Crítica
Toda arte performática se constitui como processo dinâmico entre entretenimento e eficácia. O argumento é de um dos mais reconhecidos teóricos contemporâneos da performance, o norte-americano Richard Schechner. De acordo com ele, essas duas forças impulsionam desde o rito tribal realizado em torno da colheita ou da guerra, passando pela cena engajada ou pela experimentação radical de linguagem até os musicais da Broadway.
Evidentemente o que se considera eficácia muda ao longo dos tempos e das vertentes. No entanto, ainda na visão de Schechner, em qualquer época, a arte teatral floresce quando essas forças estão presentes em igual medida. Pois é possível dizer que se deve ao equilíbrio entre tais polos a fruição prazerosa proporcionada pelo espetáculo Uma peça por outra, de Jean Tardieu (1903-1995), na montagem do Grupo DasDores de Teatro.
Dirigida por Brian Penido e Guilherme Sant’Anna, trata-se de uma reunião de peças curtas escritas por esse autor francês entre 1955 e 1975, cuja dramaturgia não por acaso foi definida pelo crítico húngaro radicado na Inglaterra Martin Esslin (1918-2002) como Teatro do Absurdo. Fruto de ponto de vista analítico e não originado do movimento de um coletivo de artistas e seus manifestos estéticos, a aplicação do conceito de “absurdo” une obras e autores díspares e é muitas vezes contestada.
A precisão gestual e vocal exigida pela forma dramatúrgica será mantida ao longo de todo o espetáculo, cujo potencial de humor segue uma curva ascendente
A encenação brasileira, no entanto, permite perceber a conexão entre a dramaturgia de Tardieu e a do irlandês Samuel Beckett, unidos por Esslin na categoria ‘absurdo’: o traço comum da crítica aos limites da linguagem humana. Na poética de ambos, as palavras servem mais para esconder do que para revelar, mais abrem abismos do que constroem pontes, e a tagarelice dos personagens não consegue dar sentido às suas existências.
Na obra de Tardieu o problema da comunicação humana é abordado em chave lúdica, o que pode ser constatado desde o primeiro esquete dessa montagem que tem a forma de Cabaré, estilo teatral no qual surgem intercaladas cenas, entreatos e números musicais. Estes são executados ao vivo pelos músicos Jonatan Harold e Bráulio Vidile e interpretados pela cantora Ana Lys, também mestre de cerimônia.
No esquete de abertura, intitulado Zenaide e Oswaldo (interpretados por Clara Carvalho e Brian Penido), o autor se vale de ‘apartes’ para demonstrar a diferença entre o que é dito e o que é pensado por um casal de namorados (aparte é aquela convenção teatral na qual um ator/atriz/personagem interrompe um diálogo para compartilhar um pensamento ‘secreto’ diretamente com o espectador; embora diante dele, o outro personagem fica como que paralisado um instante e não ouve).
O humor brota do exagero no uso do recurso. Além de revelar como a linguagem pode servir para distanciar os falantes, o autor ridiculariza o uso repetido de códigos teatrais por mera inércia, sem apropriação criativa, o que paradoxalmente ele faz. A maestria da encenação brasileira está na escolha da linha de atuação mais pertinente à proposta dessa dramaturgia, um modo de interpretação que é possível associar ao conceito de supermarionete defendido pelo diretor e cenógrafo inglês Gordon Craig (1872-1966).
Para esse teórico da cena, o intérprete teatral deve eliminar qualquer traço de seu ego e ainda desenvolver a precisão dos movimentos das marionetes e a expressividade essencial das máscaras. Talvez não por coincidência, encarnando Zenaide e Oswaldo, os atores Brian e Clara fazem uma remissão corporal aos bonecos movidos à corda das antigas caixas de música.
Ainda nessa cena, elementos como a centralidade do pequeno palco e o véu que age como pátina do tempo parecem ter sido criados como homenagem dos diretores à montagem de mesmo título, dirigida por Eduardo Tolentino com o Grupo Tapa em 1987. Dela fizeram parte a dupla de diretores e a atriz Clara Carvalho que, também naquela ocasião, contracenava com Brian em Zenaide e Oswaldo.
Outro ator do Grupo Tapa, Paulo Marcos, encerra esse esquete com um humor na linha do nonsense, num jogo com a literalidade do recurso chamado deus ex machina, aquela intervenção que soluciona todos os conflitos no desfecho das peças.
Independentemente das possíveis referências, se nessa montagem o humor cáustico produz o efeito desejado, isso se deve em grande parte ao modo como direção e elenco trabalham para limpar da atuação todo resquício de psicologismo. Em substituição, surge uma elaborada partitura de tempos e ritmos tanto nas coreografias bem marcadas como também nos jogos com as sonoridades e variações vocais.
Tardieu valoriza até mais os silêncios do que as palavras. Destas, brinca de retirar o significado literal. Procedimento que, curiosamente, aproxima sua dramaturgia de parâmetros caros à cena performativa contemporânea como a desconfiança para com a linguagem, a negação do sentido unívoco e a valorização da atividade receptiva. Como observa a pesquisadora francesa Judith Le Blanc, Tardieu abre as palavras à riqueza polissêmica, dando ao espectador a liberdade de preencher as lacunas deixadas pelos personagens.
Algo que o público precisa necessariamente fazer no esquete intitulado Para bom entendedor meia palavra…, no qual uma dupla de amantes (Dalton Vigh e Camila Czerkes) se encontra ao acaso na rua, depois de um longo tempo de separação. No diálogo que se segue, eles são incapazes de completar uma única frase. Excesso de cumplicidade? Vergonha e culpa? Pobreza vocabular?
As leituras ficam abertas nesse entreato que ganha ótimas gagues gestuais, como o vaivém de um guarda-chuva, coreografia reveladora do movimento pendular, entre a timidez e a excitação, do casal.
Se é evidente a filiação à montagem do Tapa, grupo ao qual os diretores e boa parte do elenco têm suas vidas teatrais intrinsecamente ligadas, há também diferenças. Não apenas nas peças escolhidas, nem todas são coincidentes, mas também nos procedimentos criativos.
Um dos melhores exemplos está na inserção de uma espectadora perdida (Ana Lys) em Só eles o sabem, personagem inexistente não apenas na montagem anterior, mas também no texto original. Nesse esquete, realizado em chave de melodrama, a crítica recai sobre a arte fechada em si mesma, aquela na qual a fruição se reduz ao pequeno círculo dos criadores. Sem dúvida um risco que assombra o palco em todas as épocas. Ainda nessa cena, o uso dos nomes ‘reais’ do elenco é outro achado cômico da montagem atual.
A imagem explícita da marionete fica restrita ao primeiro esquete, mas a precisão gestual e vocal exigida pela forma dramatúrgica será mantida ao longo de todo o espetáculo, cujo potencial de humor segue uma curva ascendente.
O auge da comicidade, espécie de síntese radical da proposta do autor de perturbação da linguagem, fica para o esquete final, intitulado Conversação Sinfonieta, que reúne todo o elenco e não apresenta qualquer trama. Trata-se de um hilário coral regido por um maestro (Paulo Marcos) cujo humor brota do efeito de deslocamento de significados.
Uma peça por outra trará ao espectador brasileiro mais vivido a lembrança de quadros humorísticos televisivos de muito sucesso, cuja fonte de inspiração, muito provavelmente, terá sido a dramaturgia de Tardieu.
Serviço:
Uma peça por outra
Onde: Teatro Aliança Francesa (Rua General Jardim 182, Vila Buarque, tel. 11 3572-2379)
Quando: quinta a sábado, às 20h30; domingo às 19h. Até 28/6
Quanto: Quinta e sextas, R$20; sábados e domingos, R$ 50
Serviço:
Onde: Teatro Nair Bello (Shopping Frei Caneca, Rua Frei Caneca, 569, 3º piso, tel. 11 3472-2414)
Quando: sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h. De 9/6 a 30/7
Quanto: sexta, de R$ 20 a R$ 40; sábado e domingo, de R$ 30 a R$ 60
Duração: 90 min.
Recomendação: 12 anos
Equipe de criação:
Autoria: Jean Tardieu
Direção: Guilherme Sant`Anna e Brian Penido Ross
Com: Ana Lys, Camila Czerkes, Clara Carvalho, Dalton Vigh, Felipe Souza, José Lucas Bello, Lara Hassun, Paulo Marcos e Brian Penido Ross
Músicos: Jonatan Harold e Bráulio Vidile
Assistente de direção: Ana Lys
Iluminador: Nelson Ferreira
Cenários e figurinos: Ana Lys
Direção musical: Jonatan Harold
Produção executiva: Ariel Cannal
Assistentes de produção: Gabriela Westphal e Jessica Monte
Contrarregras: Alan Foster, Edgard Pedro e Neto Mahnic
Estagiárias: Beatriz Matgos e Mikeli Stella
Assessoria de produção: Luciana Affonso
Artista plástico: Ricardo Dantas
Fotógrafo: Claudinei Nakasone
Assessoria de imprensa: Flávia Fusco
Redes sociais: Helena Dutt-Ross
Edição de vídeo: Lucas Buli
Costureira: Léo Sgarbo
Esquetes e elenco:
Oswaldo e Zenaide
Brian Penido Ross
Clara Carvalho
Paulo Marcos
Para Bom Entendedor Meia…
Ana Lys
Camila Czerkes
Dalton Vigh
Havia uma multidão no solar
Clara Carvalho
Dalton Vigh
Uma palavra por outra
Camila Czerkes
Felipe Souza
Lara Hassum
Paulo Marcos
Só eles o sabem
Ana Lys
Clara Carvalho
Dalton Vigh
Lara Hassum
Paulo Marcos
Conversação Sinfonieta
Ana Lys
Brian Penido Ross
Camila Czerkes
Clara Carvalho
Dalton Vigh
Felipe Souza
José Lucas Bello
Lara Hassum
Paulo Marcos
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.