Encontro com Espectadores
10.5.2018 | por Teatrojornal
Foto de capa: Christiane Forcinito
O projeto “Semear _ por uma arte do encontro sem fronteiras”, da Trupe Sinhá Zózima, foi tema do 16º. Encontro com o Espectador, que aconteceu no Ágora Teatro em 27 de novembro de 2017. Estiveram presentes, entre outros – e além dos artistas pesquisadores do núcleo artístico permanente do grupo –, a dramaturga Cláudia Barral, autora de Cordel do amor sem fim (2007) e de Os minutos que se vão com o tempo (2016) – pela ordem de criação, primeiro e terceiro espetáculos abarcados nesse projeto; o dramaturgo Rudinei Borges, autor de Dentro é lugar longe (2013), a montagem intermediária; e Luiz Gayotto, músico e diretor musical do espetáculo mais recente.
Esses espetáculos têm direção de Anderson Maurício e foram apresentados entre 4 de outubro e 7 de dezembro, nos terminais urbanos Sacomã (zona sul), Cidade Tiradentes (zona leste) e Parque Dom Pedro II (zona central). São trabalhos denotativos do processo artístico da trupe, que conta ainda com outras montagens e elegeu o ônibus como espaço de representação. O interesse pelo fluxo urbano que o transporte coletivo intensifica e pela paisagem humana transitória que o habita é o que move esse grupo de artistas pesquisadores, como se identificam.
No Encontro eles repercutiram as escolhas artísticas fora da ordem, o aprendizado pela experiência e os dramas e alegrias que decorrem dela. No diálogo é possível observar os atuais 11 anos da Zózima como uma trajetória em que a ideia de experimentação artística escapa ao mero formalismo e mostra interesse nas relações entre arte e vida, especialmente no contato direto com um espectador que ocupa lugar de classe definido e na maior parte das vezes estará cruzando com o teatro acidentalmente. A mediação foi do jornalista e crítico Valmir Santos, um dos editores deste Teatrojornal – Leituras de Cena.
Nosso teatro ocupa um transporte público, um ônibus em movimento. As pessoas entram e saem, e em vários momentos ocorrem intervenções espontâneas, que acho que são artísticas também e que colaboram com o trabalho” (Priscila Reis)
*
Valmir Santos
Muito boa noite a todos. Agradeço a presença de vocês nesta segunda-feira um tanto chuvosa. Este é o 16º Encontro com o Espectador, uma ação proposta pelo site Teatrojornal – Leituras de Cena e bem recebida pela parceria com o Ágora Teatro. Já transcorreram 16 meses dessa iniciativa que tem um ponto de partida muito singelo e que talvez coincida com a proposta da Trupe Sinhá Zózima, que é essa ideia do encontro, num sentido de aproximação entre o espectador, o artista e o crítico, a figura de recepção, de horizontalidade e de troca em relação aos espetáculos convidados para serem objetos do debate.
Nesta noite não temos exatamente um espetáculo posto na arena da conversa, mas um projeto, o “Semear _ por uma arte do encontro sem fronteiras”, fruto dos dez anos [em 2017] de trabalho continuado de teatro em ônibus pela Zózima, uma experiência criativa e investigativa que se revela singular no cenário da cidade de São Paulo e do país.
A gente vai tentar, a partir dos três espetáculos constitutivos do projeto, percorrer consolidações de linguagem na proposição desafiadora de contato rente à realidade da cidade, a bordo desse veículo seminal na experiência brasileira de espaço urbano, que é o ônibus. Desde A dama do lotação lá atrás [conto de Nelson Rodrigues adaptado ao cinema pelo diretor Neville D’Almeida, em 1978] até os dias de hoje temos no transporte público um espaço revelador da experiência brasileira do ponto de vista de formação sociológica, econômica, etc.
O Encontro com o Espectador, como dissemos, acontece neste espaço que desde o início [em junho de 2016] foi um parceiro no sentido de nos receber sempre na última segunda-feira do mês. E a gente agradece muito ao engajamento e à colaboração do Celso Frateschi, da Sylvia Moreira e também dos funcionários que estão sempre aqui nos apoiando.
A dinâmica é dialógica, eu faço uma apresentação breve, como já comecei aqui, em relação aos artistas presentes; em seguida lanço algum apontamento e já abro para alguma questão a eles [os convidados] e finalmente abrimos para a roda de pessoas aqui presentes.
A gente recebe hoje, então, a Trupe Sinhá Zózima, fundada em 2007, há uma década, portanto. Temos aqui os fundadores e artistas pesquisadores que são a Priscila Reis, fotógrafa, atriz e pesquisadora do grupo; a Maria Alencar, atriz, pesquisadora do grupo. Originalmente, a Sinhá Zózima foi fundada pela Tatiane Lustoza, que estaria aqui esta noite, mas tornou-se mãe há oito dias. Ela é a companheira do Anderson Maurício, como quem também vamos conversar. Ele é diretor de teatro, ator e pesquisador da trupe.
O ponto de convergência se deu no espaço de formação da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, na região do ABC. E, desde então, a proposta tem sido assumir o ônibus como espaço cênico.
Eu tenho uma memória de jornalista de teatro desde o começo dos anos 1990. Lembro de algumas produções em que esse veículo, o ônibus, foi usado muitas vezes como ação de deslocamento de um trecho, com cenas acontecendo externamente.
Por exemplo, isso aconteceu com a Kompanhia do Centro da Terra em Viagem ao centro da Terra, em 1992, um trabalho realizado no túnel ainda em construção sob o rio Pinheiros, e também em A grande viagem de Merlin, com o público sendo levado de São Paulo à Jundiaí, incluindo uma parada para uma ação externa numa usina de processamento de lixo, onde se via o fogo [o gás metano liberado da compostagem] em plena escuridão da paisagem noturna, com a jornada culminando no antigo Teatro Polytheama, na cidade vizinha. Lembro ainda, mais recentemente, da experiência do Dionísio Neto numa ação dentro de um ônibus em trânsito pela Rua Augusta, chamada Os dois lados da Rua Augusta, em 2007. E nesses dois casos guardo uma sensação de que o ônibus era usado como veículo de uma forma muito utilitária, não era ele em si, a questão de problematização ou de suporte do espaço em relação teatral com o espectador. Mais recentemente a Cia. Auto-Retrato também o incorporou numa intervenção que começava junto a pedestres da região do Anhangabaú e da Sé, num trajeto andando, e depois tinha um deslocamento do Terminal Bandeira até o Terminal Santo Amaro. A intervenção se chamava Origem Destino, de 2012.
O trabalho também é de militância, isso é perceptível. Há quem peça para fazer no teatro porque em ônibus só cabem 32 pessoas. Vários festivais não contratam por isso. Mas um espetáculo não é só para cumprir a quantidade de público, a demanda que existe, mas também para semear o imaginário daquela cidade, daquele público, no sentido de que é possível fazer teatro dentro do ônibus (Anderson Maurício)
Estou tentando fazer aqui uma linha de tempo para entender como chegamos à Sinhá Zózima que elege o ônibus como parceiro, vamos chamar assim. Ela sabe que não é algo inaugural, mas o faz de forma orgânica. Fica muito claro durante esses dez anos como a ideia de atuação, de dramaturgia, de relação com o espectador vai sendo problematizada de maneira mais inventiva em termos formais e temáticos. A linguagem do grupo acaba adquirindo consistência, valorizando, sobretudo, a experiência [de quem embarca ou já está embarcado]. Essa ideia da experiência me parece muito reveladora no trabalho de vocês.
Situando um pouco, o projeto “Semear _ por uma arte do encontro sem fronteiras” leva, ou melhor, interage com o público com apresentações que acontecem em um dos três terminais definidos nas zonas sul, leste e região central. Às vezes a experiência se dá em um ônibus de linha, em outras em veículo da própria companhia. Os trabalhos do repertório nesse projeto são: Cordel do amor sem fim, uma produção de 2007, com dramaturgia de Cláudia Barral; Dentro é um lugar longe, de 2013, escrito pelo Rudinei Borges; e a produção mais recente que é Os minutos que se vão com o tempo, de 2016, também uma dramaturgia da Cláudia. Todos dirigidos pelo Anderson.
Quero só recuperar um dado, um elogio em relação ao site de vocês. De como o conteúdo, a exposição, a argumentação, a clareza com que vocês se colocam neste canal em termos dos porquês. Isso é raro. De como a ambição criadora se revela no modo organizador das ideias, das tentativas, das dúvidas. É o caso de como municiam dados da experiência com o ônibus no cenário brasileiro atual.
Tem uma informação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA, de 2011, que revela que os sistemas de ônibus nas regiões metropolitanas são dominantes como modalidade de transporte. Oitenta e cinco por cento dos municípios do país dependem e têm no ônibus o principal meio de deslocamento, e o que deveria ser um direito do cidadão, do Estado, mas a precariedade impera.
Sabemos que tem regiões, mesmo aqui em São Paulo, em alguns bairros, em que o serviço prestado tem uma diferença entre uma paisagem da periferia e a da zona oeste da cidade, por exemplo. E outro dado que consta no site da trupe é que, na cidade de São Paulo, segundo a SPTrans [autarquia municipal que gere o sistema de transporte público por ônibus], são mais de 6,5 milhões de pessoas embarcando e desembarcando diariamente em cerca de 15 mil ônibus cada vez mais integrados aos sistemas de metrô e trem.
Enfim, só um dado em termos de convívio urbano, de como é desafiadora essa experiência de um trabalho de arte feito num espaço de convívio em princípio bastante duro, disputado. E de como a arte, uma poética, pode ser infiltrada nesses ambientes. Eu sou usuário recorrente de ônibus. Existe uma tensão ali – o aperto, filas duplas, triplas de passageiros na plataforma. E eis que nesses contextos a trupe adentra e interage com bastante pertinência e delicadeza, trazendo contrapontos a essa realidade áspera do cotidiano.
Vamos ter a chance aqui de falar muito sobre as várias modalidades ou modulações que vocês da Sinhá Zózima foram procedendo em relação a esses aspectos da atuação, da dramaturgia, do modo de produzir, do modo de criar considerando essa máquina, esse veículo de ferro, frio, e que por meio da qual passam as experiências humanas. Para quem anda de ônibus a escuta pode ser [um recurso] muito interessante quanto aos afetos, às relações dessas pessoas que se encontram diariamente, das amizades que se criam.
Eu queria primeiro, como tem esse aspecto do espectador, pensar como vocês colocam lá essa ideia. Lógico que esse modo de criar e produzir uma experiência com o teatro vai determinar o resultado dessa cena, o modo como vocês se aproximam e se colocam política e artisticamente, como se uma coisa não fosse dissociada da outra, evidentemente. Mas a maneira como vocês chamam e compreendem esse cidadão como um trabalhador parece bagunçar um pouco a ideia porque a gente já sabe que não é um espaço teatral, que é outro modo de relação. Na convenção do teatro o espectador está no lugar de onde ele vê alguma coisa. E aqui esse lugar não é fixo, é um giro de 360 graus em deslocamento.
Como nesses dez anos vocês foram compreendendo, ou ainda é uma lacuna, essa ideia de “a quem estou direcionando essa obra?”. Não é espectador do teatro de rua, tampouco sentado numa sala à maneira italiana, frontal. Como vocês decuparam a imagem desse sujeito espectador, esse interlocutor? Como é essa abordagem de um ponto de vista sociológico? Vocês têm um pouco esse pressuposto em relação a esse sujeito, a esse trabalhador, a essa trabalhadora?
Queria pegar primeiro por aí, as sensações de vocês em lidar com esse endereçamento. Como capturar a atenção de uma volta do trabalho?
As apresentações costumam acontecer no final de tarde e início de noite. Os passageiros estão voltando para casa após uma jornada de trabalho, ou indo para a escola, por exemplo. Ou seja, as condições são tão adversas em vários sentidos, e, no entanto, como será que esse espectador foi visto, revisto, percebido? Partindo até da formação enquanto artistas de teatro, queria saber como isso foi ganhando corpo na experiência do Cordel e assim sucessivamente. Mas primeiro vamos colocar na roda essa ideia da percepção de vocês do espectador.
Priscila Reis – Artista pesquisadora da trupe
Quando a gente começou com o Cordel do amor sem fim, no final das apresentações tinha o momento da conversação. Então me lembro muito das pessoas virem conversar, dizendo que nunca tinham assistido nada de teatro, que havia sido a primeira experiência, que queriam voltar, assistir a outras coisas. Sempre colhemos essas histórias de pessoas que estavam conosco, que assistiram à peça e que tiveram aquela experiência de uma apresentação que era totalmente diferente, mas parecida com a vida. As irmãs tinham as características das mulheres brasileiras, desse conflito, essa espera, dessa esperança [na peça, Madalena, Carminha e Teresa são moradoras ribeirinhas do rio São Francisco e a terceira delas aguarda a volta do moço por quem se apaixonou no porto]. Então as mulheres e os homens sempre vieram conversar conosco, nos alimentando de algumas ideias do que poderiam ser os outros projetos.
A gente sempre andou de ônibus, mas o Anderson tem essa história de andar noventa minutos, duas horas para ir e outro tanto para voltar da Fundação das Artes. Então é esse momento de estar dentro do ônibus, no lugar não-lugar [em] que a gente vai se descobrindo, se revendo. Acho que todo mundo aqui mora em certos extremos. As nossas peças foram caminhando para esse lugar de encontrar. Depois que o público nos conheceu, a gente foi também a esse encontro do público, em que se dá esse desdobramento para chegar em Os minutos que se vão com o tempo, de entender um pouco mais essas pessoas que vão ao teatro, que estavam indo ao nosso teatro. Depois, em 2011, fizemos essa mostra no Terminal Parque Dom Pedro e resolvemos nos estabelecer ali naquele espaço. Começamos a história da trupe atuando nas ruas dos Jardins e descemos para o Parque Dom Pedro. Em 2007 estreamos o Cordel lá [no bairro nobre paulistano], fomos descobrindo aquele lugar e com o tempo percebemos onde de fato estão as pessoas com quem a gente quer trocar também. No Terminal Parque Dom Pedro é como uma encruzilhada, entra, sai todo mundo, tem de tudo um pouco. A gente chega, faz uma pesquisa e percebe o quanto as pessoas gostariam de ir ao teatro, mas que não têm esse tempo. E foi ali que o Anderson deu uma costurada no sentido de: “Vamos até essas pessoas!”.
Anderson Maurício – Artista pesquisador da trupe
Boa noite a todos. É uma honra poder estar aqui, a convite de vocês do site. A gente está completando dez anos de existência e esse tipo de diálogo é muito gostoso porque faz a ficha cair. Há dez anos fiz Fundação das Artes, então você começa a sentir o tempo. Eu senti de uma forma muito prazerosa, é muito bom olhar para esses dez anos. Tem umas coisas muito preciosas de refletir sobre o espectador, o passageiro, o trabalhador. Ele é uma figura muito importante na nossa trajetória. Tem um momento muito específico do grupo em que a gente tenta entender quais eram nossas linhas de pesquisa e não conseguimos definir mais de cinco: o ônibus, a dramaturgia, o público, o espaço e a produção. E foi muito importante conseguir se debruçar, entender e definir o que a gente estava pesquisando.
As nossas falas e a trupe vêm de um lugar da experiência, do fazer, então é daí que a gente parte, dessa ação e depois de uma reflexão sobre o que foi feito. E a gente demorou para entender que era assim que a gente fazia. Todas as falas partem desse lugar. Eu sou um sujeito periférico, moro no Jardim Romano [zona leste], onde o Coletivo Estopô Balaio atua, numa daquelas ruas de enchente no bairro. Sou desse lugar e aos 15 anos eu tinha muita dificuldade de entender o que queria fazer. Foi num primeiro curso de teatro, podendo dançar, expressar uma música que eu ouvia nas telenovelas, em Bebê a bordo…
Na primeira aula de teatro a professora disse que a gente ia dançar uma música e ela colocou essa da novela. Para mim foi um encontro com a minha essência, com a minha alma, o meu espírito. Foi ali que eu falei que queria fazer aquilo pro resto da minha vida. E talvez isso seja tão importante que faça com que eu suporte essas duas horas de ir e de voltar para a Fundação das Artes. As pessoas falavam: “Nossa, mas você mora longe”. E eu nunca senti que morava longe, e até hoje não sinto que moro longe, porque onde tem de ir eu vou. Eu não sinto essa lonjura, esse pesar de se deslocar.
Enquanto espectador, tudo que eu posso ver pela cidade, eu vou (…). Tem muita gente que não sabe o que é teatro, não teve a chance de conhecer. O trabalho de vocês é muito importante para a cidade e para tentar formar esse público que é trabalhador e só toma porrada. Afinal, a vida pode ser diferente e melhor (Aguinaldo Lago)
Na trajetória da trupe tem uma figura muito importante para eu entender o passageiro, o trabalhador, que é a figura do meu pai [Macister Maurício Gonçalves dos Santos]. Ele é esse trabalhador que se desloca duas horas por dia para trabalhar, pega o trem lotado, o ônibus, vem de um dia cansado de trabalho. E que acho que era diferente da minha viagem na qual eu estava indo pra escola, era um prazer me deslocar para poder estudar. E meu pai sai às 4h30 de casa e volta às 19h. Às vezes de segunda-feira a sábado. Todo domingo vai à igreja. E entender que essa figura, quando ia me assistir, quando ia conhecer o teatro a partir de mim, era uma vivência muito significativa para eu poder entender para quem eu gostaria de fazer teatro.
Mas acho que essa compreensão se dava muito depois, a gente não sabia direito. Aí vem isso que a Priscila falou, de quando a gente estreia Cordel do amor sem fim, que a gente foi pra Paulista. A gente foi buscar apoiadores para o projeto e o Bardo Batata [e Cantina do Piero] cederam, porque a gente precisava de um ponto de encontro para poder fazer o espetáculo. Acho que a Vanessa, que era do grupo, tinha um contato e conseguiu esses dois lugares e a gente estreou na região da Avenida Paulista, da Rua Bela Cintra, da Rua Haddock Lobo. Um luxo!
E quando a gente estreia o espetáculo, foi um choque com muitas coisas. A primeira delas é que a gente ficou mais de dois meses sem ter público nenhum. Uma ou duas pessoas assistiam ao Cordel do amor sem fim. E a gente tinha acabado de vir de uma experiência da Fundação das Artes de apresentar nossa montagem final do curso que se chamava O capeta em Caruaru, uma comédia nordestina [do pernambucano Aldomar Conrado], que atraia 200, 300 pessoas, era o teatro lotado. Como no ônibus só cabiam 30 pessoas, a gente pensava que seria preciso fazer sessões extras aos sábados e domingos porque senão não daria conta. Mas as pessoas não foram até a Paulista nos assistir. Aí veio toda a peleja pra conseguir esse ônibus próprio.
No primeiro espetáculo a gente estava acostumado com o palco italiano na escola, e uma das primeiras coisas que acontecia era que quando o público entrava no coletivo, ele abraçava todo o elenco. Abraçava mesmo. E a gente não entendia muito bem aquilo. A segunda coisa era [a disponibilidade para] intervir na peça várias vezes. “Teresa, fica com o José senão ele não volta”, dizia um ou outro. Mas como responder durante a cena? Tinha umas pessoas que queriam mudar o rumo do espetáculo.
Talvez um terceiro aspecto tenha sido o mais instigante, que foi o número de pessoas que nunca havia assistido a uma peça de teatro e que falava isso no nosso ônibus. Eu não lembro de ouvir isso na Fundação das Artes, de gente que nunca tinha visto teatro. E no nosso ônibus vinha muita gente falar que era a primeira vez que via.
A trupe sempre teve muita escuta para muitas coisas e isso foi direcionando a gente e trazendo questões como o porquê do ônibus. A gente foi identificando o ônibus como um símbolo do popular, que é do cotidiano, que despertava uma curiosidade daquele espectador em ver no que aquele ônibus se transformou. E mais do que isso, por ser um lugar reconhecido, já é quase a casa dele, uma extensão de aonde eu durmo, como, bebo, mando mensagem, namoro, enfim, é quase uma extensão da casa, essa casa-cidade na cidade. Eles se sentiam muito à vontade de ir, diferente de entrar no Teatro Municipal.
E, claro, as pessoas que diziam isso eram sempre de periferia, que não ia ao teatro porque não tinha possibilidade de acesso, não tinha essa cultura de poder ir ao teatro. Então, para abrir a nossa conversa, acho que são esses apontamentos que fazem com que a gente de alguma forma vá se direcionando e vá entendendo, de fato, para quem a gente faz teatro e qual era a nossa busca.
Maria Alencar – Artista pesquisadora da trupe
Essa questão do público específico, que tem 30, 40, 60 anos e nunca foi ao teatro… Quando a gente fala: “Vem ver teatro, vem pro ônibus”, as pessoas ficam tipo “Ãhn, como assim? Um ônibus pra ver teatro? Esse ônibus é o que vou pro trabalho, que volto suado, apertado”. Então você tem uma imagem estranha do ônibus. E quando essa pessoa entra, é muito engraçado, entra com um estado corporal, e quando sai: “Gente, não acredito que eu vi isso aqui dentro, é possível ter poesia”.
Acontece uma magia e com certeza essa pessoa, no dia seguinte, vai pegar o ônibus com outro olhar, com outra referência. Também dentro do ônibus é curioso perceber que existem vários tipos de público, esse que nunca foi ao teatro, o que vai ao teatro sempre; e como cada um se relaciona, como cada um percebe e recebe o espetáculo.
Eu entrei no grupo em 2012, e às vezes fico pensando como vim parar na trupe. Todos são da Fundação das Artes. São três anos e meio e eu só tive uma experiência no palco italiano, as demais foram todas em espaços alternativos. Quando o Anderson e a Tati vieram com o convite, eu nunca havia visto o espetáculo deles e fiquei: “Como assim? Dentro do ônibus? Então vamos lá”. Acho que a trupe tem isso da vivência muito forte, e com a qual a sua história se conecta.
Eu vim do Ceará de ônibus e acho que tem aí uma relação, nada é por acaso. O Anderson falava que tinha que cuidar do público, de ter muito cuidado com quem está do seu lado porque a gente fica muito próximo. Fiquei com isso na cabeça, de que tinha de falar sempre com muito cuidado e não perder esses estados que a peça tem. Pensando no Cordel em si, tem uma linha, a pesquisa vai criando outros corpos e outras cores dentro desse período e nos três espetáculos você consegue observar uma diferença, um pulo bem grande pensando na pesquisa e na relação com o público, com o espaço do ônibus e com o espaço da cidade. No Cordel, pra mim, era uma grandiosidade, precisava cuidar do público. E como se dá esse cuidado é uma coisa que a gente vem trabalhando ainda.
Valmir
A palavra “ônibus” é de origem latina, omnibus, e designa “para todos”. Fiquei pensando em algumas alusões ao teatro, a ideia do acesso, de ir aonde o povo está, a ideia de coletivo. E queria voltar nesse espaço elegido quando vocês se organizam para locar esse primeiro ônibus, como foi ganhando espaço e convicção do ônibus como itinerância e deslocamento, ou um espaço próprio em trânsito. Queria que você falasse agora por que esse espaço, qual foi o disparador.
Anderson
Tudo isso a gente foi compreendendo também. A gente estava num período estudando, na Fundação das Artes, o espaço não convencional, que não era um ônibus, mas era transformar a sala e modificar a encenação e a apropriação desse espaço. E a gente encontrou Lídia Zózima Sampaio (1957-2016) na nossa trajetória, que foi uma mestra, teve uma luta durante 20 anos contra um câncer, foi para a Índia, teve várias vivências alternativas. De alguma forma provocou e nutriu a gente durante os estudos na Fundação das Artes, num lugar muito especial. E tinha uma coisa que ela falava: “A sabedoria mora no vento”.
Para mim, o ônibus como espaço cênico foi um sopro. Tenho toda essa vivência com o transporte, mas no dia que me veio essa ideia, ela veio como um sopro. E nesse dia a gente estava se deslocando para Ribeirão Pires, dentro de um ônibus, para fazer um trabalho e se trocando lá dentro. E a ideia me veio muito forte. A gente ainda não era trupe, mas ficou na minha cabeça: “Como seria investigar teatro em ônibus?”. E fiquei matutando por um ano ainda. Depois convidei minha turma ali, éramos em 16 pessoas, e com seis delas criamos a Trupe Sinhá Zózima.
A primeira experiência que a gente teve com o ônibus foi em Ubatuba [litoral], usando linha de transporte público intermunicipal. A gente pegou Plínio Marcos (1935-1999), poesia, canção, de tudo um pouco, e queria entender como seria fazer alguma coisa num ônibus. Eu queria saber o que precisava fazer para poder dirigir um espetáculo num ônibus. E a gente se jogou, a gente foi e voltou fazendo a mesma coisa. O ônibus não tinha espaço para você respirar. E outra, o ônibus estava vazio, a gente teve de tudo. Na região de serra era aquele barulho, o cara acelerando pra poder subir e numa velocidade que a gente só faltava morrer pra fazer a cena.
Nessa ocasião já éramos os seis que formavam a trupe. Dessa experiência a gente criou várias questões para descobrir como ia montar o Cordel. O ônibus foi uma novela. A gente criou um cronograma de seis meses para montar o espetáculo. Na Fundação das Artes a gente tinha aulas de produção cultural com o Sérgio Azevedo e essa visão de produção vem de lá, de como pensar, analisar e viabilizar um projeto, a regrinha de como montar o trabalho. E a gente era um grupo bom com a parte de produção. Já tinha o lugar de onde a gente ia sair, conseguimos espaço para ensaiar, flyer, tudo, só não conseguia o ônibus. Já tinha a data de estreia e a gente começou a ficar desesperado. Eu cheguei um dia: “Gente, consegui o ônibus!”. A gente entrou na sala e tinha um ônibus de madeira que eu mandei um marceneiro fazer. E eu disse: “Fiz essa merda aqui pra ver se materializa o ônibus, agora vai aparecer”.
A Lídia semeava muito na gente esse lugar da intuição, esse lugar extra-material. E foi muito engraçado porque depois de duas semanas a Vanessa [Cabral, atriz] conseguiu o contato de uma empresa de Guarulhos, a Transguarulhense. Eles estavam fazendo um projeto social com crianças da quarta série, em que tinha um problema muito grande com depredação de ônibus, chiclete, pedra, e precisavam de um grupo de teatro pra fazer essa apresentação de uma forma lúdica. E foi aí que a gente conseguiu uma parceria. A empresa emprestou o ônibus enquanto a gente apresentava. Isso durante uns três anos. Conseguimos iluminação interna, eles adaptaram todo o sistema de luz e tivemos dois motoristas, o “Bolinha” e o “Lobão”, que foram paizões.
Talvez o grande desafio do grupo em ‘Dentro é lugar longe’ tenha sido lidar com um texto que não faz concessão exatamente no sentido poético. Penso que o espetáculo foi construído quase o tempo todo na fricção, no sentido de que o próprio texto é uma conjunção de metáforas (Rudinei Borges)
Priscila
A gente fazia um trabalho pedagógico com crianças. Dois palhaços que ficavam esperando o ônibus e imaginando o que poderia acontecer. Mas essa troca foi fantástica porque eu sempre gostei de trabalhar com criança, trabalho até hoje, e foi um presente mesmo estar na Transguarulhense realizando esse tipo de trabalho. Alunos de nove anos, ensino fundamental, eram ótimos. A gente tinha o maior cuidado. Era eu e o irmão do Anderson [Alex Maurício dos Santos], tinha uma hora que a gente saia do palco e já juntava com as crianças, foi uma troca e tanta. Eles saiam da escola e davam uma volta em Guarulhos, passavam na Transguarulhense e depois tinham acesso ao teatro.
Anderson
Nesses três anos de parceria a trupe fez mais de 300 apresentações do Cordel com essa empresa. E já identifico aí uma semente de uma saga, que não foi fácil, a saga do ônibus, de fazer outras coisas para conseguir realizar aquilo que a gente queria, sem abrir mão da persistência para conseguir. E os motoristas entendiam esse cuidado, de como dirigir o ônibus para o teatro, porque isso interfere no que a gente vai fazer.
Valmir
Avançando para a aquisição do veículo, você têm um ônibus de fato ou ainda não? E depois veio aquela ideia dos ônibus de linha também ser incorporado, o que muda a relação completamente.
Anderson
A Priscila falou de uma experiência muito forte pra gente. Em 2009 a gente começou a pensar porque curte muito fazer o teatro dentro do ônibus e que não podia ficar só entre a gente. Era preciso falar, chamar as pessoas, mostrar que isso é bacana, que é diferente. De alguma forma, a intenção também era compartilhar essa experiência do ônibus com outros artistas. Aí surgiu a ideia de a gente desenvolver uma mostra de artes no transporte público. Oferecemos um projeto para a SPTrans, mas eles nunca deram nenhum tipo de incentivo financeiro. A Tati estava fazendo faculdade e escolheu essa mostra como tema do TCC dela [trabalho de conclusão de curso].
Tem duas coisas muito importantes. A primeira, a gente precisava de uma verba de R$ 86 mil pra realizar a mostra, mas ela foi feita R$ 2 mil. A segunda coisa foi esse lugar da pesquisa, que vem da Fundação das Artes, de falar com o público, entender como que foi. E a partir da pesquisa da Tati para o TCC, a gente identificou que das pessoas que estavam dentro daquele ônibus, 75% nunca havia assistido, nunca tinha tido qualquer contato com as artes cênicas. Isso pegou a gente, de entender de fato aonde a gente poderia estar, como poderia ser feito o trabalho da trupe num lugar de residência artística.
Foi quando a gente conheceu o Rudinei Borges [poeta e dramaturgo]. Começamos a reestruturar um projeto de pesquisa, a entender o que a gente queria fazer, como se relacionar nesse espaço. O primeiro ponto foi ir para o Terminal Parque Dom Pedro já com o intuito de fazer um espetáculo no transporte público. Era uma vontade que vinha desde 2011, 2012 com histórias dos passageiros no transporte público. Apanhamos muito com várias outras empresas em São Bernardo do Campo, como a Consórcio Plus, porque a gente finalizou a parceria com a Transguarulhense, que não podia mais emprestar o ônibus – foi até 2010, depois teve a mudança de governo municipal. Toda mudança de governo mexe com tudo, então a gente pegou uma fase dessas. Se a Transguarulhense era mãe, as outras empresas foram pai. A gente apanhou muito, de ônibus quebrar, de motorista não vir para o dia da apresentação. Teve uma sessão no Terminal Parque Dom Pedro e o [professor e pesquisador teatral] Alexandre Mate e a [jornalista e crítica] Beth Néspoli estavam, lá pela primeira vez, e não tinha motorista, o público todo lá, e nada. A gente nunca pagou motorista por fora, só quando a gente conseguiu nosso próprio ônibus. Na Transguarulhense eles sempre pagavam hora extra.
Então nesses primeiros dois, três anos, até o sexto ano da trupe, a gente sofreu muito. Foram três anos muito bons e outros três muito ruins com a questão do ônibus. A trupe tem uma política de manter sempre um fundo de reserva do que ganhou, por isso resolvemos dar esse passo de financiar um ônibus, que era o próprio veículo que estava sendo emprestado quando a parceria foi finalizada. E aí, quando a gente financiou esse ônibus, eles expulsaram a gente da garagem que cediam. Colocaram o ônibus para fora e falaram: “Agora vocês se viram com o ônibus”. Foi bem triste porque eu estava fora de São Paulo, a Tati estava sozinha, e foi assim o desfecho da relação com a Consórcio Plus. Houve essa ruptura, eles não queriam mais o ônibus no espaço e a gente ainda estava pagando a eles.
Ou seja, a gente tinha o ônibus, mas não a garagem. E na hora em que aconteceu isso foi muito bacana porque, ao mesmo tempo, a gente percebeu que a trupe não era só nossa. Aí veio a Secretaria de Cultura, o [crítico e curador] Kil Abreu, vários atores sociais e artísticos, inclusive a própria SPTrans, que não está vinculada às garagens de ônibus, é uma gerenciadora do transporte público monitorando várias empresas que prestam serviço. Então foi uma revanche no sentido de outras autoridades, outras instituições a nosso favor e, no mesmo dia, depois de umas 24 horas eles colocaram nosso ônibus para dentro, de novo, e ele está lá até hoje. Eles até fizeram reforma.
Na dramaturgia de ‘Os minutos que se vão com o tempo’, de fato a gente se preocupou mais com o ambiente interno do ônibus, diferente do ‘Cordel do amor sem fim’, em que a cidade falava mais (Cláudia Barral)
A conquista do ônibus foi um alento e um desespero em pagar, mas um alento no sentido de liberdade artística, do que a gente poderia fazer com esse ônibus. Logo em seguida nasce o projeto do “Toda Terça Tem Trabalho, Tem Também Teatro”, quando a gente convida grupos e artistas de todas as linguagens – dança, música, artes plásticas, para fazer uma ação dentro do nosso ônibus. Isso durou três anos. O ônibus foi adquirido em 2013, logo que a gente finaliza um projeto aprovado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, conseguimos justamente o projeto de residência artística no Terminal Parque Dom Pedro. Foi nosso primeiro Fomento. A SPTrans muda a gestão e diz que a gente não podia entrar mais no terminal, veio a expulsão. A gente já fazia várias ações, mas quando ganhamos o Fomento é que a gente ia fazer mesmo. E aí ficamos nove meses sem poder entrar no terminal, mas rodeando o terminal. Fomos para a praça ao lado, desejando entrar. E no dia do serão [jornada noturna], em que a gente entrou com um cortejo, sem autorização nenhuma, cantando, fazendo a ação, acho que ali abriu uma porteira pra gente de fato fazer o projeto de residência lá.
Daniel Rodrigues Hernandez – redator
Entrei para a trupe por conta do Rudinei Borges, no contexto de uma aula de mestrado na Faculdade de Educação da USP em que dialogávamos sobre a obra e o pensamento de Paulo Freire [1921-1997]. Por isso eu me vinculei à trupe no primeiro Fomento. Eu sou redator na trupe. A pergunta é: o que significou o Dentro é lugar longe para vocês?
Priscila
Os três espetáculos têm uma linha. O primeiro vem de uma dramaturgia pronta da Cláudia [Barral], mas o Anderson consegue trabalhar muito bem dentro do ônibus, porque o espaço interfere muito nessa relação dos personagens, da dramaturgia, tanto o espaço-ônibus como a relação com a cidade. E quando tem Cordel e o Dentro é lugar longe, é uma dramaturgia que vai ser construída, em que a gente começa a trabalhar com a história oral e aí existe um avanço nessa relação com o espaço, de apropriação do espaço pelos atores e, acho, pelo próprio Anderson também, de ver esse espaço e essa arquitetura do ônibus. E aí, em Dentro nasce mais um desejo, uma relação de desafio mesmo, tanto com o ônibus quanto com a cidade. Porque já não era mais suficiente a gente continuar dentro do ônibus, do ônibus preparado, do espaço.
Tanto em Cordel quanto em Dentro o ônibus vai preparado, a gente avisa o público de que está acontecendo um espetáculo, existe uma preparação maior. E já não dava mais, a gente precisava de outro desafio. Aí o Anderson veio com essa ideia de ir para o sistema de transporte público, quebrando uma barreira. Foram dois anos de pesquisa no último espetáculo e aí a gente vai pra um projeto em que a dramaturgia não está pronta. Tem a odisseia de Os minutos que se vão com o tempo como uma base que permeia o processo. A relação com o espaço é um ponto importante para perceber essa linha, tanto do Cordel, do Dentro e dos Minutos porque isso está muito ligado à nossa atuação: ônibus-cidade. Então, essa é a evolução do trabalho. Os minutos é sair do palco italiano e ir pro mundo.
Anderson
A gente tem mais dois espetáculos, que é Valsa nº 6 e O poeta e o cavaleiro. Acho que esses três espetáculos, Cordel, Valsa e O poeta e o cavaleiro são completamente diferentes um do outro. Era uma tentativa de a gente entender de fato o que era e o que queria fazer. O Cordel chegou e a gente ficou apaixonado e queria experimentar, se descobrir, mas a gente identificou que no Cordel tinha algo muito precioso e que tinha a ver com o que a gente queria fazer e falar. Então, a escolha de poder fazer o Cordel, o Dentro e Os minutos se deu porque… Acho que me entendo melhor como diretor no Dentro e vou estudar na SP Escola de Teatro (2010-2011), porque a princípio eu era um ator que dirigia. Não atuo no Dentro porque eu queria perceber como era de fato dirigir. Descubro [o poeta e filósofo francês] Gastón Bachelard [1884-1962], que para mim é um bálsamo. Eu tinha muitos devaneios no transporte público, mas não sabia que era devaneio, achava que eu estava ficando meio louco, me perdia, ficava vagando, e depois do Bachelard eu me achei.
O que eu acho que liga os três espetáculos – além de ter ali algo que diz muito sobre a trupe, a ideia da delicadeza, do cuidado, da poesia – acho que é uma coisa do tempo. Sinto que o tempo atravessa os três espetáculos, de diversas formas. Se a gente for tentar colocar numa caixinha, o Cordel fala de um tempo futuro, da esperança, da Teresa que espera, e que a gente pode esperar algo, pode permanecer vivo, e talvez seja isso que nos faça vivo: a esperança. E a esperança pode transformar tudo, todas as relações, daquelas irmãs, daqueles passageiros, daquele percurso. A Teresa é essa fé no que vai vir. O Dentro fala desse passado que revela quem a gente é, as histórias que aconteceram, das histórias nossas, mas as de todo mundo, dessas histórias do Brasil. A Beth escreve e fala disso, desse pé interiorano, um pé no barro e um pé no cimento. O Dentro fala desse passado. E Os minutos fala do tempo presente, daquele momento em que estou ali, em jogo, no risco, no aqui agora, o olho no olho e alguma coisa surge dali. Acho que o que a gente está fazendo é para poder perceber o tempo presente, no estado presente. Então acho que o tempo costura. E a gente está partindo para um projeto maior, de mais risco, de mais aventura, que era um desejo antigo dessa relação com a Lídia: falar sobre a terra. Chama-se Trilogia da terra. Uma construção de três espetáculos que falam da terra, mas da terra corpo, da terra cidade, dessas camadas que a terra pode ter. Acho que esse projeto também é um semear pra gente também se entender, se ver e partir para esse novo projeto.
Daniel
O Dentro foi uma experiência de uma deriva de 24 horas, das 5h às 5h, dentro de uma chácara em Itaquaquecetuba [cidade do leste da Grande São Paulo]. Foi importante vivenciar esse processo para compartilhar as histórias de vida, que o Rudinei trouxe pra gente na época das manifestações dos ônibus e saíram vários cartazes homenageando a dramaturgia do Rudinei, mas que foi resultado do processo de diálogo e de compartilha das histórias de vida dos integrantes da trupe.
Rudinei Borges – dramaturgo
A peça Dentro é lugar longe estreou em 1º de maio de 2013 e ela tem parentesco com o período dos protestos das Jornadas de Junho. A primeira apresentação foi para motoristas e cobradores de ônibus. E em junho toda essa história do Brasil começa com a questão da tarifa, dos R$ 3,20, que não era só pelos 20 centavos. Até uma das apresentações não foi realizada porque um dos grandes protestos se deu no Parque Dom Pedro. E algumas pessoas que foram assistir à peça levaram aos protestos cartazes com frases da peça. É possível entender todo esse trajeto da trupe porque ela é muito aberta e trabalhou com diversos colaboradores ao longo do seu trajeto, tanto de abrir para novas dramaturgias a Cláudia, depois eu. A minha pequena participação dentro da história da trupe se dá inicialmente, talvez, num aspecto da pesquisa do grupo. E o meu espanto foi o mesmo da Maria, de como entender a complexidade de um grupo que trabalha com teatro dentro do ônibus e essa não era a minha experiência. Tenho experiência com teatro de rua popular, da Amazônia e depois, sim, como dramaturgo. No momento em que você se entende como diretor, eu também me entendo como dramaturgo, então a peça é também meio uma coisa adventista, que tem as suas nuances problemáticas até mesmo da própria composição dos jovens que estavam naquele momento se entendendo dentro do seu lugar no teatro.
Depois de cinco anos a trupe compreende além do universo do ônibus, mas também o universo das pessoas, além de entender o espaço, que era muito presente, sobretudo a escolha do ônibus, esse lugar para todos como perspectiva teatral e também as pessoas. É um exercício de alteridade e também de empatia, quando o grupo se coloca no lugar de todos esses protagonistas, que são passageiros de ônibus. Então o Dentro nasce nessa perspectiva da memória como fio condutor para uma dramaturgia. Acho que foi importante depois também até para a composição da outra peça, que é Os minutos, que também vem dessa leitura de mundo dessas pessoas todas.
Daniel
A trupe completa em 2017 dez anos de memória e resistência, e estamos completando no mesmo ano os 20 anos de memória [da morte] e presença de Paulo Freire, que foi o que me conectou ao Rudinei e posteriormente à Trupe Sinhá Zózima. E acho que o principal conceito que a trupe se apropriou de Paulo Freire foi a dialogicidade e a leitura de mundo. Aprendi que o ônibus é espaço de diálogo, de conversa, e que converge com Os minutos. A grande sensibilidade era o Anderson tocando alfaia e aquela senhora no ônibus fazendo um artesanato indígena e entregando… Essa é uma imagem, uma lembrança que guardo.
Cláudia Barral – Dramaturga
Eu percebo que nesses dez anos algumas coisas permanecem. Gosto muito disso que o Anderson fala: o futuro, o passado e o presente; é bem por aí. Mas acho que tem outra coisa também da trupe, que é a ousadia. Quando eles me contataram e falaram de fazer a peça no ônibus, eu também me assustei. O Cordel se passa no sertão e vocês vão apresentar na Avenida Paulista? E a Vanessa falou que era justamente por isso. E eu gostei. Então é essa coisa da ousadia e do conflito. E achei que ficou muito rico no Cordel especificamente. E com Os minutos, percebo também essa coisa que eu acho que a trupe: a coragem de ousar. Mas muda muito isso de ir até o passageiro, até o ônibus aberto [cumprindo o trajeto real de uma linha urbana]. Interessante esse desejo de ir mais perto ainda das pessoas. Percebo que grandes passos foram dados, mas também acho que tem uma coerência, uma linha e um desejo que estão permeando esses dez anos. Acho muito legal e muito bonito o trabalho de vocês.
Valmir
Pensando na experiência da dramaturgia e da criação, você já projeta isso pra um espaço de ônibus ou deixa em aberto? É uma escrita possível de ser montada em outro canto? Teve experiência de ensaio dentro do espaço?
Cláudia
Os minutos foi um espetáculo que a gente considerou bastante a coisa de serem pessoas voltando pra casa, o elemento do público e das circunstâncias. E pensando que talvez o passageiro não conseguisse acompanhar tudo, então a gente precisava que cada pequena célula fosse potente. E inclusive na questão do volume de texto, para a gente tentar fazer coisas que otimizassem, que fossem eficientes, mas que não demandassem muito tempo de fala. Não podia ser muito palavroso e a gente resolveu investir também nas canções. O Luiz Gayotto foi o diretor musical em Os minutos.
E ao mesmo tempo a gente optou por fazer personagens. Eles foram surgindo dentro das provocações que o Anderson deu e os atores foram criando e delineando os personagens. A gente optou por fazer uma estrutura de dramaturgia com uma história, com objetivo, início, meio e fim. Mas, ao mesmo tempo, que cada coisa contasse uma história e fosse se juntar a uma história maior.
Valmir
Na experiência em Os minutos, havia algum tipo de preparação em diálogo com o cobrador do ônibus como parceiro? Houve alguma preparação nesse sentido ou era um risco absoluto?
Priscila
Eles ficam muito curiosos em saber como que vai ser essa relação. Os cobradores ficam sabendo no dia. O motorista fica mais focado no trajeto dele, independente, mas às vezes pego eles olhando [para a cena] através do retrovisor. Mas os cobradores acabam tendo uma relação maior com a gente, e não só eles, mas as pessoas do terminal. A gente vem sentindo muito isso, dos demais trabalhadores que recebem a gente, querem saber um pouco mais, querem assistir à peça. Um espectador foi como funcionário e levou a família para assistir com ele em outro dia.
A dispersão em decorrência do ambiente em trânsito costuma ser mais difícil de contornar e, no entanto, vocês usufruem da acumulação da experiência coletiva de cada trabalho que envolve o veículo e os seus ocupantes como um todo (Valmir Santos)
Junior Docini– Artista pesquisador da trupe
Quando a gente ficou em cartaz no Parque Dom Pedro, como as apresentações aconteciam em algumas linhas específicas, alguns funcionários dos ônibus já conheciam a gente. Então muitos ficavam brincando: “Quero vocês lá no meu ônibus”. Sabendo quando ia ter peça ali, alguma coisa acontecendo, eles iam mais de boa, mais devagar, até mesmo esse diálogo entre eu e a Tatiane, que ficamos mais próximos da catraca, era possível negociar esse andamento do ônibus. E o Anderson que fica andando de um lado para o outro no veículo também consegue negociar essa velocidade, esse clima com o cobrador e com o motorista. Como a gente fez no Sacomã, na semana passada, na terça foi uma surpresa; já na quarta o cobrador levou um chocalho pra tocar numa das cenas, e estava mais no ritmo do que a gente.
Anderson
Essa relação com o Terminal, em Os minutos, por exemplo, a gente tinha planejado no Fomento de fazer numa única linha, que era até Cidade Tiradentes, a linha mais longa [no extremo leste da cidade]. Foi um projeto de dois anos e a gente ficou um ano ensaiando nessa linha para poder construir o espetáculo, as pessoas começaram a pedir pra fazer na linha delas. Aí a gente resolveu fazer em cinco linhas e acho que o espetáculo ganhou essa dimensão, de dramaturgicamente sair dessa questão do trajeto.
Então é qualquer trajeto, em qualquer linha pode acontecer o espetáculo. A gente não quis personificar na linha que era do Parque Dom Pedro para Cidade Tiradentes porque o que interessava não era o externo, era o interno daquele deslocamento. Diferente do Dentro, em que a gente quer saber do externo, em que dialoga com o externo da cidade.
Valmir
Para os dramaturgos ainda, aproveitando a presença de vocês aqui, a ideia de imagens em relação ao texto, a extensão poética, por exemplo, como é essa escrita? Pensando no espaço e naquilo que se passa na janela ou internamente, no embarque, no desembarque, nos olhares dos passageiros, nas sonoridades do veículo, tudo concorrendo o tempo inteiro, isso pressupõe também um exercício de síntese no itinerário? Houve distinção nesse modo de escrita?
Rudinei
No Dentro tem uma experiência um pouco, talvez, adversa aos espetáculos anteriores, tanto do Cordel como d’Os minutos porque tem essa coisa que a Cláudia traz da procura da síntese, de uma história a ser narrada, de uma saga a acontecer. O Dentro tem, mas talvez o grande desafio do grupo tenha sido lidar com um texto que não faz concessão exatamente no sentido poético. Nem sempre aquela escrita da poesia é uma escrita que abarca exatamente aquela cena. Penso que o espetáculo foi construído quase o tempo todo na fricção, no sentido de que o próprio texto é uma conjunção de metáforas – de como que ele funciona na cena, de como dialoga com o público, e que não necessariamente é um público da academia, letrado. E o próprio vocabulário da peça não se restringe a não colocar os elementos das palavras mais arcaicas, não cotidianas, e isso muito graças à encenação e ao trabalho dos atores, que é de uma presença muito forte, fez com que algo que parecia ser, a priori, muito trabalhoso para qualquer público poder acompanhar, se tornou algo muito carismático. A peça tem um determinado carisma que envolve muito o público. Mas o desafio do dramaturgo se deu desde o princípio ao escrever para o ônibus uma peça construída a partir do processo colaborativo. Precisa ser de uma síntese e de um diálogo maior e uma proposição poética talvez muito mais próxima da literatura ou da leitura.
Cláudia
Essa questão das imagens em Os minutos, de fato a gente se preocupou mais com o ambiente interno do ônibus, diferente do Cordel, em que a cidade falava mais. Mas n’Os minutos as imagens que foram surgindo a partir da pesquisa deles com a odisseia e com a história oral me pareceram que muito fortes e universais. Então, não foi uma questão pra gente que o entorno pudesse ser mais forte do que as imagens que estavam sendo criadas dentro. A gente pensou mais em fazer com que essas imagens aparecessem na peça de forma eficiente, mas havia certa confiança na potência e na capacidade de comunicação daquelas imagens por elas serem muito universais. A criança que busca a mãe, a mulher cega, eram temas potentes mesmo e de fácil comunicação.
Valmir
A chamada fé cênica. Incrível porque a dispersão em decorrência do ambiente em trânsito costuma ser mais difícil de contornar e, no entanto, vocês usufruem da acumulação da experiência coletiva de cada trabalho que envolve o veículo e os seus ocupantes como um todo.
Priscila
Quando o Rudinei trazia as escritas para a gente poder preparar as cenas, eu e o Junior [Docini] ficávamos ali vendo a escrita dele, a poética, e a gente viajava porque tem muitas imagens e a gente começou a sentir mesmo que vinha música por aí. Antes de todo mundo começar a ensaiar de verdade, a gente começava a cantar os textos do Rudinei. Então teve momentos muito bacanas com esses textos.
Anderson
Eu sinto que a gente foi muito presenteado, tanto com o Rudinei quanto com a Cláudia. A história do Cordel é a seguinte: “Vamos montar um espetáculo no ônibus”. Agora, o texto a ser feito, não importava. Fui ao Centro Cultural São Paulo, no metrô Vergueiro, vi o primeiro texto do livrinho de dramaturgia da Funarte [o órgão que responde pelas artes cênicas no Ministério da Cultura publicou as três peças da categoria adulto contempladas na região Nordeste no Prêmio Funarte de Dramaturgia 2003] e eu gostei do título e não quis ler mais nenhuma peça. A gente começou a fazer de tudo pra montar. E uma das coisas que a Cláudia falou era que ela tinha dado os direitos de encenação para o Chiquinho Medeiros e que não tinha como a gente montar. Ela ligou para ele, que disse: “Tudo bem, pode deixar os meninos montarem”. Foi a primeira montagem do Cordel, em 2007, depois um monte de gente montou.
Eu comecei a fazer teatro com Carlos Drummond de Andrade, com poesia. Então acho que a poesia é um lugar. No caso da Cláudia, por mais que tenha a questão do diálogo, é uma escrita muito poética. E eu aprendi a escrever, descobri e aceitei escrever no meu contato com o Rudinei. Hoje, nas Fábricas de Cultura [espaço estadual em bairros descentralizados da capital paulista, em que atua como um dos educadores], eu estou escrevendo dramaturgia. E acho que além de serem dramaturgos dos espetáculos, são parceiros, foram amigos que de alguma forma olharam para essa pesquisa e potencializaram o que a gente vinha fazendo.
Lembro de quando a Cláudia foi ver a pré-estreia do Cordel, lá nos Jardins, disse que tinha gostado, mas que sentia falta do ônibus, do ônibus “dizer” alguma coisa. E eu não era diretor ainda, estava no lugar do ator. É o que vem primeiro na minha direção: o ator. Depois eu olho para a questão da cena. Fui pra casa pensando nisso que ela disse. E aí quando a Madalena [uma das irmãs] fala, mais ou menos assim: “Ah é, você vai esperar o Antônio? Então todo mundo vai esperar junto”. Aí o ônibus para, o motorista desliga o motor e aquilo faz todo o sentido. Isso tem a ver com retomar a ideia de uma escuta nossa em toda a trajetória, de entender a pesquisa através do outro, do que o outro sente, do que o outro está percebendo. A dramaturgia também vem para esse lugar, de perceber como dizer, aonde dizer, o que dizer, e eles, a Cláudia e o Rudinei, foram muito importantes nesse caminho.
Tem outra característica muito forte da trupe, que também acredito ser um presente: são pouquíssimos grupos que conseguem, na sua trajetória, continuar com um espetáculo. E isso é de uma dimensão, de uma profundidade, de fazer 500, 600 apresentações de um espetáculo… Mas esse lugar de falar sobre o que a gente faz, ainda há uma grande dificuldade em conseguir expressar.
Paula Venâncio – Assessora de imprensa
Os desafios do serviço do espetáculo para a imprensa são imensos. É um espetáculo que começa num terminal, que vai pra dentro de um ônibus de linha e que vai seguir até um outro terminal. Uma coisa é o passageiro já entrar naquela linha, outra é esse público que vai espontaneamente para assistir. Então n’Os minutos tem esse outro desafio. O público espontâneo não é nosso foco, o foco é o público que já está na linha. Lógico que existe um interesse nas pessoas que queiram ir exatamente ver o espetáculo, que compareçam e entendam toda essa logística.
Na trupe a gente acaba estabelecendo com esses três espetáculos uma trajetória da própria pesquisa. O Dentro vai se aprofundar muito mais em resolver questões sobre o espaço, sobre o ônibus, ele traz a questão dos artistas pesquisadores, faz uma imersão na história de vida desses pesquisadores que já se relacionam com esse espaço. E Os minutos traz a aproximação do público. Então acho que a gente contempla três grandes eixos de pesquisa da trupe com os espetáculos: a questão do ônibus, a questão do artista pesquisador e a questão do público. Por isso esse público que vai especificamente para assistir Os minutos é potente, mas talvez não seja o foco principal neste momento, porque interessa muito mais a descoberta dessa relação com aquele passageiro que vai decidir naquele dia descer dois pontos depois do trajeto, porque não quer perder aquela relação que a gente estabeleceu, ou quando ele desce e realmente é uma despedida. Porque numa das poucas vezes da vida dele, vai pensar: “Que pena que eu tenho que descer”. Cria-se, então, uma outra relação dos passageiros e dos artistas pesquisadores no espaço público, e tudo isso acontece por esse encontro muito potente.
Anderson
A gente mexe com algumas estruturas, inclusive dentro da instituição arte. Por exemplo, a gente foi para a unidade do Sesi Rio Claro [interior] com o Cordel, mandamos tudo que precisava, fomos com nosso ônibus, e quando chegamos uma mulher da instituição nos disse: “Nossa, mas vocês vieram com um ônibus”. “É, a gente faz teatro no ônibus”, respondi. A gente teve uma briga feia pra cumprir o nosso contrato porque eles queriam colocar a gente dentro do teatro, no palco. Queriam que a gente fizesse quatro apresentações para ter a quantidade de público que eles imaginavam. A gente fez um projeto com a intenção de levar esses espetáculos a outros terminais de São Paulo, com o apoio do Sesc nas unidades Santo Amaro, Pinheiros e Campo Limpo [regiões que possuem justamente esses pontos de conexão]. E a gente tem toda uma história, uma credibilidade com a SPTrans conquistada ao longo do tempo e que pode ser “desconquistada” a qualquer momento. Por exemplo, se um dia nosso ônibus bate ou atropela alguém, acabou a nossa parceria. Então a gente lida com essa instância de realização de um trabalho, qualquer pé em falso é uma desculpa pra gente não fazer, pra deslegitimar dez anos de história. É preciso tomar muito cuidado.
E a gente abriu uma porta, mas percebe que tem dificuldade de conseguir, às vezes, estender isso a outros lugares. O trabalho também é de militância, isso é perceptível. Há quem peça para fazer no teatro porque em ônibus só cabem 32 pessoas. Vários festivais não contratam por isso. Mas um espetáculo não é só para cumprir a quantidade de público, a demanda que existe, mas também para semear o imaginário daquela cidade, daquele público, no sentido de que é possível fazer teatro dentro do ônibus. É um trabalho que de alguma forma também esbarra nessas outras instâncias, problematiza e acaba atravessando a própria instância da Secretaria de Transportes, da SPTrans, no caso da nossa cidade. A gente está num lugar em que a arte não é imaginada. Então lidar com essas pessoas, a forma como eles veem, o modo como eles querem que a gente faça um teatro comercial, que a gente vá lá falar do assédio que acontece dentro do ônibus, eles querem sempre conduzir a gente para uma necessidade deles e a gente tem que descobrir caminhos para poder fazer o que a gente acredita que precisa ser feito.
Daniel
A memória e a resistência de vocês têm a ver com o aprendizado e o contato com a Andrea Cavinato [doutora em Educação pela FE/USP, professora, atriz e contadora de histórias do grupo Caixa de Fuxico]. Esse encontro com a formação que ela estimula em Teatro e Imaginário foi contemplado o tempo todo na fala de vocês. Quando o Anderson traz o Bachelard, por exemplo, esse encontro e esse vínculo que você e o Rudinei tiveram com a Andrea se fazem presente.
Anderson
Ela trabalhou nos nossos dois últimos espetáculos com Teatro e Imaginário, preparação corporal. A Andrea é uma pessoa bem bacana também que vem trabalhando com a gente.
Aguinaldo Lago – Funcionário do Teatro Municipal
A minha história de amor com a Trupe Sinhá Zózima tem mais ou menos uns quatro anos. Diante de tudo isso que eu já ouvi aqui hoje e do que a gente já conversou, em relação ao público, acho que o teatro pode ser feito em qualquer lugar, não importa se em ônibus, no palco italiano, na rua, no banheiro de uma casa. O trabalho que eles fazem é maravilhoso. Vi os três espetáculos. Quando a gente se apaixona pelo trabalho de um artista, vai querer conhecer tudo desse grupo, e foi o que me aconteceu comigo em relação a eles. Quando você gosta, você vai acompanhar. E acho importante o trabalho que eles fazem por ser justamente dentro de um ônibus. As pessoas estão anestesiadas com essa vida horrível que elas levam. Poder parar e ter algumas horas de prazer, ouvir uma história que vai entrar de um jeito e sair de outro, isso é muito estimulante. Nesses dez anos, com toda uma saga, dá pra fazer um filme agora, com certeza.
Enquanto espectador, tudo que eu posso ver pela cidade, eu vou, se não for legal vejo só uma vez. E é importante porque tem muita gente que não sabe o que é teatro, não teve a chance de conhecer. Eu hoje trabalho no Teatro Municipal e quando convido pra ver um concerto, as pessoas perguntam como tem que ir [como se vestir]. O espaço é suntuoso, mas isso não quer dizer que você também tenha que ser, se esmerar para sair de casa. Veja do jeito que você está. O trabalho de vocês é muito importante para a cidade e para tentar formar esse público que é trabalhador e só toma porrada. Afinal, a vida pode ser diferente e melhor.
Henrique Sanches – Ator
Sou muito fã desse povo bonito que está aqui hoje, eu também assisti aos três espetáculos. O Dentro, depois Os minutos, e quando eles retomaram agora eu vi o Cordel e vi novamente o Dentro. Acredito no teatro como agente transformador. Aproveito para parabenizar aos dramaturgos aqui presentes pelos textos lindos, muito tocantes. Eu vejo a arte de vocês como um atravessamento, passa por nós e nos transforma. O Terminal Sacomã não é mais o mesmo para mim, de verdade. Eu moro lá perto e já tinha visto vocês. Vejo com outros olhos, são novas memórias. E no palco externo da Casa de Cultura é uma outra memória, uma outra vivência, e eu estou lá praticamente todos os dias. É uma arte que transforma, que toca, da qual você quer estar junto, presente, quer fazer parte. Eu me sinto parte disso como espectador e admirador da arte de vocês. Acredito muito na pesquisa do espaço alternativo, que em qualquer lugar da cidade é possível fazer teatro, lugares que podem ser transformados pela poesia.
Priscila
Em 2014, eu e a Tatiane fomos representar o grupo no 1º Mercado de Indústrias Culturais dos Países do Sul [o Micsul aconteceu na cidade argentina de Mar del Plata, de 15 a 18/5), um evento maravilhoso porque a gente consegue se conectar com programadores e produtores de vários países e de diversas linguagens – música, teatro, dança, etc. Teve um dia em que a gente conversou com um rapaz da Colômbia para explicar a ele o trabalho da trupe, em espanhol. E se a SPTrans não entende [os procedimentos de produção], como é que eu ia explicar para ele, em outra língua, que o que a gente faz é relevante?
Mas conseguimos uma resposta: o que a gente oferece não é uma peça de teatro, não é um espetáculo de teatro, é uma experiência teatral. E para a experiência não tem valor porque é uma experiência positiva. E nessa hora ele conseguiu pensar de uma forma mais inteira e complexa sobre o nosso trabalho. E acho que pega muito essa coisa da experiência teatral. Existe a relação com a dramaturgia, com o ônibus, com o espaço. Quando você [para Henrique] fala, por exemplo, que a partir de agora quando passa no Terminal Sacomã você tem uma outra relação com o lugar, é porque você teve uma experiência boa. E no trabalho da trupe, acho que até por conta do convívio de formação com a Lídia Zózima, é essa relação da experiência que de alguma maneira a gente trabalha. Nosso teatro ocupa um transporte público, um ônibus em movimento. As pessoas entram e saem, e em vários momentos ocorrem intervenções espontâneas, que acho que são artísticas também e que colaboram com o trabalho.
Junior
Eu percebo o amadurecimento dentro da trupe, tanto na pesquisa quanto na direção, e nos próprios artistas pesquisadores, de aprender no tapa e descobrir depois como isso reverbera na gente. E isso é muito legal, o amadurecimento da encenação e o encontro que o Anderson faz com a dramaturgia, como costura essa dramaturgia, porque a dramaturgia do Rudinei para o nosso ônibus era muito textual, muito difícil. A Priscila até comentou que a gente criou músicas em cima e era porque a gente achava que tinha muitas palavras, e isso às vezes começava a devanear demais nos nossos ouvidos e a gente preferia cantar essas palavras. E o Anderson começou a costurar essas falas, um texto longo numa sequência só, e ele recorta e costura na encenação, criando uma dimensão outra para o espetáculo.
Luiz
Eu não conhecia o grupo até ser convidado – com grande prazer – para trabalhar com eles. Logo assisti ao Cordel e ali já ficou bem claro o talento e a aptidão do grupo para a música. E n’Os minutos acho que ficou mais latente isso, que é legal pontuar: a música é muito forte nos espetáculos do grupo. Para mim esse espetáculo é uma opereta urbana, porque a dramaturgia fica muito mais suave através da música, principalmente para aquelas pessoas que sobem ao ônibus e não sabem o que está acontecendo. Ou subiram e vão descer no próximo ponto, essa coisa meio cortada. Acho que a música faz um sentido praquilo tudo.
Maria Alencar
E tem muito ruído no ônibus, no entorno. As pessoas amam muito o Dentro, mas às vezes a gente sente, falam que não conseguiram ouvir, que perderam uma parte. Aí a gente começa a pensar nisso, na música ecoando.
Anderson
N’Os minutos a impressão que dá é que ele acontece e não acontece, e é desesperador quando ele não acontece. Ele acontece por meio do público, mas parece que a gente tem ali um lugar, um “entre”, pensando que é esse lugar que você não consegue controlar por mais que a gente tenha toda a estrutura, a experiência. Pois parece que tem um “entre” ali que potencializa o espetáculo ou também o fragiliza. E a gente já teve apresentações em que isso aconteceu. A cada trabalho tira-se uma semente de investigação. E d’Os minutos o que fica é essa possibilidade dos públicos avisado e desavisado. Porque tem uma camada aí de um público que veio assistir, mas não assiste só a gente, também assiste o público, e isso é muito precioso, muito interessante pensar nisso como pesquisa, como encenação, como dramaturgia. E esse “entre” é como se o ator deixasse livre para que algo aconteça, mas parece que esse querer que aconteça alguma coisa ele já é um pressuposto para que ele não aconteça.
Valmir
Vocês têm no discurso de caráter muito empático, de diálogo, de nostalgia do humano, chegam a citar o sociólogo austríaco Martin Buber [1878-1965]. Fiquei pensando aqui, a partir do projeto que virá sobre a terra, se também não será uma vereda para vocês criarem uma relação mais atritosa do que empática. Fico imaginando como teria sido Valsa nº 6, o texto do Nelson Rodrigues que vocês montaram e não cheguei a assistir, se lá tem esse jogo mais empático também, dada a noção do popular que está numa perspectiva que vocês assumiram e também na musicalidade. Na natureza da fala de vocês existe uma aura muito de encontro, de celebração. Se não está por vir aí a vontade de atingir camadas ainda mais difíceis, mais desafiadoras para esse espaço ainda do ônibus, mas mais ruidoso no sentido proativo da criação.
Priscila
No Valsa nº 6 a gente tinha saído desse momento elemental, dessa questão da água, do fogo, e foi buscar um texto pronto para descobrir no que o ônibus poderia se tornar nesse momento. E o Anderson tinha esse desejo louco pela Sônia [personagem], um texto maravilhoso do Nelson Rodrigues. Ele trouxe, a trupe aceitou numa busca de querer fazer outras experimentações naquele espaço. Todas nós seríamos Sônia, as seis, e o ônibus seria a cabeça da Sônia nesse momento entre a vida e a morte, a gente inclusive abriu o motor. A gente estava sem o ônibus da Viação Transguarulhense porque foi no momento da ruptura e conseguiu um outro carro de São Bernardo do Campo, um ônibus que levava as pessoas ao cemitério, era todo branco, a iluminação azul. E a gente se jogava, enfrentando o público mesmo e a galera ficou meio em choque. Tinha esse estranhamento com o público. No Cordel a gente recebia, acolhia, e no Valsa a gente estranhava, afastava.
Anderson
Tanto que ao final do espetáculo a gente fazia com que o público saísse do ônibus, a gente subia de volta e ia embora. Não tinha aplausos depois e era horrível isso. Mas uma coisa talvez a gente mantenha: a gente tem uma busca pela dramaturgia brasileira, Nelson, Pedro Bandeira [cuja obra literária inspirou O poeta e o cavaleiro, de 2010]. Sobre o tema da terra, eu sinto que não. Sinto que é uma vontade de ir mais fundo ainda nesse encontro, nesse “entre”, nesse risco. Eu sinto um movimento de transformação da cidade, apesar de todo o drama que a gente está vivendo, mas sinto que é um momento de transformação, de análise, de reflexão e de mudanças. Eu fui num lugar que trabalha sobre agrofloresta [um sistema ancestral de uso da terra] e, para mim, é uma das possibilidades de saída no sentido de “reolhar” o humano, a sociedade, a forma como ela lida com a terra, com o alimento, a diversidade que é cultivada no próprio plantar e no próprio colher.
Historicamente o plantio dos nossos alimentos se dá como monocultura: uma única plantação de café, de laranja. A agrofloresta vem com um saber dos índios, mas que tem toda uma metodologia. É através da diversidade da policultura que você tem alimentos que não precisam de veneno, que um potencializa o outro, então você tem alimentos mais fortes do que se tivesse criado sozinho. A terra não é sugada, mas sim nutrida com essa diversidade. E para mim é uma lógica, uma vivência, uma experiência, uma concretude do que ela está fazendo e que pode transformar o nosso pensamento. O nosso pensamento de fato, mas também de como a gente se alimenta em todas essas camadas e é sobre isso que a gente vai se debruçar.
Eu tenho um terreno na zona leste, e estou praticando agrofloresta nele. A gente até nomeia o projeto de “Casa-Floresta”, que é a ideia de poder conseguir transformar terrenos das vizinhanças num lugar de horta e de plantio através dessa noção agroflorestal. Ou seja, dessa diversidade. Esse estudo acontece muito no interior, muito em lugares distantes ou muito na Vila Madalena, que tem mais privilégios para poder ter esse tipo de coisa, de conhecimento, e na periferia isso também não chega. E vai fazer um ano já que estou lidando com a terra, com plantio, sem veneno. Eu sinto, Valmir, que o nosso desejo é um projeto mais audacioso, de construir três espetáculos, partir para um ônibus-barro, um ônibus-floresta e um ônibus-pó. E estamos falando também desse começo e desse fim, em que está tudo junto, mas acho que com a tentativa de se aprofundar e se aproximar mais, de encontrar mais, de radicalizar mais nessa pesquisa que a gente avançou com Os minutos e de poder, de alguma forma, abrir essa seara de como lidar com a terra, de como lidar com o alimento e de como lidar com a sociedade. É isso que a gente vai tentar estudar e fazer.
.:. Leia a crítica de Kil Abreu a partir de Os minutos que se vão com o tempo
.:. Leia a íntegra de outras edições do Encontro com o Espectador, desde junho de 2016
.:. Visite o site da Trupe Sinhá Zózima.
Projeto: “Semear _ por uma arte do encontro sem fronteiras”
Com: Trupe Sinhá Zózima
Cordel do amor sem fim
Equipe de criação
Dramaturgia: Cláudia Barral
Direção: Anderson Mauricio,
Com: Anderson Maurício, Cleide Amorim, Junior Docini, Priscila Reis, Tatiana Nunes Muniz e Tatiane Lustoza
Direção musical: Roberta Forte
Dentro é lugar longe
Dramaturgia: Rudinei Borges
Direção: Anderson Mauricio
Com: Alessandra Della Santa, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis e Tatiane Lustoza
Os minutos que se vão com o tempo
Dramaturgia (em processo colaborativo): Cláudia Barral
Encenação: Anderson Maurício
Com: Anderson Maurício, Cleide Amorim, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis, Tatiana Nunes Muniz e Tatiane Lustoza
Direção musical: Luiz Gayotto
Trilha original: Trupe Sinhá Zózima
Direção de arte e ilustrações: Lucas Lopes
Confecções de objetos cênicos: Thamata Barbosa
Preparação corporal: Lídia Zózima
Produção geral: Tatiane Lustoza
Produção executiva: Thais Polimeni
Assistência de produção: Érica Santos
Fotografia: Christiane Forcinito e Danilo Dantas
Documentarista: Luciana Ramin
Assessoria de imprensa: Paula Venâncio
Designer gráfica: Deborah Erê
Webmaster: Danilo Peres
Captação e edição do vídeo: Cinefoto Colapso
Canção: Útero gigante
Captação e mixagem: Carlos Nunez
Teaser gravado no estúdio da Fábrica de Cultura Parque Belém