Crítica
Numa mesa de bar conversam Peixoto e Edgard: “Você está alto, eu estou alto, hora de rasgar o jogo, de tirar todas as máscaras: você é o que se chama de mau caráter?” São essas as primeiras palavras da peça Bonitinha, mas ordinária, de Nelson Rodrigues. Ao longo do diálogo a pergunta se desdobra: “Você quer subir na vida? É ambicioso? O que você faria para ficar rico?
É possível dizer que as mesmas indagações, em outros termos, detonam a ação da peça A visita da velha senhora, do suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), em cartaz no Teatro do Sesi-SP. Produzida e protagonizada pela atriz Denise Fraga e dirigida por Luiz Villaça, com doze intérpretes. Nas duas tramas os embates se dão a partir de uma proposta de enriquecimento cuja aceitação os próprios personagens reputam infame.
Se há pontos de contato, há também diferenças. Na dramaturgia rodriguiana, a oferta é da aliança espúria e da corrupção moral enquanto na peça de Dürrenmatt os valores em jogo dizem respeito ao acordo ético coletivo que nos define como humanos e nos vincula socialmente.
Pensar sobre o contraponto entre os desejos de afetar que moldam uma obra e o que realmente se dá na interação com o público pode tirar o sono de qualquer artista
A velha senhora do título é Claire Zahanassian (Denise Fraga), milionária que retorna à sua cidade natal, Güllen, um vilarejo economicamente arruinado para o qual promete doar a vultosa soma de um bilhão em moeda corrente. Em discurso público, ela afirma que metade da quantia deve ser investida na cidade e a outra metade dividida em partes iguais para cada um dos cidadãos.
Mas não se trata exatamente de uma doação e sim de uma relação de troca, uma espécie de transação comercial macabra: para que as pessoas recebam o dinheiro é preciso que matem um habitante da cidade. E ela logo aponta o seu alvo, Alfred Krank (Tuca Andrada), um antigo namorado de juventude que a abandonara grávida.
A recusa é veemente. Como seria de se esperar, todos reagem indignados, no momento mesmo em que a proposição é proferida. São pessoas civilizadas e não selvagens que matam uns aos outros por alimento e território. Afinal, a espécie humana é a única capaz de pensar sobre seus atos. Mas em que medida isso a torna distante das feras? Vale lembrar que A visita foi escrita em 1955, dez anos depois do fim da Segunda Guerra, quando a opinião pública se chocava não apenas com a amplitude das atrocidades cometidas nos campos de concentração, mas também pela racionalidade das justificativas de quem as perpetrou.
Diferentemente do personagem rodriguiano, que expõe com clareza o aspecto do caráter, Claire chama de justiça o seu ato e se instala na cidade exibindo ostensivamente sua riqueza à espera do efeito do veneno inoculado. Em sua ardilosa tessitura dramática, Dürrenmatt transfere aos receptores da proposta a responsabilidade de avaliar suas implicações. Espectadores incluídos.
Até que ponto conseguimos embasar com argumentos, de ordem econômica ou moral – Krank pecou na juventude e é, portanto, também culpado –, um ato indefensável do ponto de vista ético? Não poderia soar mais pertinente endereçar esse questionamento ao espaço público nos tempos que correm. O ardil do autor suíço é valorizado na direção de Villaça que transmuta todo o teatro na cidade de Güllen. Nessa Ágora contemporânea, o espectador se transforma no coro convidado a cantar alegremente em homenagem à senhora em sua chegada e também é convocado à votação coletiva que decidirá o destino de Krank. Participa assim, sem ser enganado diga-se, de um simulacro de assembleia popular preparada para dar aparência de decisão democrática a um acordo previamente arranjado. Tudo muito civilizado.
“Até que ponto posso ser fiel ao que penso sem sucumbir ao poder vigente?” Poderia ser um comentário sobre A visita, mas foi como Denise Fraga expressou a dúvida que gostaria de provocar ao escolher o texto de sua montagem anterior, Galileu, Galilei, baseada em A vida de Galileu, de Bertolt Brecht. A peça narra a saga do cientista que, no século 17, pressionado pela Santa Inquisição, renegou ter comprovado a teoria de que a Terra girava em torno do Sol. Cedeu assim ao poder obscurantista que, por sua vez, se via ameaçado pela ciência. E se a atitude de Galileu tivesse sido outra? Teria angariado apoios e mudado a História? Era a pergunta sugerida pelo espetáculo em 2015.
Ao que tudo indica, as ideias vêm na frente de qualquer outro propósito quando essa atriz investe num projeto cênico. Denise Fraga filia-se à determinada tradição brasileira de intérpretes produtores cuja contribuição para história do teatro é inegável. Criadores cuidadosos com a forma da arte, que apostam na sensibilidade da plateia e estão dispostos a fazer do teatro meio de expressão para as angústias de seu tempo, mas também profissão e meio de vida. Embora tenham acumulado um dos capitais mais preciosos da atividade teatral, um público cativo, é característica dos artistas dessa linhagem não tratar esse tesouro como propriedade privada, por isso evitam os monólogos e investem em equipes numerosas.
Se há clareza no que motiva o gesto criador da atriz na escolha do texto de Dürrenmatt, sempre é possível perguntar sobre sua efetividade. Pensar sobre o contraponto entre os desejos de afetar que moldam uma obra e o que realmente se dá na interação com o público pode tirar o sono de qualquer artista. E se acontece o oposto do pretendido? A questão ganha relevância e complexidade, este é ponto, quando a cena alcança o chamado grande público, ou seja, quando se rompe o estrito vínculo de afinidade ideológica ao qual, infelizmente, fica restrito o círculo dos espectadores de algumas das encenações mais inquiridoras, ao menos na cidade de São Paulo.
Denise Fraga atrai um grande público ao teatro, é fato. A alma boa de Setsuan estreou com casa cheia no Teatro Municipal de Paulínia, de 1,2 mil lugares, em 2010. Galileu, Galilei conseguiu lotar as 672 poltronas do Teatro Tuca durante toda a temporada e fez apresentações em vários teatros dos CEUs, centros educacionais administrados pela Prefeitura de São Paulo. E não é diferente com a atual montagem, que vem atraindo público diverso em sessões lotadas, de quinta a domingo, no Teatro do Sesi, de 250 lugares.
Aceitando que o teatro floresce quando eficácia e entretenimento estão presentes em igual medida, como escreve o pesquisador norte-americano Richard Schechner, a reação do espectador de A visita, ao menos nas duas sessões acompanhadas, permite levantar dúvida sobre o equilíbrio entre esses polos. Alcançado em excelente medida, do ponto de vista aqui defendido, nas duas montagens baseadas em textos de Brecht.
Desta vez, porém, uma parte considerável da plateia diverte-se muito com a situação – que é mesmo tratada na chave da tragicomédia desde a dramaturgia original –, mas parece não conseguir pesar o que está em jogo. Se a avaliação procede, o problema está no público ou na encenação?
Evidentemente a premissa é incerta, afinal, a ação do teatro sobre a percepção, além de ser de difícil mensuração, segue reverberando nos corações e mentes muito depois do fechamento das cortinas. Feita a ressalva, a abordagem dessa hipótese tem como objetivo a tentativa de ampliar a reflexão sobre um trabalho cuja relevância está considerada.
O primeiro aspecto, talvez mais importante, diz respeito ao poder de sedução da atriz. Suas virtudes de intérprete podem se transmutar em problema, uma vez que cabe a ela ser a antagonista do ideário que quer transmitir. “Pensar é um dos maiores prazeres da raça humana”, afirmava Denise Fraga no papel do cientista Galileu. Ocorre que o pensamento sobre relações de poder e a ética social partia dos protagonistas nas peças de Brecht. O oposto do que se dá em A visita.
No drama de Dürrenmatt, é possível dizer que tese e antítese estão no palco, mas cabe à plateia a síntese dialética. E aos encenadores o desafio de instaurar em cena a possibilidade de resistência à tese de Claire de que o dinheiro tudo compra. Por ironia, em pleno Centro Cultural da Fiesp.
Para o sucesso da empreitada, a trupe tem de evitar a tentação dos maniqueísmos. A forma dramática aborda as questões sociopolíticas a partir do indivíduo, seus sentimentos e suas relações conviviais, sempre levando em conta as contradições da condição humana, capaz tanto do gesto de grandeza quanto do ato covarde e mesquinho.
Denise Fraga poderia ter composto a velha senhora como um ser inteiramente grotesco. Elementos para isso não faltariam no texto, a começar pelo corpo de Claire deformado por próteses até a prepotência com que narra, com absoluta presunção de impunidade, como mandou perseguir, cegar e castrar desafetos. Porém, reduzir à caricatura um personagem capaz de comprar representantes do poder executivo, do judiciário, da Igreja e ainda controlar a economia de toda uma cidade, empobreceria a arte e a percepção que dela se pode obter da realidade.
Mas, partindo do princípio de que Denise Fraga é o principal alvo da atração do espectador, até que ponto sua expertise não contribui para adicionar uma camada de sedução ao seu trabalho, encobrindo assim, pela identificação e empatia provocadas, as questões em foco? Não há resposta segura. Uma vez configurada, essa interpelação implica na análise das outras figuras em cena e seus intérpretes.
Em termos de forma dramática, Krank é papel central. Pode-se dizer que Dürrenmatt empresta a ele um componente trágico. Numa perspectiva contemporânea da tragédia, Édipo não seria culpado, porque desconhecia ter matado o pai e não sabia que desposara sua mãe. Ocorre que os gregos desconheciam a noção de indivíduo e assim ele é responsável pela cidade. Nas tragédias, o ato desmedido do herói, provocado pela hybris, uma espécie de orgulho, sempre atrai a peste para a cidade, é o argumento do filósofo Gerd Borheim. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Krank manipulou o judiciário no passado para não ter de reconhecer a paternidade sobre o filho de Claire e, desde o anúncio da visita, imagina poder novamente manipular os sentimentos dela para angariar benefícios. Tudo sob o beneplácito dos moradores que já planejam elegê-lo prefeito. Mas como herói trágico, ele viverá a experiência do terror – ao perceber os efeitos da cobiça sobre os que o rodeiam – e também o reconhecimento da falha ética, e trágica, que não é só dele, mas que vincula todos na causa da ruína da cidade.
Falta à encenação dar visibilidade a esse percurso. Tuca Andrade constrói Krank como um caipira corcunda e subserviente, em atitude quase amorosa na relação com Claire, sem alteração significativa nessa imagem. Não é possível detectar na sua performance a passagem da leviandade inicial ao terror e, finalmente, ao entendimento de si e do mundo. Salvo engano, sua interpretação mantém o reconhecimento do personagem circunscrito ao campo afetivo. Ora, se assim fosse, por que não se suicidaria como lhe foi proposto, salvando a cidade? O que aprendeu no processo foi que não tem valor a prosperidade construída sobre tais bases.
Evidentemente, num espetáculo que tem doze atores e atrizes em cena, alguns deles se revezando em vários papeis, a responsabilidade se distribui entre todos. Sem passar pela mesma transformação de Krank, o professor, papel de Romis Ferreira, também se dá conta da origem e dimensão da ruína da cidade, mas terá de enfrentar as próprias contradições e exercerá resistência hesitante. Assim como o padre (Eduardo Estrela) cuja crise moral expressará numa espécie de surto, logo apaziguado.
Se tais conflitos internos não vêm à tona em todas as nuances, a encenação fica circunscrita à trama amorosa entre Claire e Krank. O risco, então, é que seja recebida como um roteiro clássico de vingança. Até por hábito cultural, o público brasileiro tende a aderir a essa camada de leitura. Seria leviano afirmar que essa diluição ocorre de forma aguda na encanação de A visita da velha senhora, até porque é quase impossível ignorar o que está em jogo, mas há uma tibieza em cena.
A lassidão detectada nas performances pode ser fruto do desejo de enfatizar a (dissimulada) passividade dos personagens. Estes, enquanto se endividam na certeza do ganho próximo, fingem não perceber as implicações do desfecho desejado. Na origem, a crítica do Dürrenmatt possivelmente tinha como alvo a inércia dos europeus para com a ascensão do nazismo. Mais um alerta trazido pelo texto que temerosamente se atualiza.
Luiz Villaça é um diretor de televisão e cinema. Na linguagem que domina, a câmera é capaz de captar um piscar de olhos, um crispar de mãos e, por meio de um close, amplificar filigranas. O teatro exige atuação de corpo inteiro e a difícil arte de dar visibilidade à sutileza por meio do grande gesto. A falta de intimidade de Villaça com essa vertente da cena pode ter contribuído para interpretações mais contidas.
A opção de trazer a imprensa televisiva para a cena final parece ter como objetivo à crítica à espetacularização da política. O que é sublinhado pelo procedimento de repetição do discurso do prefeito (Fábio Herford). Proferido com calculada serenidade num primeiro momento, torna-se inflamado e retórico quando reproduzido para a câmera. Porém, se a forma da crítica é a mesma daquela que se aponta como problema, o perigo é reforçar o que se queria rejeitar. Concretamente, para alguns, o teatro se transforma em alegre programa de auditório.
A adesão aparentemente irrestrita de parte da plateia à proposta de enriquecimento ilícito talvez não se deva a problemas da cena, ou ao menos não só a eles. Nesse momento histórico de profunda descrença nas instituições públicas torna-se mesmo difícil a defesa dos vínculos de solidariedade social como cerne da organização política. A reação da plateia é também signo da naturalização de comportamentos individualistas e mercantilistas cada vez mais arraigados na cultura.
Serviço:
Onde: Teatro do Sesi (Avenida Paulista, 1.313, metrô Trianon-Masp, tel. 11 3146-7439
Quando: Quinta a domingo, às 20h. Até 26/11
Quanto: Grátis. Reservas antecipadas de ingressos online pelo portal do Sesi
Duração: 120 minutos
Classificação indicativa: 14 anos.
https://www.facebook.com/eduardo.s.barata/videos/1614882878594955/
Equipe de criação:
Autor: Friedrich Dürrenmatt
Stage rights by Diogenes Verlag AG Zürich
Tradução: Christine Röhrig
Adaptação: Christine Röhrig, Denise Fraga e Maristela Chelala
Direção geral: Luiz Villaça
Com: Denise Fraga, Tuca Andrada, Ary França, Fábio Herford, Daniel Warren, Romis Ferreira, Maristela Chelala, Renato Caldas, Eduardo Estrela, Beto Matos, Luiz Ramalho e Rafael Faustino
Direção de produção: José Maria
Direção de arte: Ronaldo Fraga
Direção musical: Dimi Kireeff
Trilha sonora original: Dimi Kireeff e Rafael Faustino
Desenho de luz: Nadja Naira
Direção de movimento: Keila Bueno
Direção vocal: Lucia Gayotto
Visagismo: Simone Batata
Assistente de direção: André Dib
Assistente de produção musical: Nara Guimarães
Engenheiro de mixagem: Fernando Gressler
Produção executiva: Marita Prado
Assistente de produção: Cristiane Ferreira
Camareira: Maria da Guia
Assistente de iluminação: Robson Lima
Design de som: Carlos Henrique
Cenotécnicos: Jeferson Batista de Santana, Edmilson Ferreira da Silva, Douglas Caldas
Assessoria financeira: Valkíria Góes
Fotografia: Cacá Bernardes
Assessoria de imprensa: Morente Forte Comunicações
Produção: NIA Teatro
Apoio: Bradesco
Realização: Sesi-SP
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.