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Artigo

Novos Repertórios: sob a pulsão do encontro

5.9.2017  |  por Francis Wilker

Foto de capa: Divulgação

Em Curitiba

A Novos Repertórios – Mostra de Teatro de Curitiba realizou sua 10ª edição entre 23 de julho e 2 de agosto, apresentando ao público 12 espetáculos da produção recente da capital paranaense. Historicamente vinculada à programação do tradicional Festival de Teatro de Curitiba, em 2017, o projeto capitaneado pela produtora Michele Menezes dá novos passos na busca por configurar um espaço de maior autonomia e visibilidade à produção teatral local.

Para contribuir na formulação dos novos rumos da mostra, Michele convidou para a função de diretora artística a atriz Giovana Soar, integrante da companhia brasileira de teatro, coletivo que vem inscrevendo um capítulo inspirador e prestigiado na cena contemporânea nacional. Como a própria atriz reconhece, a circulação por diversos festivais e projetos no Brasil e no exterior lhe possibilitou um olhar mais abrangente a respeito de eventos dessa natureza, bem como uma rede de contatos com outros artistas, curadores, pesquisadores e críticos das artes cênicas que podem contribuir com a Novos Repertórios nessa nova fase.

Chama a atenção na iniciativa ‘Mi casas su casa’ a capacidade de envolver os artistas por meio de outras estratégias que não apenas pela apresentação de suas peças. Um café na sede do grupo Obragem; uma tarde na sede da CiaSenhas; uma feijoada na Casa Selvática…

Seus pilares são o reconhecimento e a visibilidade para o trabalho de artistas e grupos locais. Nessa 10ª edição, a dupla convidou um time de artistas para integrar o corpo de curadores. Assim, além de seus próprios olhares, o recorte foi desenhado a partir do diálogo com Fábio Kinas, Henrique Saidel, Laura Hadadd e Nina Rosa Sá. Como afirma o texto do catálogo, a curadoria colaborativa “parte da ideia de traçar um panorama do que se faz no teatro e na dança e seus flertes com a performance”.

Se por um lado a perspectiva do panorama pode dificultar o endereçamento de vetores mais assertivos numa proposta de curadoria diante de uma produção que não se apresenta tão numerosa, por outro, foi possível perceber na paisagem criada pelos trabalhos programados um percurso despreocupado em estabelecer unidades. Ao contrário, se concentrou em expor a diversidade de temas, linguagens e procedimentos, abrindo espaço até mesmo para espetáculos que ainda se mostram em rotas de amadurecimento de um discurso e linguagem próprios.

Interessante perceber como a programação foi capaz de mobilizar um grande número de espectadores e perfis diferentes de público, não fazendo da mostra um programa de teatro restrito aos seus pares. Uma plateia que contou com estudantes, com seguidores do Antropofocus, grupo dedicado à comédia e que angaria ávidos espectadores da capital e regiões metropolitanas, bem como a forte presença do movimento negro e dos praticantes do candomblé nas duas sessões de Macumba, da companhia Transitória, apenas para citar alguns exemplos mais emblemáticos e que ilustram como a mostra, desvinculada das grandes proporções do Festival de Curitiba e de tantos trabalhos nacionais e internacionais, conseguiu provocar o público da cidade a ver o teatro que se produz ali, bem debaixo das icônicas araucárias.

Divulgação

O coletivo Selvática Ações Artísticas abrigou feijoada em sua Casa durante a mostra

Um aspecto que gostaria de ressaltar, justamente por não encontrá-lo usualmente em outros festivais no país, são as ações “Mi casa su casa”, divulgadas na programação. Assim como os espetáculos, essa proposta tinha como objetivo a realização de atividades conviviais nas sedes de seis grupos. Chama a atenção nessa iniciativa a capacidade de envolver os artistas por meio de outras estratégias que não apenas pela apresentação de suas peças. Um café da tarde na sede do grupo Obragem para discutir curadoria; uma tarde na sede da CiaSenhas para que qualquer artista da  cidade pudesse expor um pouco de sua trajetória e interesses aos curadores que foram convidados para acompanhar a mostra; uma feijoada na Casa Selvática, um espaço de liberdade na paisagem da cidade ordenada e asséptica, onde se desenvolvem poéticas dedicadas às questões de gênero, às temáticas transexuais, ao hibridismo para além da dimensão artística, mas dos corpos, das alteridades, projetos que buscam estabelecer trocas com as travestis da região, apenas para citar algumas de suas características. Por isso mesmo, um terreiro de diversidade, constantemente ameaçado por vizinhos, pela polícia e pela velha moral da tradicional família brasileira.

Identifico nas atividades “Mi casa su casa” uma estratégia que pode contribuir de maneira ímpar para que os artistas de Curitiba se sintam pertencentes à Novos Repertórios de maneira singular. Um modo de fortalecer, a partir dos pares, a importância e sentido da mostra. Há nessa experiência iniciada nessa edição uma pulsão de encontro para além do produto artístico a ser apreciado, algo que se desenha no encontro vivo no espaço de criação e salvaguarda do fazer de cada coletivo, nas memórias de suas paredes, na possibilidade de comer junto um churrasco ou um bolo com chá e quentão. São espaços de convívio que fortalecem a troca, o estar junto, o diálogo para além das diferenças e preferências nos interesses temáticos e de linguagem. Artistas se visitando e, no meio do churrasco na Casa do Damaceno, uma leitura dramática pode nos proporcionar conhecer seu novo texto. No “Cabaré das Vedetes” regado à feijoada, na Casa Selvática, somos surpreendidos pelo trabalho da cantora e atriz Simone Magalhães, atravessados por sua voz que preenche a sala de ancestralidade, afeto e crítica, como na música Por que não tem paquita preta?.

Divulgação

A curadoria foi tema de um dos encontros da mostra curitibana Novos Repertórios

Partindo dessa noção de pulsão de encontro que se mostrou com contornos mais fortes na programação por meio do “Mi casa su casa”, talvez resida aqui uma característica que pode se constituir como traço identitário da Novos Repertórios e como possibilidade de verticalização para as próximas edições: Como essa noção de encontro pode ser levada às últimas consequências? Como mobilizar o público em geral para as atividades nas sedes dos grupos? Como o encontro com artistas e grupos de outros estados poderia oferecer atritos-tensionamentos-convergências que contribuam com as pesquisas dos coletivos/artistas curitibanos? Como a curadoria pode identificar temas que emergem do panorama cênico da capital e criar encontros com pensadores de outros campos do conhecimento e que podem ampliar as visões acerca desses temas? É possível criar dispositivos em que os espectadores se encontrem a partir do ponto de partida que é a apreciação do espetáculo? Como o encontro entre curadores e críticos de diferentes regiões pode também ser convívio e produção de modos de acompanhar um festival ainda pouco experimentados?

Há uma frase atribuída ao diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa: “Não há nada mais subversivo do que o encontro”. A Novos Repertórios mostrou que está pronta e ávida por criar encontros estimulantes, como foi pra mim o encontro com parte considerável da cena curitibana, e, também, o encontro mais que especial com o artista por trás da obra e as pessoas que existem por trás do artista, quando com elas me sentei à mesa para comer, conversar e descobrir outros mundos.

.:. O diretor, performer, pesquisador e professor de teatro Francis Wilker viajou a convite da organização da Novos Repertórios – Mostra de Teatro de Curitiba.

Diretor, performer, pesquisador e professor de teatro. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Licenciado em Artes Cênicas pela UnB. Fundador e diretor do grupo brasiliense Teatro do Concreto. Atuou como docente na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (2004 a 2011). Tem artigo publicado na revista Sala Preta (ECA-USP); Subtexto (Galpão Cine Horto-MG); Textos do Brasil (Ministério das Relações Exteriores-DF). Consultor da série Linguagem teatral e práticas pedagógicas, da TV Escola. Além disso, colabora com alguns festivais como debatedor.

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