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Crítica

Crônica da crise

29.4.2017  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Filipe Ferreira/TNDM II

Em Lisboa

Falo sobre dois espetáculos completamente diferentes entre si, vistos há poucos dias na capital portuguesa. No Teatro Nacional D. Maria II, Bacantes – prelúdio para uma purga anuncia-se como feito “a partir de Eurípides”. O anúncio parece paródico ou irônico: o espetáculo, ai de nós, nada tem daquele autor grego.

Não há texto em Bacantes, nem fio de história. Mas não é bem por essa circunstância que não se verifica relação com a obra clássica. Podia-se bailar a peça de Eurípides. Não foi essa a opção, porém. O que se faz é mesmo algo distinto, por inteiro, da fonte assinalada.

Outro espetáculo, no Teatro da Trindade, traz a peça famosa do norte-americano Edward Albee, Quem tem medo de Virginia Woolf?, texto de 1962. Aqui devo preveni-los: isto não é uma crítica, mas uma confissão.

Vamos reconhecer com franqueza: conforme diria Drummond, ‘minhas medidas partiram-se’. Diante de espetáculos como ‘Bacantes’, não sei o que pensar, nem o que dizer. (Mesmo assim, quis expressar estas perplexidades.)

Há alguns meses, me ocorreu assistir, em datas próximas, a dois espetáculos muito distantes um do outro, como agora. Acabei por escrever para o Teatrojornal um comentário dedicado principalmente a um deles, mas no qual aludia também ao outro. Eu os comparava para, em conclusão, optar pela montagem realista (ou predominantemente realista) em detrimento da outra, feita em chave “contemporânea” – isto é, isenta de fios lógicos ou analógicos, despossuída de qualquer intenção referencial. A realidade dada como inexistente. Não deixei, contudo, de reconhecer talento ao grupo.

Não quero repetir a atitude que tive naquela ocasião. Porque se dá hoje uma situação simétrica, análoga àquela, e seria inadequado reiterar o gosto pessoal por trabalhos que refiram, reflitam, comentem de algum modo a realidade, preterindo a tendência contemporânea que parece rejeitar qualquer construção de sentido.

Trata-se – falo de Bacantes – de um espetáculo rico em música: há cinco trompetistas-atores no elenco. Há outros oito atores, capazes de momentos bem-humorados; alguns deles também cantores. Mas o espetáculo recorre a uma estafante (sem dúvida, proposital) repetição nas paródias que arma – caricaturas do reggae ou do funk carioca, para citar dois exemplos na salada cultural mobilizada. Como se quisesse nos saturar, extenuando-nos com episódios por vezes esticados até o limite (os meus limites de espectador, ao menos). Para denunciar a redundância midiática? Ao final, até o Bolero de Ravel é desmontado – com precisão e verve, de fato.

Essa tendência teatral, que se chama contemporânea mas faz pensar no que se sabe das “sínteses” futuristas dos anos 1920, habita o limbo quanto a possíveis significados. Transita, ou patina, no inominado.

Constatemos, porém, que constitui uma tendência, e cumpre respeitá-la. Não se trata de teatro feito sem talento ou sem técnica. Seus praticantes são atores treinados, isso nos dois casos que nos valem como exemplos (este agora e o de alguns meses atrás). Em geral jovens, sabem o que fazem de seus corpos em cena.

Rosa Reis

Imagem de ‘Bacantes’, direção de Marlene Monteiro Freitas

Talvez a questão seja de ordem geracional. Tais espetáculos, como este dirigido com inegável habilidade por Marlene Monteiro Freitas, eximem-se de aderir à experiência, às realidades observáveis, tangíveis (ainda quando subjetivas), exteriores à cena. Esgotam-se no palco. Tenho dificuldade em compreendê-los, até em simplesmente curti-los.

Para espectadores como eu (admito de coração limpo que a limitação seja nossa), vindos do século XX, do remoto século passado, tais montagens soam inartísticas (ainda que não o sejam); parecem algo inestético. Como costuma ocorrer com as vanguardas, seus artistas afetam certa superioridade (a canção Desafinado, emblema da bossa nova, surge no espetáculo como se, com ela, dissessem: “Se meu verso não lhe agrada, foi seu ouvido que entortou”).

Reparem que não o digo para depreciá-los. Constato apenas que a série de episódios desconectados uns dos outros, de intenção tão pouco assertiva (como se fosse reacionário afirmar qualquer coisa sobre o mundo), não exerce, a meu ver, o efeito de espanto e de admiração que é lícito esperar das obras de arte.

Entre parênteses, devo registrar na direção contrária que, em alguns instantes de virtuosismo cênico, esse efeito ocorreu, sim – penso na imitação oligofrênica do funk dada por um dos intérpretes. E há momentos em que alusões críticas à realidade nossa de cada dia aparecem no espetáculo, é verdade… Como na cena em que é apontada a cretinização do sexo, tornado robótico. Mas quase tudo o mais me pareceu desesperadoramente gratuito.

Em suma, vamos reconhecer com franqueza: conforme diria Drummond, “minhas medidas partiram-se”. Diante de espetáculos como Bacantes, não sei o que pensar, nem o que dizer. (Mesmo assim, quis expressar estas perplexidades.) Que Deus os abençoe, embora, como se sabe, Ele não exista.

Divulgação/Força de Produção

Alexandra Lencastre e também diretor Diogo Infante na peça de Albee

Em Virginia Woolf, ressaltam o texto amargo (paradoxalmente espirituoso, engraçado) de  Albee e o quarteto de atores, com os extraordinários, estupefacientes Alexandra Lencastre e Diogo Infante (este também diretor) à frente. Casais dilaceram-se nas palavras ditas para humilhar, nos avessos do afeto… Retratos do humano. Esta é a espécie de obras de que mais gosto, confesso. Prometo que tentarei compreender as outras, e quem sabe ainda chegue ao século XXI. Sigamos.

Serviço:

Quem tem medo de Virginia Woolf?

Onde: Teatro da Trindade (Rua Nova da Trindade, 9, Lisboa, tel. +351 21 342 3200

Quando: Quarta a sábado, às 21h, e domingo, às 16h30. Até 11/6

Quanto: 10€ a 60€

Divulgação/Força de Produção

Lia Carvalho e José Pimentão em ‘Quem tem medo de Virginia Woolf?’

Equipe de criação:

Texto: Edward Albee. Versão de João Perry a partir da tradução de Ana Luísa Guimarães e Miguel Granja

Direção: Diogo Infante

Com: Alexandra Lencastre, Diogo Infante, Lia Carvalho e José Pimentão

Cenografia: Catarina Amaro

Desenho de arte: Luís Duarte

Figurinos: Maria Gonzaga

Banda sonora: Rui Rebelo

Assistência de direção: Leonor Buescu

Produção: Força de Produção

Serviço:

Bacantes – prelúdio para uma purga

Onde: Teatro Nacional D. Maria II – Sala Garrett (Praça D. Pedro IV, 1100-201, Lisboa, tel. 213 250 800)

Quando: Quarta, às 19h; quinta a sábado, às 21h; e domingo, às 16h. Até 30/4

Quanto: 3€ a 17€

Equipe de criação:

Criação: Marlene Monteiro Freitas

Com: Andreas Merk, Betty Tchomanga, Cookie, Cláudio Silva, Flora Détraz, Gonçalo Marques, Guillaume Gardey de Soos, Johannes Krieger, Lander Patrick (substituído por Teresa Silva em 27, 28 e 29/4), Marlene Monteiro Freitas, Miguel Filipe, Tomás Moital e Yaw Tembe

Luz e espaço: Yannick Fouassier

Som: Tiago Cerqueira

Bancos: João Francisco Figueira e Miguel Figueira

Assistência de figurinos: Cristina Neves

Produção: P.OR.K

Difusão: Key Performance

 

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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