Crítica
16.3.2017 | por Beth Néspoli
Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena
Criar beleza com matéria de escombros, investir-se das questões de seu tempo no ato criador, reverter destruição em forma vital – eis alguns dos atributos da arte presentes na abertura oficial da 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), no Theatro Municipal de São Paulo. Na cerimônia do dia 14 de março, perpassaram as palavras de apresentação da atriz Georgette Fadel e estavam no espetáculo belga Avante, marche! Neste, a morte era o elemento de investigação do lugar do indivíduo no coletivo, enquanto, inversamente, no campo simbólico dos embates da noite, entre as figuras da administração pública e aqueles que as vaiaram, importante era descolar das ações das primeiras, articuladas às relações de poder recentemente instauradas no país, qualquer ideia de inevitabilidade.
Celebração e protesto, às vezes amalgamados, atravessaram corpos e mentes varrendo qualquer possibilidade de tom protocolar nos discursos de inauguração do festival, cuja programação é integrada por sete espetáculos estrangeiros e três nacionais apresentados até o dia 21 de março em diversos espaços da cidade. Evento que conta ainda com vasta gama de atividades, a maior parte gratuita, voltada à formação artística e ao pensamento crítico.
Em ‘Avante, marche!’, a companhia belga Les Ballets C de la B reconfigura em linguagem contemporânea uma certa sabedoria de viver que é motor de toda arte popular
Manifestar indignação não na forma de lamento, mas como força motriz para a reconfiguração do imaginário coletivo é pensamento que alinha vertentes da militância em arte e ajudou a moldar a atmosfera da noite. Já podia ser detectado na abordagem do racismo, um dos eixos curatoriais da mostra, não por acaso nomeada como “o protagonismo negro/autodeterminação” e também deu o tom do primeiro discurso da noite, do diretor de produção Guilherme Marques, um dos idealizadores da MITsp em parceria com o diretor artístico Antônio Araújo (Teatro da Vertigem).
Após ter enfrentado uma longa seca de recursos para só na reta final ter certeza da realização da mostra deste ano, Marques anunciou, num gesto simbólico, que a 5ª edição transcorrerá entre os dias 1º a 11 de março de 2018. “O teatro segue lutando e celebrando nossa capacidade de metamorfose e transformação”, afirmou. “Não ao preconceito de todas as formas, não à xenofobia, não a tudo aquilo que representa a miséria, a violência e a exclusão”, conclamou após agradecer os parceiros de realização. Em seguida, convocados por Fadel, cuja presença poderosa e afinada com o espírito da noite produzia silêncio em estreita conexão com a plateia, patrocinadores e apoiadores subiram ao palco.
Com sensibilidade afinada pelo longevo acompanhamento de processos e trajetórias e pelo conhecimento do panorama da cena artística, representantes de instituições como Eduardo Saron, do Itaú Cultural, e Danilo Santos de Miranda, do Sesc São Paulo, fizeram discursos curtos e mereceram o respeito da plateia.
Porém num período em que o próprio Ministério da Cultura chegou a ser extinto, em que parte do já exíguo orçamento para a cultura sofre congelamentos e ainda, no plano municipal, em que direitos garantidos por lei como o fomento à dança e ao teatro são ameaçados sob diferentes alegações (algumas de difícil sustentação como, por exemplo, a de que um mesmo grupo recebe verba em mais de uma edição. Mas o que seria da arte sem trajetória de aprimoramento contínuo? Como alcançar a envergadura de uma Orquestra Sinfônica de São Paulo, de uma companhia de balé como o Grupo Corpo ou do Teatro da Vertigem, sem longos processos de trabalho?), diante de tal panorama, seria de se esperar que houvesse protestos contra representantes do poder público.
Nas palavras da mestra de cerimônia, “o momento é de desmantelamento e emergência, mas também de mobilização, pujança de militâncias e subjetivações redimensionadas”. Primeiro a ser convocado, o secretário municipal de cultura André Sturm, ausente, foi representado pela chefe de gabinete Giovanna de Moura Rocha Lima. Visivelmente afetada pela vaia intensa, e talvez por isso, conseguiu silêncio para uma fala curta na qual buscou enfatizar o afeto do acolhimento, e assim atingir o tento de sair do palco sob tímido aplauso. Não era o lugar e nem o espaço para tentar o diálogo ou confrontação. Sensibilidade que faltou aos demais representantes do poder público estadual e federal, enviados em lugar dos respectivos titulares, ambos com vozes tornadas inaudíveis sob os protestos.
Mas a noite não ficaria paralisada nas vaias. Como anunciou Fadel, outras vozes subiriam aos palcos da mostra. “Não serão trabalhos de países, serão perspectivas sobre e territórios e lugares de poder”. Estava dada a partida para o compartilhamento de linguagens, de modos de produzir e pensar a arte, com artistas de diferentes partes do mundo. O momento começaria a ser então de Avante, marche!, criação da companhia belga Les Ballets C de la B.
Se o título não poderia ser mais adequado ao ânimo da noite, talvez estivesse mais em conexão com a sensibilidade daquela plateia o trabalho anterior desse grupo, Gardênia (2010), também trazido ao Brasil, que tinha a forma musical do cabaré e reunia nove intérpretes transgênero, a maioria com mais de 60 anos, criação do mesmo trio de artistas: o diretor artístico Alain Platel, o diretor musical Franck Van Laecke e o compositor Steven Prengels.
Igualmente formalizado como híbrido de linguagens, na difusa fronteira entre dança, teatro, música e circo, Avante toma como microcosmo da sociedade o ambiente onde se reúnem os músicos de uma fanfarra. Salvo engano de pesquisa, as fanfarras, bandas formadas por músicos amadores, estão profundamente enraizadas na cultura de Bélgica e parte do norte da França. “Uma nação se aniquila quando não reage mais às fanfarras; sua decadência está na morte do trompetista”, escreveu o filósofo romeno radicado na França, Emil Cioran (1911-1995). Aforismo cujo sentido sem dúvida se conecta à percepção da plateia naquela noite.
Porém em termos de recepção no Brasil, onde a fanfarra costuma remeter às bandas militares e à música marcial, a associação mais pertinente para aquela formação musical talvez pudesse ser feita com ritos populares como reisados, congadas ou cavalos-marinhos. Sem dúvida é similar a dos brincantes desses folguedos a energia de atuação de Wim Opbrouck, cujo talento múltiplo remete à criação artística do brasileiro Antônio Nóbrega.
A cativante intensidade do espetáculo é fruto das coreografias com objetos, das surpreendentes imagens criadas pelos atuadores, mas certamente deve muito ao carisma de Opbrouck. Ele é o personagem central da trágica situação que está no ponto de partida e envolve todas as figuras em cena, quatro atores e sete músicos, acompanhados por mais 18 musicistas brasileiros sob a regência do maestro Carlos Eduardo Moreno. A dramaturgia inspira-se no texto do escritor italiano Luigi Pirandello, O homem com a flor na boca, encenado no Brasil em solo do ator Cacá Carvalho, cujo personagem indaga sobre o sentido da existência ao saber que morrerá em breve de câncer na boca. Em Avante, Opbrouck é esse homem, um trombonista obrigado a deixar a linha de frente da banda de metais de sopro, e assumir a batida de címbalos na retaguarda, sua forma de (re)existência.
A cena inicial já evidencia a proposta de escapar do sentimentalismo e da manipulação das emoções do espectador por meio do recorte preciso entre as dimensões individual e coletiva da morte. Enquanto o personagem se debate com humor ácido contra o seu destino, os músicos se concentram em ensaiar. O grupo não morre com o indivíduo, a banda seguirá seu rumo.
Pode soar como indiferença. Mas é a força do coletivo deve ser desejável em especial para quem contribuiu positivamente para o seu fortalecimento. O que não significa que o espetáculo simplesmente ignore os afetos que se entrecruzam no território metafórico da banda, a questão é de abordagem. Se a tragicidade inerente à morte merece tratamento operístico, quando então Opbrouck solta sua voz de tenor, a mesma linguagem resulta em exagero e deformação quando aplicada à dor da rejeição amorosa.
O tema da finitude humana molda alguns dos momentos mais vibrantes da peça, como o número de dança entre o velho trombonista e um jovem musicista. O fluxo inexorável do tempo por sua vez se concretiza em outra espécie de pas de deux, desta vez entre dois casais formados por musicistas e balizas (mulheres que acompanham os músicos fazendo coreografias com bastões). De um lado do palco, à apaixonada por Opbrouck só cabe catar os restos de sopro que ainda saem dos seus pulmões, enquanto, do outro, um jovem casal dá vazão ao seu desejo sexual com vigor intenso.
Ao extrair beleza do simples reordenamento das cadeiras postas em cena e encher o palco de energia vital numa surpreendente coreografia rítmica realizada com baquetas, Avante, marche! reconfigura em linguagem contemporânea uma certa sabedoria de viver que é motor de toda arte popular.
Equipe de criação:
Diretores: Frank Van Laecke e Alain Platel
Composição e direção musical: Steven Prengels
Com intérpretes e criadores: Chris Thys, Griet Debacker, Hendrik Lebon, Wim Opbrouck, Gregory Van Seghbroeck (tuba barítono), Jan D’Haene (trompete), Jonas Van Hoeydonck (trompete), Lies Vandeburie (corneta), Niels Van Heertum (eufônio), Simon Hueting (trompa), Witse Lemmens (bateria), Steven Prengels (maestro)
Participação: músicos brasileiros, sob a regência do maestro Carlos Eduardo Moreno
Dramaturgia: Koen Haagdorens
Design de luz: Carlo Bourguignon
Design de som: Bartold Uyttersprot
Cenografia: Luc Goedertier
Figurino: Marie ‘Costume’ Lauwers
Diretor de palco: Wim Van de Cappelle
Produção executiva: Valerie Desmet
Gerência da turnê: Steve De Schepper
Tradução do texto: Patrícia Lopes
Produção: NTGent e les ballets C de la B
Coprodução: La Rose Des Vents (França), Torino Danza (Itália), Teatro Nacional de Chaillot (Paris, França), Les Théâtres de la Ville de Luxemburgo (Luxemburgo), Festspielhaus St. Pölten (Áustria), Ludwigsburger Schlossfestspiele (Alemanha), Festival Printempsdes Comédiens Montpellier (França), Teatro Nacional da Croácia Zagreb (Croácia), Maillon, Teatro de Estrasburgo (França), GREC-Festival de Barcelona (Espanha), KVS Bruxelas (Bélgica), Festival Brisbane (Austrália), Théâtre Vidy-Lausanne (Suiça)
Distribuição: Frans Brood Productions
Com o apoio da cidade de Gante, província de Flandres Oriental, e das autoridades Flamengas
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.