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Crítica

‘Hamlet’ e o poder de pedra das palavras

12.3.2018  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

Hamlet é como uma esponja. Ele absorve imediatamente todos os problemas de nosso tempo. Tal afirmação, do polonês Jan Kott, ganha inusitada concretude na criação conjunta do diretor e dramaturgo suíço Boris Nikitin e do perfomer e músico eletrônico alemão Julian Meding intitulada Hamlet e apresentada na MITsp – Mostra Internacional de São Paulo. Nesse trabalho, o campo da luta política é o da normatividade social e sua incidência sobre os corpos.

Olhar e ser olhado criticamente. Eis um atributo do ato criador. É também questão importante em Hamlet e parece ter sido elegida por Nikitin e Meding como central em sua aproximação com a peça. Ainda segundo Kott, é possível trabalhar com apenas um dos muitos traços latentes nesse personagem e ainda assim atualizar e enriquecer a leitura da obra.

No original shakespeariano, a atitude corporal do protagonista é alvo de crítica antes dele encontrar o fantasma do pai, antes mesmo de ter sido informado sobre sua aparição. Na primeira fala a ele direcionada, o rei o acusa de manter os olhos baixos e de suspirar, de vestir luto e de andar pelos cantos em vez de ter o comportamento altivo e viril, deduz-se, adequado ao futuro herdeiro do trono.

Sem minimizar a importância do avanço das lutas identitárias no que diz respeito à jurisdição e às políticas públicas voltadas para a diversidade de gênero, etnias e culturas, nem sempre conquistas institucionais são eficazes para alterar as subjetividades e os estigmas no imaginário coletivo. Promovem aceitação, até mesmo proteção, mas não convívio

No momento histórico em que a peça é escrita a ideia de autonomia do sujeito está sendo forjada e não por acaso Hamlet é considerado o primeiro grande personagem da modernidade. Fazer de seu corpo a expressão de sua subjetividade é poder que não é dado ao príncipe guerreiro à época. Hamlet toma esse poder para si e enfrenta a estranheza que seu comportamento provoca.

Meding entra em cena vestindo uma máscara animalesca. Quando descobre o rosto, tem cabeça e sobrancelhas raspadas. Os gestos são afetados e o tronco tremelica constantemente, imagem captada por uma câmera e ampliada no telão que ocupa o centro do palco. A atitude corporal ganha lugar de destaque nesse trabalho e chega a relegar à penumbra e ao fundo do palco um quarteto musical barroco “coroado de prêmios”, como informa Julian Meding.

Se o ocultamento, ou a dose correta de discreção, é a atitude exigida de todo aquele que contraria os códigos sociais hegemônicos, então ocupar os espaços de convívio com presença singular e atuante é poder. A performance de Meding está para as convenções do palco como o comportamento de Hamlet para as condutas esperadas de um nobre príncipe. A voz é monocórdia, os movimentos são erráticos, as músicas que ele canta são interrompidas sem acabamento. Depois de cumprimentar a plateia ele afirma: “Isto não é performance. Isto não é teatro. Isto não é concerto. Isto não é vida real. Isto não é realidade. Isto não é um primeiro ato”.

Guto Muniz/Foco in Cena

A atitude corporal de Julian Meding é parte substancial da narrativa

Menos do que negação dessas linguagens e possibilidades, o que parece estar em jogo é o direito de transitar por todas elas sem que tenha de se ater às suas convenções. Como performer, assume o seu nome, para logo depois colocar em dúvida a veracidade da informação. Fala sobre ter perdido o pai recentemente e conta uma história acerca dessa relação, mas afirma também que nada do que diz é verificável.  “Pela manhã, ser. À noite, não ser. À tarde, ambos. Não ter de ser. Não ter de viver. Poder viver.” E eis que o famoso monólogo se atualiza.

Assim como são inesgotáveis as possibilidades de atualização de Hamlet – e mesmo que tênue há diálogo com a peça do bardo na dramaturgia desse solo –, também serão sempre múltiplas as aproximações críticas à obra teatral. Criado para esses tempos de expansão da consciência do corpo como campo de luta e exposto ao olhar, esse solo se integra a um rol de cenas híbridas que exigem abertura de brechas no repertório intelectual e afetivo para sua plena recepção.

Nas poéticas de cena, não raro, é da pessoa individualizada que as questões sociais são pensadas. Sem minimizar a importância do avanço das lutas identitárias no que diz respeito à jurisdição e às políticas públicas voltadas para a diversidade de gênero, etnias e culturas, nem sempre conquistas institucionais são eficazes para alterar as subjetividades e os estigmas no imaginário coletivo. Promovem aceitação, até mesmo proteção, mas não convívio.

Guto Muniz/Foco in Cena

Meding e o teatro como lugar onde se pode compartilhar deficiências

É o que salta aos olhos no vídeo exibido no telão num momento em que, não por acaso, Meding deita no chão, escapa do olhar da câmera, e cede espaço para corpos de idosos que ocupam camas hospitalares ou sofás num desses locais de acolhimento. Ao que tudo indica não se trata de uma denúncia de maus-tratos. Ao contrário disso, ao menos para os espectadores brasileiros que já lidam com a senilidade extrema em família, certamente em menor número do que nas plateias europeias, torna-se possível identificar a adequação das instalações no que diz respeito à limpeza e ao conforto físico e material. O que está em jogo é o olhar estigmatizado sobre o corpo senil. A demência e a decrepitude pedem cuidados especiais, mas não o isolamento que torna monstruoso o que é apenas humano.

Para quem viu naquelas imagens uma espécie de exibição (ou exploração) da miséria, o vídeo provocou irritação. Porém, ainda que Meding não aponte uma relação direta, é possível perceber a motivação para o procedimento quando ele define o teatro como sendo o último espaço no qual uma interação solidária talvez ainda seja possível. Um lugar onde se pode compartilhar deficiências.

Guto Muniz/Foco in Cena

Quarteto musical contracena ao fundo em ‘Hamlet’

Fragilidades não são bem-vindas no sistema capitalista organizado para a produtividade. Se a Dinamarca é prisão para Hamlet, também soa como tal a descrição que ele faz da pequena e ordenada cidade europeia de telhados vermelhos que seria a sua. Um dos desejos expressos: o de quebrar as vidraças das janelas. No texto do escritor Joca Terron para espetáculo Bom Retiro, 958 metros – criação do Teatro da Vertigem, grupo dirigido por Antônio Araújo, também responsável pela programação da MITsp – uma personagem, diante de portas fechadas, diz: “Às vezes eu gostaria que as palavras fossem pedras. Pedras, é. Assim, bastava eu falar uma frase bem contundente diante de uma porta dessas, e o vidro se partiria. Seria ótimo, não seria?”

Palavras seguem valorizadas nessa cena, mesmo que não pela via das inflexões sonoras, e podem ser incisivas como o olhar de Meding que se agiganta na tela com aproximação da câmera. Há 50 anos, talvez não houvesse plateia capaz de sustentar o estranhamento desse solo. Nas artes cênicas, obras só ganham existência no encontro com o público e se esvanecem todas as vezes que há recusa de olhar e de escuta. Se o Hamlet de Shakespeare é texto considerado paradigmático do movimento de passagem do mundo antigo ao moderno, outro movimento sísmico coloca em crise justamente aquele sujeito que começava a se constituir na era elisabetana. E cria as condições para o surgimento do Hamlet de Nikitin e Meding. Cuja ambição evidente é interferir nesse processo de desmonte.

.:. Mais informações sobre a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Equipe de criação:

Concepção, texto e direção: Boris Nikitin

Atuação, texto e canções: Julian Meding

Cenário e figurinos: Nadia Fistarol

Vídeo: Georg Lendorff e Elvira Isenring

Concepção musical: Boris Nikitin, Julian Meding, Matthias Meppelink e Der musikalische Garden

Técnico de som: Matthias Meppelink

Supervisão técnica e iluminação: Anahi Perez

Supervisão de produção: Annett Hardegen

Quarteto barroco: João Guilherme Figueiredo, Letizia Roa, Pedro Augusto Diniz e Raquel Aranha

Apoio do programa <<Coincidência>> Intercâmbios Culturais Suíça-América do Sul, da Fundação Suíça para a Cultura Pro Helvetia

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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