Crítica
Diante da remontagem de Bispo (2001), solo do ator João Miguel, é possível raciocinar segundo o artista e pensador francês Antonin Artaud (1896-1948): “Tenho uma única preocupação: refazer-me!”.
A “refazenda” do também diretor baiano com a criação que o projetou nacionalmente mostra-se relevante por causa do percurso que esse artista inscreve nas entranhas da obra exibida pela primeira vez no início deste século, sob codramaturgia e codireção de Edgard Navarro, o inventivo cineasta conterrâneo (Eu me lembro, 2005).
Para o espectador que assistiu àquela versão, em seus primeiros anos, constitui privilégio fruir a nova concepção experimentada desde o final de 2015, em Salvador, e depois em circulação pelo país.
A incontornável marca do tempo incide sobre o espetáculo que São Paulo recebeu em 2017, no Sesc Bom Retiro. Um amadurecimento evidente na qualidade da performance, na expansão dos elementos cenográficos e visuais, se considerado o solo original visto na cidade em 2003, em curta temporada, num galpão da antiga unidade do Sesc Belenzinho.
Miguel é impregnado de rigoroso trabalho sobre si nos 16 anos de Bispo – ou 20 anos, se somados os quatro dedicados a burilar esse universo ao lado de outros criadores, instinto colaborativo ora formalizado no Coletivo Bispo.
Em mais da metade desse período ele foi abduzido pelo cinema – de produções autorais em sua maioria (como Cinema, aspirinas e urubus, de 2005; Estômago, 2007; Ex isto, 2010; e Xingu, 2011).
Consta breve janela com outro monólogo, Só (2009), texto da italiana Letizia Russo, por meio do qual venceu o Prêmio Shell SP de melhor ator. O retorno ao tablado ocorre sob abordagem mais essencial do ser.
Para a psiquiatra alagoana Nise da Silveira, a arte pode florescer a partir desses ‘estados múltiplos de desmembramento do ser’, como escreveu em artigo a respeito de Antonin Artaud, que os expressava com ‘claridade incrível’. O espectador tem essa convicção diante de ‘Bispo’
Uma vez contornados os rótulos da doença, como exprimir a claridade invisível desse inconsciente cheio de opinião do narrador-título?
Há 14 anos, em entrevista a este jornalista, publicada na Folha de S. Paulo por ocasião da estreia paulistana, o ator dizia evitar a peça biográfica em busca de acesso aos conteúdos arquetípicos do paciente e artista plástico Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), ex-soldado da marinha e pugilista sergipano que passou meio século internado na Colônia Juliano Moreira, antigo hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, após perambular pelas ruas em estado de delírio.
Miguel opera segundo o princípio da radial invenção de mundo de Bispo do Rosário. Afinal, como este, Artaud sofria de esquizofrenia paranoide, a mais comum delas, caracterizada pela perda de contato com a realidade.
Ambos religam genialidade, lucidez e loucura a partir dos estados místicos, físicos e mentais.
Para a psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999), a arte pode florescer a partir desses “estados múltiplos de desmembramento do ser”, como escreveu em artigo de 1989 a respeito do artista francês que os expressava com “claridade incrível”. O espectador tem essa convicção diante de Bispo.
João Miguel dá passagem integral a Bispo do Rosário, não há alívio anímico ou físico. A alteridade reina desde que ele surge por debaixo do manto bordado até a ascensão ao céu, de braços estendidos.
O espaço de apresentação (ou de “presentar”) não é mais o galpão multiuso de origem, cujo cenário envolvia o ator e o público em paredes de lona de circo. É desde a plateia frontal que avistamos no palco os objetos, faixas, cetros, miniaturas, estandartes, retalhos e painéis a espelharem paramentações e composições em Bispo.
Ao elaborar essa instalação, o espetáculo supera o vão à italiana e mantém a proximidade, estimulando a troca direta. A conversão do lugar em linguagem – palco convencional espichado à fileira de poltronas por meio de fitas coloridas – é a ponta mais perceptível do êxito de Bispo ao não desfazer o vínculo ritual de base.
A trama cenográfica composta de barbantes, cordas, oratórios e uma miríade de objetos suspensos ou dispostos no chão estende a sugestão do quarto do pavilhão hospitalar à arquitetura global da sala.
São reveladoras as intervenções extra palco, quando o diálogo de Bispo com a estagiária de psicologia, sua Julieta imaginária – a atual psicanalista Rosângela Maria Grilo Magalhães – é endereçado à audiência.
“Mas você sabe como termina a peça Romeu e Julieta? Eles morrem”, pondera a estudante, ressabiada, quando o artista-paciente evoca Shakespeare num dos seus encontros. “Claro que conheço. Mas não quero viver o final. Isso é só uma representação. Você nunca foi ao teatro?”, responde-lhe o personagem-narrador, conforme trecho do livro Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto (editora Rocco, 1996), de Luciana Hidalgo, uma das referências para a pesquisa dramatúrgica.
Em vários momentos João Miguel conduz o público como que pelas mãos. Risca silêncios, imprime algum ar picaresco do palhaço que não dorme dentro de si (batizado “Magal”).
E a teatralidade subsiste com refinamento à exposição do sofrimento e do sagrado, dimensão refletida no diálogo com a Virgem Maria, como a replicar a visão que o então rapaz teve, num dia de 1938, de Jesus Cristo conduzido por sete anjos azuis.
O espetáculo de tom por vezes inevitavelmente messiânico não deixa de aportar as contradições do homem dominador na defesa intransigente do território imaginário da sua arte-sucata que reluz nos sentidos da cena.
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Equipe de criação:
Direção, dramaturgia e atuação: João Miguel
Concepção: João Miguel e Coletivo Bispo
Texto: Edgard Navarro e João Miguel
Diretoras colaboradoras: Cristina Moura e Juliana Jardim
Trilha sonora: André T. e Pupillo
Desenho de som: André T.
Cenário: Zuarte Júnior
Concepção painel: Domenico Lancellote
Concepção de “caixas”: Marepe
Iluminação: Luciano Reis
Figurino e confecção do manto: Adriana Hitomi e Rebeca Matta
Confecção de roupa: Ró Amorim
Operação de luz: Luciano Reis
Operação de som: Marina Fonseca
Preparação corporal: Jorge Itapuã Beiramar
Programação visual: Adriana Hitomi
Registro audiovisual e vídeos: Eryk Rocha, Lúcio Cesar
Fotografias: Diney Araújo, Rebeca Matta e Zélia Uchôa
Produção: Nanego Lira e João Miguel
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.