Crítica
Durante esta semana, em cartaz no Itaú Cultural como parte da programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), a atriz sul-africana Ntando Cele, mulher negra, nos traz vários símbolos ligados ao racismo em seu espetáculo Black off. Mas entre eles prevalece na memória a fala pragmática: “Estou aqui, e sou negra. Mas não estou aqui para ser negra”.
Ntando nos faz pensar e repensar sobre o que habita entre nós, mascarado de ingenuidade ou inocência, e que teima em se neutralizar. Intérprete e diretora do espetáculo, ela nos leva a uma experiência provocadora de enfrentar face a face o que “brancaliza” socialmente: os inúmeros atos de diminuir e oprimir negros através de piadas e atitudes banais e criminosas.
Não há, no espetáculo da sul-africana Ntando Cele, ‘Black off”, um ranço melancólico sobre o racismo. Mas é reativa e afirmativa sua posição de combate à opressão
A peça é dividida em dois atos. No primeiro deles, a atriz interpreta a apresentadora de talk show Bianca White. Com peruca loura, lente de contato azul e uma maquiagem branca, Ntando reproduz frases com clichês do racismo. Se a princípio essas falas despertam risos da plateia (alguns em tom de constrangimento), logo elas se transformam em uma reflexão pessoal impulsionada por alguém que toma para si o lugar de fala que lhe é de direito.
A voz de Ntando também está nos seus gestos, nas imagens às quais ela recorre como pontuação para sua crítica. Tão forte quanto vociferar o sarcasmo são as subjetividades presentes nessa cena, como o fato de ela ser a única mulher junto a um trio de homens músicos brancos; homens que ela rege.
Na transição entre as duas partes da peça, a atriz nos oferece um olhar ainda mais apurado e, literalmente, aproximado daquilo que o preconceito sugere como marcas de uma inferioridade. Ela nos coloca diante da projeção em tela, no fundo do palco, em que mostra os poros do seu couro cabeludo, entre uma trança e outra, evidenciando os traços, negros, que compõem o rosto dessa mulher. Pouco antes disso, ela transita de um lado a outro do palco tateando a pele, os olhos e a boca em caretas animalescas.
A sagacidade da sul-africana amplia a percepção do preconceito sobre a raça. No segundo ato, ao voltar sem maquiagem e peruca, com seu rosto negro e seus cabelos à mostra, desta vez cantando punk e rap, a artista nos aponta para as tantas situações de julgamento entre superior e inferior presente nas relações e, neste caso, sobre a arte. Qual é o centro de tudo? É essa a pergunta que nos instiga. Qual a cor primeira? Quem não tem sotaque? A quem serve o palco e a arte?
Não há, no seu espetáculo, um ranço melancólico sobre o racismo. Mas é reativa e afirmativa sua posição de combate à opressão. Há, sim, a reivindicação dos direitos de igualdade, mas esse direito está para além do que nos habituamos a associar como uma busca por essa igualdade. É quando diz “Não estou aqui para ser negra” que a atriz aponta: estou aqui, e sou negra; estou aqui e sou ser humano, igual a você; não sou uma cor, não sou um gênero; posso ser o que eu quiser ser. É o desejo de não querer mais ser apenas adjetivos, máscaras, classificações.
Equipe de criação:
Diretor: Ntando Cele
Autor: Ntando Cele e Raphael Urweider
Performance e vídeos: Ntando Cele
Produtor: Manaka Empowerment Productions
Composição e música: Simon Ho
Música: Patrick Abt e Pit Hertig
Texto e codireção: Raphael Urweider
Iluminação: TonioFinkam
Técnica: Maria Liechti
Tradução do texto: Hugo Casarini
Produtor executivo e diretor de palco: Michael Röhrenbach
Uma coprodução com o PRAIRIE, modelo de coprodução do Migros Culture Percentage para companhias de teatro e dança inovadoras da Suíça
Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).