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Crítica

A arte é neta de Deus?

23.5.2017  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Filipe Ferreira

Em Lisboa

As imagens em preto e branco projetadas ao fundo da cena misturam, à esquerda, pessoas em trajes comuns a outras portando chapéus extravagantes, como os que serão usados no espetáculo. À direita, prédios assinalam a cidade. Estacas de metal, verticais, tomam grande parte do palco para compor o ambiente de Inferno, uma das três seções do poema épico A divina comédia, de Dante Alighieri (1265-1321). A primeira jornada do poema transforma-se em montagem da companhia portuguesa O Bando, sob a direção de João Brites.

As estacas equivalem a uma espécie de floresta, território alegórico e claustrofóbico (paradoxalmente frio, à primeira vista), alusivo ao inferno. Vemos de início os 21 atores do elenco, formado pelo Bando e por atores ligados ao Teatro Nacional D. Maria II, a caminharem em círculo. As luzes da plateia ainda estão acesas. A atitude dos intérpretes por enquanto é neutra, as ações estão por acontecer.

Em ‘A divina comédia – Inferno’, os atores de O Bando e seus associados conseguem dizer as palavras do poeta de maneira simples e limpa, ao mesmo tempo incisiva, tornando-as sensíveis inclusive a ouvidos brasileiros

O passeio em torno do cenário (devido a Rui Francisco), que abriga as várias pequenas histórias apresentadas ou narradas, repete-se noutros momentos e remete aos nove círculos do inferno cristão. Pecadores de diferentes pendores e calibres surgem ao longo dos 34 cantos que constituem a primeira parte do poema dantesco. (Tive primeiro a impressão de gratuidade nesse caminhar que se reitera. Depois compreendi o intuito.)

As demais seções do poema são Purgatório e Paraíso, com 33 cantos cada – a simbologia mística do número três rege (ou sugere) inclusive a composição dos versos, distribuídos em tercetos. Os nove círculos infernais envolvem homens e mulheres de índole diversa, dos gulosos aos violentos, dos luxuriosos aos ladrões e assassinos. “Mais de metade do texto original” acha-se no palco, informa Brites em entrevista no programa, na qual anuncia o projeto de encenar as demais partes da obra.

Filipe Ferreira

Cena de ‘A divina comédia – Inferno’, com grupo Teatro O Bando

O próprio Dante torna-se personagem e aparece como protagonista, vivendo e ajudando a contar uma viagem de conhecimento dos vícios e virtudes humanas e de redenção pessoal – aventura da qual o poeta, ao que tudo indica, não pode fugir.

Seu ídolo literário, o latino Virgílio (70-19 a.C.), vem guiá-lo em parte desse trajeto que o levará até o paraíso – pontuado por sustos e perigos. A outra figura central é Beatriz, musa de carne e sangue que acompanha Dante desde o inferno. Personagens mitológicos (como as três Fúrias) ou históricos, pessoas saídas da realidade prosaica ou imagens das mais destemperadas fantasias misturam-se livremente no poema – e no espetáculo.

A primeira pergunta que se pode fazer liga-se ao tratamento desse material, que em geral possui natureza épica, não propriamente dramática. Há histórias, nesse repertório, que são mostradas enquanto acontecem, à maneira tipicamente dramática; várias outras nos chegam sob forma narrativa, ou seja, referidas como episódios que já ocorreram. Acham-se no passado, o aspecto temporal privilegiado pelo épico. Em teoria, temos, portanto, um problema.

É claro: Brites e grupo não subestimaram o risco ou a dificuldade de lidar com tal gênero de histórias. Alternando situações diretamente apresentadas e passagens evocadas, o espetáculo vai tecendo as suas surpresas, que envolvem os obstáculos e ameaças que Dante defronta à medida que avança no interior do inferno, mas também histórias como a de Ugolina, uma das mais impressionantes que ouvimos.

À guisa de castigo, Ugolina foi trancada numa torre com seus filhos, para morrerem de fome. Os pequenos se ofereceram como repasto para salvar a mãe, por dela terem nascido, o que daria à mulher o direito de devorá-los naquela circunstância… Ninguém sobreviveu, é o que o espírito de Ugolina vem nos contar. A atriz Paula Mora sustenta bem o relato, difícil até porque excessivo, perverso.

Filipe Ferreira

Integrante da encenação portuguesa de João Brites que recém-estreou

Não se pense em morbidez, porém; se existe, está incorporada de modo dinâmico ao espetáculo. Ugolina suscita a nossa adesão. O que se insinua a todo tempo é o percurso para o conhecimento, sem o qual também nós, hoje, não sairemos de nossos infernos políticos. O ator Manuel Coelho, que divide o personagem de Virgílio com Rita Brito, fala pungentemente sobre cristãos, muçulmanos e judeus a se dilacerarem uns aos outros, no avesso da utopia cristã de amor e paz incondicionais.

João Grosso, um dos grandes atores portugueses (recordo agradavelmente a sua performance em Manucure, de Sá-Carneiro), escolhe uma atitude perplexa para seu Dante, decerto adequada para o perfil do poeta nas situações agônicas em que aparece – não faltam feras, concretas ou alegóricas, a atormentá-lo. Há, porém, na escolha feita, o risco de a figura ficar algo uniforme. O que se tempera quando, por exemplo, ainda no início de Inferno, o personagem pergunta enfaticamente: se as obras artísticas são crias humanas, então a arte “torna-se quase neta de Deus?”.

O ator divide o protagonista com Carolina Dominguez, assim como Beatriz é interpretada por Sara de Castro e Bruno Bernardo. O diretor optou, portanto, por confiar os três principais personagens – Dante, Virgílio e Beatriz – a duplas de atores, homem e mulher, diluindo monopólios e multiplicando possibilidades. Não será favor algum constatar que todo o elenco se encontra exato em cena.

Filipe Ferreira

Peça tece surpresas quanto às ameaças enfrentadas por Dante em sua jornada

Duas observações, uma sobre a dicção, outra sobre a música. Há pouco tempo ouvi alguém afirmar que o “dizer bem” já não é qualidade essencial no teatro contemporâneo. De que teatro estamos a falar? A depender do projeto, a afirmação pode estar errada. Parece claro que elencos menos hábeis em pronunciar expressivamente o texto (a tradução final desse poema coube a Susana Mateus) não seriam eficazes numa empresa de tal ordem. Os atores de O Bando e seus associados conseguem dizer as palavras do poeta de maneira simples e limpa, ao mesmo tempo incisiva, tornando-as sensíveis inclusive a ouvidos brasileiros.

A música é boa em si mesma e, melhor ainda, se integra admiravelmente aos demais elementos de cena; conta com orquestra e coro em gravação. Foi composta por Jorge Salgueiro, colaborador habitual de Brites. Impressiona a habilidade vocal do elenco, especialmente a das vozes femininas, que cantam ao vivo passagens difíceis, carregadas de dissonâncias, perfeitamente afinadas.

O espetáculo dura cerca de duas horas e meia. Não nos cansa; nos dá trabalho. Obriga-nos a manter a atenção desperta, o que não é fácil por tanto tempo. De todo modo, a tarefa dos espectadores resulta largamente recompensada, como demonstra a empática reação da plateia ao final. Imagens voltam a ser projetadas no epílogo, convidando a contemplar as estrelas nas quais, ao cair da tarde, todos nos transformaremos. Tomara.

Serviço:

A divina comédia – Inferno

Onde: Teatro Nacional D. Maria II – Sala Garrett (Praça D. Pedro IV, 1100-201, Lisboa, tel. 213 250 800)

Quando: Quarta, às 19h; quinta a sábado, às 21h; e domingo, às 16h. Até 4/6

Quanto: 3€ a 17€

Equipe de criação:

Texto: Dante Alighieri

Dramaturgia e encenação: João Brites

Tradução e investigação histórica: Susana Mateus

Com: João Grosso (Dante), Carolina Dominguez (Dante), Rita Brito (Virgílio), Manuel Coelho (Virgílio), Sara de Castro (Beatriz), Bruno Bernardo (Beatriz), Ana Brandão (Fúria Negra), Sara Belo (Fúria Amarela), Lara Matos (Fúria Branca), Lúcia Maria (Diabo Malacoda), Guilherme Noronha (Diabo Caronte), José Neves (Diabo Nemrode), Paula Mora (Ugolina), João Neca (Dolcino), Catarina Claro (Margareta), Raul Atalaia (Ulisses), Cirila Bossuet (Tirésias), Tomás Varela (Bruneto), Juliana Pinho (Camila), Rita Gonçalves (Argenti) e Bonifácio (Bonifácio)

Dramatografia: João Brites e Rui Francisco

Cenografia: Rui Francisco

Dramatofonia e música: Jorge Salgueiro

Figurinos e adereços: Clara Bento

Corporalidade e vídeo design: Stephan Jürgens

Assistência de encenação: Diego Borges

Desenho de luz e vídeomapping: João Cachulo/Contrapeso

Desenho de som: Sérgio Milhano/Pontozurca

Direção de fotografia: Alexandre Nobre

Tradução e investigação histórica: Susana Mateus

Criação e produção: Teatro O Bando

Coprodução: Teatro Nacional D. Maria II, Câmara Municipal de Coimbra, Convento São Francisco e Teatro Nacional São João

Equipe do Teatro Nacional D. Maria II:

Direção de cena: Manuel Guicho, Diana Almeida e Kristýna Repová (estagiárias)

Apoio à operação de luz: Daniel Varela

Apoio à operação de som: João Neves e João Pratas

Maquinaria: Rui Carvalheira

Auxiliar de camarim: Paula Miranda

Ponto: João Coelho

Produção executiva: Pedro Pires

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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