídeos divulgados na internet sobre os primeiros anos da revolução na Síria. Vale-se dos princípios do Dogma 95, movimento cinematográfico capitaneado pelos dinamarqueses Thomas Vinterberg e Lars von Trier que propunha formas mais realistas de fazer filmes. Em ambos os trabalhos, a dimensão discursiva da memória e da política são colocadas em evidência, conduzindo o público a uma reflexão sobre verdade, justiça, coletividade e pertencimento.

A condição de Yasser é resultado de uma guerra. Sua afasia não é somente um quadro clínico, individual. É social, compartilhada

Em Cavalgando nuvens, terceiro espetáculo da mostra, essas discussões são deslocadas para o âmbito da subjetividade. Ainda que a esfera social e as questões políticas se façam presentes, é a relação eu/outro que predomina. No palco, Yasser Mroué, irmão do diretor, apresenta um relato biográfico ímpar. Ferido na guerra civil libanesa, ele apresenta sintomas de afasia, com dificuldades para usar palavras, reconhecer imagens e relacioná-las em um fluxo temporal. Suas lembranças são como imagens fixas. Diante de uma fotografia, enxerga somente manchas. E, ao ver uma cena dramática de assassinato, pode pensar que se trata de um crime real.

A afasia é uma condição estudada há muito tempo. Pode ter origens neurológicas, que parece ser o caso de Yasser, mas também pode ser uma posição de sujeito. Não por acaso, a primeira obra publicada de Sigmund Freud foi Sobre a concepção das afasias, de 1891. O tema acompanhou muitos outros trabalhos no início da história da Psicanálise, associando afasia e determinados sintomas neuróticos, sem base biológica. Em Cavalgando nuvens, ainda que a presença de Yasser remeta ao distúrbio de fato, a afasia aparece também como metáfora para a dificuldade de comunicação no mundo de hoje e às diferentes fabulações sobre acontecimentos reais.

Assim, duas frases projetadas durantes a apresentação, “This is not a paper” e “To be or not to be, that’s not the paper”, remetem a obras de arte. A primeira, ao quadro do pintor belga René Magritte, Isto não é um cachimbo (Ceci n’est pas une pipe, 1928/9), que ironiza o estatuto da pintura como representação de imagens reais. A segunda, à fala de Hamlet na peça de William Shakespeare, talvez a mais clássica da história do teatro, pinçada de um discurso sobre o sentido da vida. Para Yasser, sua condição o impede de perceber a profundidade dessas duas obras. No entanto, sua própria existência atesta o que elas remetem: a fugacidade de nossas certezas, o infortúnio como veículo de criação, a crueza das palavras quando desprovidas de imaginação.

Guto Muniz/Foco in Cena

Vítima de guerra civil, Yasser Mroué reelabora a vida construindo pontes

A condição de Yasser é resultado de uma guerra. Sua afasia não é somente um quadro clínico, individual. É social, compartilhada. É o resultado de conflitos insolúveis na região do Oriente Médio, perpassados por mudanças históricas globais que invalidam tradições e liquefazem certezas. Mas ao invés de se render ao desespero, Yasser escolhe o caminho da criação. Faz de sua vida uma estética da existência. Dessa forma, aparecem já na parte final do espetáculo versos do poeta palestino Mahmoud Darwish que dizem: “Em minha solidão, vou gritar não para acordar os que estão dormindo, mas para que meu grito me desperte da minha imaginação aprisionada”.

Também chama atenção um diálogo entre Yasser e Mroué, sobre a possibilidade de transformar a condição em que se encontra o primeiro em um espetáculo. Fica patente que a obra não deixa de ser um relato de superação, tão comum na indústria cultural. Mas vai muito além disso, mostrando que nossa principal qualidade humana é a adaptação. Cavalgando nuvens trata da honestidade das intenções, do amor entre os irmãos, da interdependência, da solidariedade e da empatia. Mostra que é possível construir pontes, escutar e entender o outro. E isso está em falta hoje.

Equipe de criação

Dramaturgia e direção: Rabih Mroué

Performer: Yasser Mroué

Colaboração: Sarmad Lois

Assistente de direção: Peta Serhal

Assistente: Janine Baroud

Tradução para o inglês: Ziad Nawfal

Coprodução: Fonds Podiumkunsten, Prins Claus Fonds, Hivos & Stichting DOEN – (Países Baixos)

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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