Crítica
Não há espaço para ilusão teatral ou emoção na arte do libanês Rabin Mroué, artista plural que ganha destaque na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) deste ano por sua maneira singular de entrelaçar ficção, teatro político e documental. Denominada ‘mostra especial’, é composta por Tão pouco tempo, Revolução em pixels e Cavalgando nuvens.
As duas primeiras peças, ambas enfocadas neste texto, são obras críticas, de estruturas incrivelmente simples, cunhadas pelo artista de palestras não acadêmicas.
Há cerca de três anos radicado em Berlim, o autor, diretor e performer adotou no mesmo período o uso cenográfico de mesa, cadeira, computador e uma tela de projeção ao fundo. Serve-se de iluminação fixa e fria. Dispensa trilha sonora e figurino. Não conta uma história. Não representa personagem.
O artista libanês Mroué constrói uma reflexão complexa para abalar a distinção da plateia entre os limites que separam verdade e imaginação
Seus procedimentos reinventam o distanciamento de Brecht estabelecendo, através de uma estética crua e uma antiteatralidade na poética cênica, uma concentração no compartilhamento do pensamento analítico pré-elaborado.
O artista parte do desejo pessoal de refletir sobre a natureza de sua arte e a instabilidade política que assola seu país natal, o Líbano, desde o início da Guerra Civil, em 1975, para elaborar um raciocínio sobre o comportamento da humanidade de seu tempo. Convida a uma meditação sobre representação na contemporaneidade explorando pontos de junção e atrito existentes entre realidade e ficção, veracidade e manipulação.
Em Tão pouco tempo, obra de sua autoria apresentada por sua esposa e parceira artística Lina Majdalanie, escancara o embaralhamento entre ficção e teatro documentário ao eleger como protagonista um personagem inventado. Torna aparente os mecanismos de construção e destruição de mitos históricos ao apresentar a trajetória deste homem fictício: um soldado transformado em mártir islâmico quando tido como morto que perde as honrarias ao se revelar vivo.
O ato de documentar é tema de Revolução em pixels. A peça também aponta a existência de um mundo fabricado ao discorrer sobre o impacto de registros amadores e profissionais nas mídias, redes sociais e na própria formação da memória de um indivíduo ou de uma nação. Como alicerce de sua tese, o libanês utiliza-se de vídeos de cinegrafistas amadores que gravaram involuntariamente suas próprias mortes durante a guerra da Síria enfatizando a ilusão de irrealidade causada pelo celular em sua intermediação com o olho humano. Segundo ele, ao acreditar estar dentro de um filme, o cinegrafista enxerga o atirador destituído da dimensão do perigo de ter uma arma apontada para ele.
Mroué constrói uma reflexão complexa para abalar a distinção da plateia entre os limites que separam verdade e imaginação, apoiando-se tanto do conteúdo como da forma de suas palestras. Busca comprovar a impossibilidade da dissociação entre ficção e realidade. Amplificar o olhar humano para desconfiar das duas linguagens percebendo a primeira não como artifício, como muitas vezes é codificada, mas como dimensão da realidade. E a segunda não como verdade, mas sobretudo como faceta da imaginação.
O performer desestabiliza a percepção da própria noção de mundo do espectador acionando uma infinidade de questionamentos em suas mentes. O que é verdade em meio à irrealidade massiva que rodeia o homem, e até o constitui? Se a vida é ilusão, como conduzi-la? Existe solo firme no terreno da incerteza no qual a atualidade está incorporada?
Se a busca pelo sentido da existência norteia a humanidade desde a formação da civilização, ela perde significado nos tempos atuais. Segundo o filósofo e jornalista brasileiro Adauto Novaes, no livro Ensaios sobre o medo (2007), o que define a contemporaneidade hoje é a ausência de um rumo para a sociedade. “É certo que a civilização ocidental sempre viveu em crise, em guerras, momentos de barbárie, massacres, políticas do medo, mas havia sempre um caminho que indicava o futuro”, anota no texto Políticas do medo. Para ele, o que há de novo, no estado presente, é a ausência de horizonte. “Imaginar o futuro tornou-se impossível”.
Com argumentos que tonificam a sensação do homem contemporâneo de compor uma humanidade proveniente de um mundo falso, tão absurdo quanto trágico, Mroué reforça a perspectiva de um presente desencantado e de um porvir duvidoso. Escolhe a linguagem teatral para isso, uma das artes experienciadas coletivamente e ao vivo. Quer potencializar seu discurso, tornando ainda mais gélido e vigoroso o banho de realidade que dá no espectador.
Equipe de criação – Revolução em pixels:
Dramaturgia, atuação e direção: Rabih Mroué
Tradução para o inglês: Ziad Nawfal
Coprodução: Berlin Documentary Forum – HKW, em Berlim, dOCUMENTA 13, em Kassel, The 2010 Spalding Gray Award (Performing Space 122, em Nova Iorque, The Andy Warhol Museum, em Pitisburgo, On the Boards, em Seattle, e The Walker Art Center, em Minneapolis).
Equipe de criação – Tão pouco tempo:
Dramaturgia e direção: Rabih Mroué
Com: Lina Majdalanie
Colaboração no texto: Yousef Bazzi e Lina Majdalanie
Cenógrafo: Samar Maakaroun
Artes gráficas e assistente de direção: Abraham Zeitoun
Assistente de pesquisa: Andrea Geissler
Tradução/inglês: Ziad Nawfal e Joumana Seikaly
Tradução/alemão: Karen Witthuhn.
Legendas: Yvonne Griesel
Tradução/francês: Nada Ghosn
Música: Kari’atal-funjan – Abdel Halim Hafez (composta por Mouhamad Al Mouji, Letras de Nizar Qabbani)
Coprodução: Théâtre de la Bastille, Festival d’ Automne à Paris, Wiesbaden Biennale e HAU Hebbel Am Ufer
Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.