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Crítica

Mover-se em contraste e aproximação

9.4.2017  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Lina Sumizono

Em Ficção, uma das criações anteriores da Cia. Hiato, os atores do grupo realizaram solos nos quais trouxeram à tona determinados aspectos de suas vidas. Na frente do público, de um conjunto de estranhos, revelaram questões íntimas de maneira direta. Diante desse material assumidamente confessional, o título provocava, de início, uma sensação de contraste, mas sintetizava, com precisão, o sumo do projeto: a percepção de que a evocação da própria história implica numa ficcionalização, na medida em que não há como acessar de modo imparcial os acontecimentos como se deram, mas “tão-somente” como foram introjetados por aqueles que passaram pelas experiências. Os atores não apresentavam os fatos puros, e sim uma versão deles (portanto, uma ficção).

Amadores, novo trabalho do grupo conduzido por Leonardo Moreira e incluído na Mostra Oficial do Festival de Curitiba, confirma o apreço pelo depoimento pessoal. Não há, porém, insistência nos mesmos procedimentos. Agora, atores da companhia se misturam a não-atores – reunidos a partir de seleção decorrente de publicação de anúncio em jornal, recurso que lembra o adotado pelos cineastas Mohsen Makhmalbaf em Salve o cinema (1995) e Eduardo Coutinho em Jogo de cena (2007) –, que relatam suas jornadas ao público.

Atores profissionais e amadores parecem irmanados, como se, apesar das particularidades que distinguem uns dos outros, fossem inevitavelmente confrontados com as dificuldades da vida

As narrações de vivências costumam reverberar como evidências de autenticidade. Em contrapartida, não se deve perder de vista que a cena teatral resulta de uma construção, o que a torna, nesse sentido, artificial (mas não falsa). Não há como não atuar diante de uma plateia. Os solilóquios dos não-atores de Amadores foram preparados, ensaiados. A invisibilidade da interpretação foi atingida através de um dado processo que teve como objetivo buscar uma certa equalização entre todos ou evitar vícios como a declamação, e não fazer com que profissionais e amadores alcançassem uma qualidade de presença semelhante a cada noite. Ainda que a diferença de articulação no palco entre uns e outros seja clara, ambos estão sujeitos aos acasos do instante imediato. Não há repetição possível – nem no teatro, nem na vida.

Os depoimentos sugerem exposições de verdades, mas a companhia insinua problematizá-los ao mostrar que os relatos dos amadores (alguns vitimados pela exclusão social) seguem o padrão das histórias de superação, contextualizados por um crítico como clichês (cinematográficos). Contudo, o discurso do crítico, figura satirizada durante o espetáculo, também contém uma série de clichês.

Lina Sumizono

Integrante de ‘Amadores’, da Cia. Hiato, é crítico de cinema na vida real

Em Amadores, a Hiato não condena os lugares-comuns. Aproxima-se da cultura de massa, campo supostamente oposto ao do teatro de pesquisa no qual a companhia se localiza, por meio de variadas citações – às músicas Evidências e Lua de cristal, à cantora Beyonce, ao grupo Mamonas Assassinas, ao personagem Aladim e, em especial, a Rocky, um lutador (1977), filme de John G. Avildsen protagonizado por Sylvester Stallone, exaltado em suas mensagens edificantes (“Para vencer não importa só o quão forte você bate, mas o quanto aguenta apanhar”, “O mais importante não é ser vencedor ou perdedor, mas resistir”). Essas referências imprimem exuberância à encenação no que diz respeito a um registro de humor expansivo e a uma movimentação crescente em contraponto a um quase estatismo inicial.

Atores profissionais e amadores surgem em sofás e poltronas heterogêneos portando figurinos diversificados que realçam suas especificidades. Os sofás e poltronas estão dispostos em linha reta, horizontal, no fundo do palco e cada um se desloca até o proscênio para contar a própria história de vida. Ao longo da encenação, essa unidade vai sendo quebrada. Ao final, os sofás e poltronas são distribuídos pelo espaço e os atores e não-atores ganham mais individualização. Ao mesmo tempo, atravessados pela luminosidade discreta inserida no momento em que se começa a cantar Um trem para as estrelas, todos parecem irmanados, como se, apesar das particularidades que distinguem uns dos outros, fossem inevitavelmente confrontados com as dificuldades da vida, sem exceção.

Equipe de criação:

Uma criação da Cia. Hiato

Com: Aline Filócomo, Aura Cunha, Chicão Paraizo, Dalva Cardoso, Dom Lino, Fabi de Farias, Fernanda Stefanski, Giovanni Barontini, Leonardo Moreira, Loupan, Luciana Paes, Márcia Nishitani, Maria Amélia Farah, Marisa Bentivegna, Maurício Oliveira, Miguel Caldas, Nairim Bernardo, Nsona Kiaku Arão Isidoro Jorge, Oswaldo Righi, Paula Picarelli, Roberto Alves,  Ronaldo de Morais, Rose Sforcin , Thiago Amaral e Yumi Ogino

 

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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