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Encontro com Espectadores

‘Stabat Mater’ e a jornada de Janaina Leite

6.9.2020  |  por Teatrojornal

Foto de capa: André Cherri

O espetáculo Stabat Mater (2019) concentra avanços entre teoria e prática elaboradas pela artista Janaina Leite desde Festa de separação: Um documentário cênico (2009), passando por Conversas com meu pai (2014), ambos gestados em paralelo às atividades do Grupo XIX de Teatro, do qual é cofundadora em São Paulo, em 2001, além de se desdobrar em núcleos de estudo com os quais montou o díptico Feminino abjeto 1 [2017] e Feminino abjeto 2 – O vórtice do masculino [2019]. Convém contextualizar ainda a condição de mãe de dois filhos e a perseverança da também performer e doutoranda em não abdicar do trabalho continuado, rejeitando o que considera o violento lugar da mulher abnegada na sociedade patriarcal.

Aliás, a peça mais recente problematiza a relação com a maternidade em situações-limite, como ao atuar ao lado de sua mãe, a não-atriz Amália Fontes Leite, e atualizar um estupro de que foi vítima no início da adolescência. O estupro é tema que atravessa a montagem. O roteiro inclui projeção de registro em vídeo em que Janaina explora a ideia de gravar uma cena real de filme pornográfico com um ator profissional dessa área, participante de casting comandado pela equipe de mulheres criadoras e que surge na dramaturgia como a figura de Príaco, remissão ao deus grego da fertilidade.

O pensamento artístico da atriz tem sido influenciado por nomes como o da performer catalã Angélica Liddell, desde que a assistiu no solo Eu não sou bonita, em 2014, durante a 1ª MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, e pela filósofa e psicanalista búlgara Julia Kristeva, que desenvolve o conceito de abnegação no ensaio Stabat Mater, publicado em 1977. No texto, a figura paradoxal da Virgem Maria, mãe sem ter sido fecundada, é contraposta a posições feministas indiferentes ao tema da maternidade.

Pesquisadora em foco na MITsp deste ano, no mesmo março em que venceu o Prêmio Shell de Teatro na cidade, na categoria dramaturgia, dias antes de decretada a pandemia, Janaina participou do 36º Encontro com Espectadores ao lado da dramaturgista e assistente de direção Lara Duarte. Elas  conversaram com a jornalista e crítica Maria Eugênia de Menezes, que fez a mediação entre as convidadas e o público presente à Sala Vermelha do Itaú Cultural naquela tarde de domingo, 1º de dezembro de 2019.

Cada uma se projeta nesses feminismos que aparecem aí, o que tem muito a ver com as próprias histórias pessoais. Não acho que a peça soluciona completamente. É possível você só ver um feminino violentado. É possível você ver um feminino abnegado e potente. É possível você continuar vendo essa mulher como uma coitada. Cada uma também projeta a mãe que tem ou o feminino que habita em você. O que é que te repudia no feminino? Isso de alguma maneira aparece espelhado na peça

Janaina Leite, atriz, dramaturga e diretora

Também responsável por concepção e direção da obra em que performa, Janina propõe formato de uma palestra-performance sobre a história da Virgem Maria ao longo dos séculos, ao mesmo tempo em que tenta dar conta do apagamento da mãe no espetáculo anterior, Conversas com meu pai. “Onde estava a mãe?” – essa é a pergunta indiretamente respondida através da mitologia cristã em torno de Maria e o célebre Stabat Mater – ou “a mãe lá estava”, em latim, referência ao poema do século XII que consagrou o tema da jovem mãe aos pés do filho padecendo na cruz.

Essa mulher que deu à luz “sem prazer e sem pecado”, fecundada enquanto dormia, torna-se o protótipo para a construção no Ocidente de um feminino que se dá entre a santa e a caída, entre a abnegação e o masoquismo. Mais do que sobre a experiência do ser mãe, a montagem busca nessa “(con)fusão” as origens de um arranjo histórico entre o feminino e o masculino – refletido, por exemplo, no jogo de carrasco e vítima – que o trabalho tenta desarmar. Não sem antes correr os riscos de enfrentar os mecanismos de gozo e dor que fixam essas posições.

A seguir, a transcrição editada do 36º Encontro com Espectadores, ação realizada pelo site Teatrojornal, apoiada pelo instituto, e que teve as edições de 2020 suspensas, até aqui, por causa do novo coronavírus.

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Maria Eugênia de Menezes – Teatrojornal
A gente queria muito discutir esse espetáculo, Stabat Mater, e por isso essa edição especial [excepcionalmente aconteceram duas edições no intervalo de uma semana]. O Encontro com Espectadores surge um pouco a partir da ideia de que o espetáculo continua acontecendo para além do momento de sua apresentação no teatro. Por diversas razões, o Stabat Mater foi um trabalho que me acompanhou depois da sessão. Primeiro, como espanto e fascínio, e depois como reflexão. Ele me fez pensar em algumas coisas que vocês propõem, em questões trazidas de maneira explícita e colocadas mesmo naquele formato de palestra que vocês assumem, especialmente interessante pelas pistas jogadas para que cada pessoa do público possa montar o próprio quebra-cabeça e fazer a sua leitura do que está sendo colocado ali.

A Janaina Leite concebeu o espetáculo e a Lara Duarte esteve junto com ela na dramaturgia e na assistência de direção. O Stabat Mater é um espetáculo que conversa muito com a trajetória da Janaina, que iniciou no Grupo XIX de Teatro, mas depois partiu para pesquisas e investigações próprias, como o espetáculo Festa de separação, que já é uma parcela importante dessa investigação colocada no Stabat Mater. Era um espetáculo em que ela e seu ex-marido traziam para a plateia um ritual de separação, uma espécie de festa mesmo. Mostrava momentos dessa doação e questionavam essa ideia de que a gente só celebra os momentos ditos felizes, mas que não existem rituais para lidar com perdas e lutos ao longo da vida.

Depois disso, um espetáculo que dialoga ainda mais estreitamente com o Stabat Mater é o Conversas com meu pai, por motivos óbvios – porque ela explora sua relação com o próprio pai e em Stabat Mater explora a relação com a mãe –, mas também por que ela retoma uma série de procedimentos que a gente pode dizer que são aprofundados e radicalizados no Stabat Mater. Tem essa confusão entre o real e o fictício, que está colocada o tempo inteiro no espetáculo. No Conversas com meu pai ela desconfiava muito de tudo que trazia para a cena, o que era especialmente interessante. Talvez no Stabat Mater ela não faça isso de maneira tão óbvia, mas acho que essa desconfiança continua permeando o que está sendo colocado ali e continua trazendo a sensação de que mais do que saber o que é verdade e o que é mentira, é o conceito de verdade que está sendo investigado ou trabalhado. Além disso, a atriz lançou um livro sobre essa questão do teatro documental ou documentário [Autoescrituras performativas: do diário à cena, Editora Perspectiva, 2017], de modo que esse espetáculo faz parte de uma linha de pesquisa desdobrada em experimentos e criações como Feminino abjeto 1 e Feminino abjeto 2 – O vórtice do masculino [perfazendo o díptico].

Agência Ophelia A dramaturgista e assistente de direção Lara Duarte (à esquerda) e a atriz, dramaturga e diretora Janaina Leite: equipe de 17 criadoras envolvidas no espetáculo de 2019

Gostaria que você [para Janaina] falasse um pouco da relação entre esses dois trabalhos e o que está colocado no espetáculo. Além dos procedimentos aplicados no Conversas com meu pai, uma espécie de instalação performática, no Stabat Mater você me parece se aproximar do teatro da Angélica Liddell de uma maneira, digamos, evidente, bastante honesta.

Também gostaria que você pontuasse a influência dela nesse trabalho, ou se ela te influenciou mais fortemente nesse do que em outros. Existem dois experimentos radicais nesse espetáculo que são: a presença da sua mãe em cena e a relação com a pornografia, da maneira que você coloca, trazendo a ideia de que se dará ali uma cena de sexo explícito com um ator pornográfico. Acho que esse procedimento surge como uma tentativa de reposicionar uma série de questões. Creio que o seu fracasso, numa certa medida, reposiciona o lugar da sua mãe para você.

Uma questão que é particularmente instigante, imagino que para muitas pessoas, é o lugar que a sua mãe ocupa nessa criação. O lugar de uma centralidade lateral. Ela está sempre ou quase sempre presente, e chega até a ocupar o centro da cena, mas, mesmo quando isso acontece, é de uma maneira tão discreta que é fácil entender porque escapou a você o lugar de protagonista que ela tem nessa história.

Eu me lembrei muito de uma passagem da [escritora inglesa] Virginia Woolf, em que fala que a mãe dela era uma figura de enorme força silenciosa. É particularmente interessante a aproximação que você faz da figura da Virgem Maria, de abnegação absoluta, como a sua mãe que surge ali suportando, passando pelo suplício de assistir a certas coisas. Você coloca que ela permanece apesar disso, quando o que me parece é que ela permanece por isso e, de uma certa maneira, para sustentar uma fragilidade que é sua e não dela em cena. Quando você diz que para a sua surpresa ela não partiu, você fez de tudo para que ela partisse, mas o fato de ela ter ficado, como eu disse, significa essa figura que deixa de ser esse lugar de fragilidade e passa a ser de resistência, de certa maneira. Nós gostaríamos muito de ouvir de você, também, sobre as dúvidas da plateia, os impactos que surgiram. Você poderia começar falando um pouco a propósito da ligação desse espetáculo com o díptico.

Janaina Leite
É muito legal essa oportunidade de falar sobre o trabalho. A gente teve uma primeira temporada no Centro Cultural São Paulo [em junho de 2019, selecionada na 5ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos], uma curtinha no Teatro de Contêiner Mungunzá e, agora, estamos numa segunda nesse mesmo espaço. É raro a gente ter esse momento de poder conversar com a plateia. Para mim ainda é novo falar sobre o espetáculo e sobre as coisas que atravessam o processo. Antes de chegar no Feminino abjeto 1 e no Feminino abjeto 2, vou voltar para a Angélica Liddell, que você puxou, porque tem muito a ver.

Tanto esse espetáculo quanto o Conversas com meu pai são processos muito longos e num cruzamento totalmente inseparável entre arte e vida. Então, o momento em que as ideias começam a ser gestadas e ao mesmo tempo maturadas no plano pessoal, como é que isso demanda respostas estéticas? É tudo muito cruzado, mas tem um momento muito significativo e que tem a ver com esse encontro com a Liddell. É que eu estava para estrear o Conversas com meu pai em abril de 2014 e, em março daquele ano, teve a MITsp. E eu estava com um bebê pequeno. Ele estava para fazer 1 ano e, portanto, não consegui assistir a muita coisa naquela edição, mas eu li na programação um nome de uma espetáculo chamado Eu não sou bonita, e ele era da Angélica.

Eu não sabia nada acerca da Angélica, nunca tinha visto nada e foi o único espetáculo da MITsp inteira que vi naquele ano. E lembrando que eu estava para estrear o Conversas com meu pai. Foi muito impactante a relação com o Eu não sou bonita [apresentação acontecida no Teatro Cacilda Becker]. Ela em cena com um cavalo branco de verdade, retomando a história de um abuso que ela sofreu na infância. A sessão foi interrompida no meio por ativistas contra a história de o cavalo estar em cena. Portanto, havia muita coisa ali acontecendo ao mesmo tempo. Foi muito provocador para mim ver a maneira como ela articulava esse lugar do biográfico em cena. Ao mesmo tempo em que era bastante confessional, ela tinha ali uma entrada para o teatral, para o mítico, o simbólico, o lírico de uma maneira que eu nunca tinha visto nessa vertente do teatro documental. Então, essa maneira de juntar o documentário biográfico com o hiper teatral barroco, grotesco… Ela entra em cena com um bufão gótico, brincando com signos de contos de fada. Aquele cavalo branco e a princesa às avessas. Eu fiquei muito impressionada como linguagem, como forma e como tema.

André Cherri Amália Fontes Leite, mãe de Janaina na montagem teatral em que é reconhecida como não-atriz e lida com questões pessoais convertidas em linguagem

O tema do abuso já me era muito caro desde então, mas ainda formulado de maneiras outras. Fiquei muito impressionada, foi um divisor de águas e eu não podia mais pensar teatro da mesma maneira. Estreei um mês depois o Conversas com meu pai, que já estava pronto a essa altura, mas o jeito que a peça termina já é num lugar mais onírico, citando Édipo, citando as filhas de Ló [personagem bíblico do Antigo Testamento; ele e as duas filhas sobreviveram à destruição de Sodoma e Gomorra]. Já vai para uma espécie de autobiografia do inconsciente, do sonho, começa a se distanciar de uma perspectiva documental.

A obra dessa artista começou a ficar muito forte, fui atrás, li os textos que tinha na internet, depois ela retornou em 2016 com o espetáculo O que farei eu com essa espada (Aproximação à lei e ao problema da beleza). Então, quando eu comecei o Feminino Abjeto 1, era um grupo de estudos sobre a Angélica Liddell e que, inclusive, tinha esse nome. Ela expressava uma relação de ódio na maneira como o feminino aparecia. Há uma frase dela que me perturbou muito: “Encarar o comumente feminino produz em mim o verdadeiro asco”. Esse repúdio e repulsa em relação a esse comumente feminino começou a virar uma coisa, e eu tentei entender o que era aquilo, o que era esse movimento de embate muito profundo em relação a esse feminino e à maneira como isso ia aparecendo nas obras dela.

O grupo de estudos era aberto a homens e a mulheres interessados. A gente começou o trabalho com 27 mulheres e três homens. Depois foi afunilando. Era um grupo de estudos sobre a Angélica Liddell com alguns disparadores que eu fui pegando da obra dela. Mas, com o tempo, a gente foi se distanciando e mantendo ela muito mais como uma figura de provocação e interlocução do que realmente partir para montar um texto dela.

Particularmente, uma coisa me chamou atenção na obra dela que era justamente a maneira como a figura da mãe aparecia, desse duplo, dessa gêmea. Ela trabalha com automutilação em várias peças e, numa delas, corta o joelho, tem um pano que ela borda com uns escritos, ela cola nos joelhos, depois ergue e nele está escrito: “Te odeio, mamãe”. E essa mãe que ela odeia, e que eu fui começando a entender, era primeiro ela própria, a ideia de uma continuidade, de um feminino como uma transmissão de mãe para filha, uma espécie de herança maldita.

Então eu comecei a entender que a operação que ela fazia de ódio a essa mãe era de ódio a si mesma, em primeiro lugar, e esse movimento para mim era muito vivo, muito rico e muito potente. A ideia do abjeto tem a ver basicamente com esse movimento. Ele vem de uma crise em primeiro lugar, que é bastante autodestrutiva, mas que, de alguma maneira, também é uma ressurreição que passa pelo luto, algo que precisa morrer para que outra parte possa de alguma jeito ganhar espaço.

Esse lugar de feminino abjeto, de um feminino como crise, e uma crise de dentro para fora, era menos uma denúncia em relação a algo externo, por exemplo ao machismo que está no mundo, que está nos homens, e muito mais um movimento de entender de que forma esse machismo nos forma.

Senti que esse momento de dentro para fora era até mais acessível para mim do que o de fora para dentro, que é o que está no mundo e com o qual a gente precisa lidar com nossas lutas, foi o que eu propus ali para aquele coletivo de pessoas. A gente foi se afastando cada vez mais da Liddell e encontrando materiais biográficos dos participantes e pensando o que era esse feminino abjeto para eles. Nesse grupo eu era a única mãe. Certo dia, propus um exercício a partir de uma figura de mãe porque eu já tinha na cabeça as questões que iam dar no Stabat Mater, e mesmo que as atuantes não fossem mães, elas eram filhas. A minha surpresa foi justamente essa, ver a intensidade com que esse duplo, esse espelho mãe e filha apareceu no material. A essa altura éramos só mulheres e uma pessoa trans não-binária naquela época. A gente fez uma espécie de ritual com essa mãe no chão e tinha uns temas como identificação, rejeição, sacrifício.

Quanto à presença da Amália, do ator pornô também, mas sobretudo a presença dela foi uma virada muito intensa na coisa toda. Eu estava escrevendo sobre uma pessoa que não era essa pessoa. Ela nem é essa coitada e nem é essa supermulher que a gente acha que deveriam ser as mulheres. Era outra coisa, era outro tipo de relação com a vida. É você ir para um encontro com um ator pornô, com a sua filha, e levar um bolo. É esse o lugar

Ramilla Souza – dramaturgista e coassistente de direção

No Feminino abjeto 1, esse primeiro laboratório, só tinha mulheres e essa pessoa não-binária, em 2017.  Foi lá, como eu conto no Stabat Mater, que eu fiz um experimento em que tomava remédio para dormir e dava uma palestra até ver o efeito do medicamento. Fiz essa performance lá pela primeira vez e fiquei com esse material entendendo que ainda existia esse tanto de coisa para mexer e trabalhar. Nesse momento, eu já tinha clareza a respeito desse ponto-cego no Conversas com meu pai, de ter notado esse ato falho, de que existia um apagamento da figura materna em relação à figura paterna, ainda mais numa peça que trata simbolicamente do tema do incesto. Eu já tinha muito essa clareza de que havia esse ato falho. Com essa pergunta na cabeça, no sentido do por que esse apagamento, o que isso significava, e com esse tema do feminino abjeto pulsando, essa mãe com esse duplo de identificação e rejeição, foi então que eu cheguei para a Lara e para a Ramilla [Souza, ambas assinam dramaturgismo e assistência de direção] que, mesmo sem nada, eu queria começar a trabalhar. A gente começou a se encontrar e a conversar a partir disso. Ainda não existia um texto, não existia nada, só existia esses pontos quase temáticos, pontos biográficos, alguns assuntos e ideias que já estavam por ali rondando.       

Lara Duarte
No Stabat Mater eu estou como assistente de direção, uma função muito mais entendida sobre o que um assistente de direção faz, e como dramaturgista, que é uma grande incógnita, eu acho, pensar como funciona a atuação de dramaturgista no cenário do Brasil. Pensando que essa figura que a gente importou da Alemanha a princípio tinha uma função quase que de curador, organizador de festivais. E como é você pensar processo, pensar criação colaborativa, pensar essa autoria difusa num cenário em que é supercomplicado sobreviver com as peças e no qual os orçamentos são muito apertados. Eu acho que esse dramaturgismo vem quase como a figura de um dramaturgo na cena contemporânea que está muito distante de alguém que vai chegar como autor de um processo ou alguém que vá conceitualizar a obra. Mas que a gente foi, em sala de ensaio, em processo, em conversa, entendendo o que é dramaturgia num sentido muito amplo.

O Stabat Mater tem uma autora muito forte, que é a Janaina, e muito genial, meio cientista maluca. Tenho um pouco essa sensação, ao trabalhar com ela, meio como de um liquidificador que vai juntando muitas referências teóricas, biográficas e estéticas. A gente funciona mais quase que como um olhar. Em determinado momento tem o reencontro dessa autora do princípio, do primórdio, com a própria obra. Então, quando eu e Ramilla chegamos, a gente tenta pensar e compor junto , escrever uma composição de dramaturgia assim como chegam outros artistas, a sonoplasta, a iluminadora. Quando chega a dona Amália, mãe da Janaina, ou o Lucas [Asseituno, atuante como Príapo Amador], todo mundo recria a peça naquele momento. E toda vez que ela é feita, ela acontece de novo em certa medida.

Eu entendo que a abjeção tem uma contraface, um tipo de celebração disso tudo também. Entendo quando essa mãe mítica ou essa mãe real que a gente conhece, que tem uma presença, que quando entra na obra altera completamente o que tinha sido previsto, ela escolhe ficar porque pode ser muito incrível fazer teatro aos 75 anos, estar em contato com a equipe. É bacana também quando a gente consegue pensar em toda a violência, toda a abjeção e todo o repúdio que a gente tem por certos padrões de comportamentos, mas, ao mesmo tempo, vivemos com isso, celebramos isso e estamos aqui pensando linguagem, pensando poética, fazendo peças de teatro e conversando sobre elas – e isso comunica alguma coisa em alguma medida.

Maria Eugênia
Vocês poderiam deixar um pouco mais claro sobre o que estão falando quando falam dessa abjeção dentro do feminino?

Janaina
Não é tão fácil deixar claro. Essa ideia é mesmo um conceito e é tudo misturado, a vida com a academia. Estou fazendo doutorado na USP e eu gosto muito de pesquisar. Para mim não há nada que acontece de forma artificial. Se vocês forem ver a peça ela tem um monte de coisa da ordem da teoria também. Para mim a teoria sempre ajudou a pensar a vida também, não há nada que fique artificial.

A abjeção chega pela Julia Kristeva. Depois eu descobri que a Kristeva pega da Melanie Klein, que é uma psicanalista [austríaca] que teve um papel muito importante e fundamental em recolocar a mãe na psicanálise, que é muito em favor da figura do pai e a mãe ainda é num lugar bastante coadjuvante nesse apagamento. O que ela vai colocar, na verdade, é que talvez mais definidor do que a passagem do pai, que é o simbólico, tem um momento que é isso que ela situa no território pré-linguagem, no qual a gente ainda não tem a noção do eu-outro, quando bebê, da experiência do nascer, do vir ao mundo.

A Klein vai dizer que esse primeiro período em que a criança está completamente fusionada à mãe, quando ela não se entende ainda como eu e não entende o outro como um outro, ela é uma extensão. Todos nós já fomos a extensão do corpo de alguém.  Ela vai então dizer que durante todo esse período pré-linguagem, do qual a gente não lembra e não sabe, a gente tem alguma memória de um momento de plenitude e de um grande horror também, porque implica a ideia de você depender e estar completamente ligado a alguém, e esse alguém depois não está o tempo inteiro. Depois que você saiu da barriga da mãe, essa ausência, esse espaço, essa pequena distância, depois que faz um berreiro, a criança não tem a noção do tempo. Tem aquela anedota do seio bom e do seio mau: o seio bom é o que está na boca do bebê e o seio mau é o que não está. E quando a criança junta o seio bom e o seio mau, ela percebe que é a mesma pessoa. Então fica triste, melancólica, porque entende que do mesmo lugar que tudo dá, tudo faltará também.

Melanie Klein vai dizer que essa primeira aprendizagem, de fusão e de separação tem muito a ver com território do qual a gente não vai se lembrar, vai ser uma espécie de fantasma, de sombra para o resto da vida. É esse o nosso conflito, entre depender do outro e precisar ser autônomo. Ela fala que a abjeção começa aí, é esse primeiro movimento de se separar. E que como a mãe é você mesma, como a mãe é uma extensão de você, é essa parte de você que você precisa rechaçar para poder se tornar um eu. A nossa primeira memória dessa figura materna que você precisou expelir para se tornar um eu é também aquilo que te falta, aquilo que você precisou rejeitar e do qual precisou se separar para se tornar independente.

Agência Ophelia Cofundadora do Grupo XIX de Teatro, em 2001, Janaina trilha pesquisa paralela desde ‘Festa de separação: Um documentário cênico’, de 2009, imbricando noções autobiográficas

Então, a abjeção é essa crise da qual você precisa se separar de alguma coisa para se tornar um eu. Mas ela também vai dizer que isso não acontece completamente e que ao longo da vida a gente vai ter sempre uma espécie de sombra, de um lugar de dependência, de incompletude que vão ficar nos assombrando. Ela vai dizer que em todos os momentos na vida em que a gente se aproxima desses territórios nos quais a gente perde o contorno, como nas experiências de trauma, de morte, quando esse contorno está ameaçado, [se processa] uma espécie de lembrança desse primeiro território – um território que é incrível e, também, ameaçador. Tanto que a Kristeva vai chegar na psicose e vai chegar na própria arte. E vai falar que a arte, de alguma maneira, também é um contato com esse território pré-linguagem no qual, em algum momento, a gente precisa passar para a linguagem, conversar e virar um ser social.

A nossa capacidade de criar está muito ligada a esse momento da pré-expressividade, em que é preciso subverter a linguagem, transgredir a linguagem do pai. E para transgredir a linguagem do pai é preciso voltar a esse território da mãe, e a mãe no sentido amplo. A experiência da criança é muito heterogênea porque como ela não tem noção de onde é o outro, então tudo é atravessamento, seja o que sai de dentro dela, seja o leite que entra. Uma espécie de fronteira frágil das coisas que estão entrando e saindo. Não há uma definição de sujeito-objeto, são atravessamentos. E a Kristeva vai aproximar isso da experiência das plasticidades todas, da questão da arte, que é sensorial e que não é da ordem do sintagma. Você não pega um quadro e pergunta qual é a frase, se é amarelo, o tamanho. É uma experiência de atravessamento.

Não é fácil falar da abjeção porque é um conceito enorme e supercomplexo. Ele é muito apaixonante e muito contraditório. Tem a ver com lutos, com perdas, com extirpar coisas para conseguir retornar a esses territórios perigosos nos quais a gente não tem tanta clareza do contorno, a gente se permite borrar fronteiras, se fundir no outro, se fundir na linguagem, perder a linguagem. E esse feminino abjeto tem a ver com esse lugar de crise, em que você precisa identificar e expulsar de dentro para fora uma coisa que também é você. Mas a questão do abjeto é porque ele nunca vira um objeto. Então, isso que você expulsou nunca vira algo fora. Essa mãe ou esse feminino, essas figuras que te habitam e que você vai expulsar vão continuar sendo figuras de espelho, figuras de assombro, mas você dá mais mobilidade a elas e ficam menos assustadoras, menos autoritárias. Tem a ver realmente com esse feminino em crise, mas uma crise de dentro para fora e não de fora para dentro.

Lara
Na peça, tem um momento da palestra que fala que por isso tudo podemos pensar em significados menos óbvios para a degradação do corpo de mulheres na cultura de massa. Creio que o significado mais óbvio seria a misoginia que constitui as relações de poder na sociedade. A gente pensa essa misoginia como algo fundante da nossa personalidade, do nosso caráter a todo momento, e esse significado menos óbvio é esse medo de perder o contorno da identidade dessa mãe gigante e mítica que está na constituição da gente em alguma medida.

Maria Eugênia
Porque ela fica nesse misto de desejo e ameaça…

Janaina
Como nos filmes de terror que a gente fala na peça. Ao mesmo tempo é esse lugar muito atraente, muito pleno e muito poderoso, mas que te dá medo. Entrar de novo por essa buceta e voltar para esse útero e ficar preso lá dentro… A ideia, a mítica muito forte do útero como paraíso, como tumba e como caverna está em várias mitologias. Essa metáfora do útero que pode ser um lugar de nascimento e um lugar de retorno para a morte. Então, não há volta, não há retorno possível. Ao mesmo tempo que a gente tem essa memória idílica, voltar é terrível, voltar a ser extensão de alguém também é terrível. Se você estuda filmes sobre serial killers, todos têm muito a ver com essa atração absurda por essas mães e, ao mesmo tempo, trazem uma história de vingança. Aquela figura da qual você depende e precisa tanto, mas, uma vez diante dela, se sente tão frágil e precisa se vingar e afirmar algum tipo de poder. E eu não estou falando de ficção não, estou falando dos serial killers mesmo. Esse lugar da mãe, do feminino é muito regular.     
           
Maria Eugênia
Então, já que você está nesse território, eu queria que falassem um pouco sobre essa imagem da mãe degolada ou desse ato de degolar, já que podemos pensar que o que está colocado é justamente esse medo de dissolver o que você simboliza ali, a sua individualidade naquela figura. No Conversas com meu pai a gente poderia até ler aquela cena como uma retirada da mãe, uma morte desse terceiro elemento que se interpõe na relação incestuosa entre mãe e filha, mas me parece que não, que é muito mais essa tentativa de não sucumbir, de se diferenciar, de fato. Você chega até a falar na peça da imagem dessa mulher sem cabeça. 

Janaina
Isso está até diminuído no espetáculo, se pensar na dramaturgia a que a gente chegou. Essa cena foi da primeira versão do texto, hoje estamos na 32ª. Essa espécie de sonho, pesadelo, miragem é porque essa cena está descrita assim no roteiro. Tem a cena da decapitação da mãe, mas isso vocês não viram na peça porque está na dramaturgia lá atrás. E essa cena da palestrante que dorme na mesa, que acontece hoje apenas uma vez no espetáculo, acontecia mais vezes no espetáculo, numa espécie de looping em que essas princesas que dormem, as belas adormecidas… Tudo isso ia levando o espetáculo para esse lugar mais onírico e mais profundo.

André Cherri Lucas Asseituno e Janaina em cena do trabalho que é atravessado pela questão do estupro e critica o autoritarismo da indústria pornográfica

Havia um apocalipse final tragado na cena do pole dance, tragado por esse útero. E a palestrante dormindo entre escombros… Uma imagem que acontecia recorrentemente era essa figura mascarada que aparecia no espetáculo e voltava de formas diferentes, sempre ligada a essa figura fálica, a essa figura entre sedução e ameaça. Então, nessa primeira peça que foi escrita, no momento final essa figura entrava em cena, puxava essa figura dormindo e a cena de sexo acontecia ao vivo. Essa figura começava a penetrar essa mulher dormindo e essa mãe decapitada acordava e, sem cabeça, pegava o copo de água da palestrante e jogava na cara da filha que despertava de um estupro. E essa mãe sem cabeça começava a cochichar coisas no ouvido da filha e essa filha tinha uma reação. Aí ela cochichava uma coisa no ouvido do cara, que também mudava alguma coisa na movimentação dele. Ela começava a dirigir nesse sentido de sugerir, assoprar uma movimentação, uma dança.

Ou seja, essa mãe decapitada, aparentemente com uma imagem de fraqueza, vinha com muito mais força ainda justamente para reger a grande cena final. Então, para essa figura decapitada era dada a grande autoridade final a partir desse novo ponto de vista, de uma cassação, de um corte, de algo que se perde, uma nova possibilidade de regência. Isso não existe mais no espetáculo, não dessa forma, mas isso atravessa porque, de alguma maneira, é a partir de algo desse feminino, dessa mãe que se abre mão, que se mata, que uma outra força, que uma outra possibilidade de regência entre esse feminino e masculino pode acontecer. Isso nasceu dessa maneira, mas vai ganhando outros contornos.

A Lillah Hallah também foi uma dramaturgista colaboradora importante do processo, ela estava na Alemanha e fez toda uma conversa à distância, mas foi superpontual e decisiva. Ela falava que quem tinha de ser decapitado era a figura masculina e eu explicava que não se tratava disso, e que isso não estava nas minhas mãos porque o que estava sendo decapitado e morrendo era o feminino em mim, o feminino que me compõe e que tem a ver com a figura da minha mãe. Então, não é matar a minha mãe literalmente, mas a mãe que me habita, a mãe que eu rejeito quando não entendo esse lugar da abnegação como escolha, ao tê-la apagado, no meu olhar, da minha própria biografia.

Creio que as duas coisas estão lá na peça. O lugar mais nevrálgico, mais sensível, mais polêmico tem muito mais a ver com a posição dela do que com a posição do homem, do pornô, porque ali sim você tem as duas coisas acontecendo. É muito violento esse lugar da abnegação, esse lugar do apagamento e, ao mesmo tempo, o que acredito que sejam essas viradas de força: a força no silêncio, a força na permanência. E talvez o meu grande movimento de reconciliação com esse lugar materno é de entender a força na permanência, a força na constância, nesse estado feminino que é tão invisível. A Silvia Federici [filósofa e ativista feminista italiana radicada nos Estados Unidos] vai falar que na verdade o lugar materno é o ponto de sustentação das sociedades porque, afinal, quem ficou fazendo uma criança do zero, a existir pelo menos nos 12 primeiros anos, entre cuidar, comer, acordar, enfim, foi a mãe. E a gente ainda não falou nada sobre o que é trabalho doméstico, trabalho afetivo, trabalho sexual no plano psíquico, no plano das relações.

A peça nasce quando eu viro mãe, porque quando você se vê nesse lugar de total doação ao outro e dependência, você fala que lugar é esse que vai contra todo o nosso lugar. O nosso feminismo é muito fálico ainda, muito de empoderamento na rua. A gente quer ocupar o lugar dos caras e a gente não consegue. Não teve ferramentas para entender o que podemos ser. Cada uma se projeta nesses feminismos que aparecem aí, o que tem muito a ver com as próprias histórias pessoais. Não acho que a peça soluciona completamente. É possível você só ver um feminino violentado. É possível você ver um feminino abnegado e potente. É possível você continuar vendo essa mulher como uma coitada. Cada uma também projeta a mãe que tem ou o feminino que habita em você. O que é que te repudia no feminino? Isso de alguma maneira aparece espelhado na peça.

Lara
Bem no começo, teve um momento do roteiro em que a gente dividia a palestra em pescoço, cabeça e degola. E isso tem muito a ver com a estrutura do texto da Kristeva, que eu acho que a gente encontrou essa metáfora na linguagem, que era coluna da teoria e da dor. A gente construía essa dor-teoria através dessa cabeça, da razão, e ia descendo, vindo para a fala, para os líquidos todos da garganta não como a morte exatamente da mãe, mas do pensamento racional talvez ali numa medida. E o tanto que esse trabalho materno não é remunerado, por exemplo. A gente está sempre dizendo como é violento o lugar do silêncio e como a imposição à fala também é violenta, e que eu acho que isso foi uma curva que a peça fez com a coisa toda da pornografia.

Maria Eugênia
Queria que comentassem um pouco sobre a expectativa que vocês tinham ao trazer a pornografia para dentro do espetáculo. Você até fala que essa cena aconteceria ao vivo e ali, com essa mãe dirigindo de fato, e depois a gente, na verdade, assiste a essa cena filmada, com a mãe acompanhando e, de uma certa maneira, ajudando a construir essa máscara. Então, eu queria que a Janina falasse da expectativa que vocês tinham ao trazer a pornografia e o que isso desencadeou para vocês.   

Janaina
Na primeira versão do texto já existia a história dessa figura fálica em cena e essa relação com o sexo, que vinha muito dessa Virgem Maria sem sexo. Porque a gente concebe um ideal de feminino que é materno, mas dessexualizado. E o nosso protótipo de mulher, nesse sentido, é mãe, mas ela não transa, e esse é o clássico, porque você vira mãe e sai do rol de mulher.  E a gente sabe muito bem o quanto ainda, para o homem, ser pai é quase um lugar de atração. Você vai para o Tinder e fala que é mãe, acabou sua vida, mas se você é homem e fala que tem filho, aí tem todo um charme. E esse lugar materno ainda vai querer cuidar do filho do cara.

Se você adentrar o mundo do que é consumido na pornografia, como que se dá essa divisão? Ela é plasmada em quais opressões? Tem uma figurinha que está rodando no WhatsApp que diz: ‘É possível unir luta de classes e tesão?’. E fica a pergunta um pouco para mim, no sentido de assumir uma responsabilidade por estar pensando conceitualmente a peça numa certa medida. Por estar partindo de textos teóricos ou por Janaina estar no doutorado e isso ser uma chave de poder. Mas sabemos o quanto as opressões são muito complexas e enraizadas. O pensamento conservador é um só

Lara Duarte, dramaturgista e coassistente de direção

Enfim, tem essa separação brutal no Ocidente entre a mãe e a outra, a santa e a vadia. Acerca dessas dicotomias, a Kristeva fala muito no texto dela, um artigo curto de 12 páginas que foi disparador das várias teorias que atravessam o espetáculo. De alguma maneira, eu entendia que a coabitação do sexo com essa Virgem Maria tinha totalmente a ver com a natureza do trabalho, desse feminino continuar sendo maternal porque tinha também uma reconquista da maternidade, da minha mãe e da minha própria maternidade, mas reivindicando esse lugar da sexualidade.

Essa cena, então, sempre esteve lá, estava escrita nessa dramaturgia como uma cena de sexo real que eu nunca nem imaginei como é que isso seria feito, se eu teria coragem de fazer, porque foi realmente uma miragem. Ela nasce como uma cena de estupro e se transforma no meio porque, justamente, a peça inteira atravessa o tema do estupro. E no meio dessa cena – que, sim, é uma cena de estupro –, ela tem um chamado, que é essa história da mãe que acorda a filha e diz: “O que você vai fazer? Você vai querer sair daí? Você vai ficar aí como?”. No meio, ela passa por uma cena de atividade e de escolha. Mas estava tudo no plano da imaginação. Quando o processo começou a andar, a gente caminhou por muitos lugares em relação a essa cena. Não lembro em que momento da história veio a ideia de fazer o processo de casting com os atores de filmes pornôs, porque esse personagem seria feito por um profissional dessa área. Eu não sei se isso já estava no roteiro original.    

Lara
Sim, já era para ser feito por um ator pornô.

Janaina
Olha aí, eu nem me lembrava mais. Enfim, a primeira ideia era que fosse ao vivo, mas conforme você vai aproximando da coisa toda, vê o que de fato queria desse momento e o que podia em relação a ele, e foi passo a passo. Tinha muito uma ideia de programa performativo, no sentido de “vai ser o que acontecer”. Toda a ideia de fracasso, toda a ideia de impossibilidade, de não ter coragem de fazer, não poder fazer, não acontecer, tudo isso de alguma maneira estava dentro do horizonte de possibilidade do trabalho, tanto que as coisas foram se dando muito aos poucos. No processo de casting, eu tinha escrito uma carta de filmagem para todas elas [da equipe de criação], dizendo o que eu imaginava para esse momento do casting. Uma das ideias era que no fim do casting, no fim da entrevista de cada um dos caras, eu ia perguntar se ele aceitaria fazer uma cena de sexo comigo dirigida pela minha mãe. E eu não sabia se essa cena seria feita, não sabia se a minha mãe estaria nesse cena, não sabia se ia acontecer e se eu teria coragem de fazer, mas eu sabia que naquele momento do casting era importante fazer essa pergunta. Essa pergunta em si já era um mover de relações naquele pequeno espaço da sala de casting, o que isso reverbera nos caras e em mim.

Para alguns aos quais me dirigi eu tinha vergonha, tinha medo de fazer a pergunta. Para outros era diferente, então tudo isso reverberava na gente, já poderia ter acabado ali naquele momento. Depois, quando a gente escolheu o ator pornô [Loupan], tudo que foi acontecendo de interlocução com ele, a presença da minha mãe ou a não presença da minha mãe foi sendo verificado a cada dia, o que iria acontecer ou não. Tanto que na carta de filmagem, no dia da cena especificamente, estava claro ali que era um laboratório, se acontecesse, se não acontecesse, se eu desistisse, se não rolasse, se eu fosse embora, se ele fosse embora… Tudo podia acontecer meio que como uma ideia, e por isso o documentário cinematográfico no sentido de que você vai com uma proposição e o que acontecer ali faz parte do problema – e a peça teria integrado isso de algum jeito, porque aquilo estava sendo pensado para ser o seu final, uma espécie de reposicionamento dessas figuras, no qual essa Maria, agora numa posição de não passividade, se sexualizava de maneira ativa, como escolha e não, de novo, nessas posições que são arranjos do estupro e que a gente não cansa de ver.

Quando acontece a saída do cara, e isso não aconteceu de forma tranquila, a gente teve realmente uma briga bastante séria antes de gravar a cena, então tudo que a gente estava pensado para aquele momento que tinha a ver com certos campos de laboratório, mas também de lúdico, mas também de transgressão, ficou muito desestabilizado para todo mundo, e para ele inclusive. Eu tive de rever tudo que estava acontecendo e me dei conta de que havia criado um final para a peça que depositava todas as minhas fichas no outro, de novo. Eu tinha criado um final de trajetória que tornava todo aquele jogo dependente de como é que o outro, nesse caso, ele [Loupan], se posicionaria.

Foi muito forte perceber que, de alguma maneira, ainda havia um jogo de apagamento, fosse o meu feminino ou o da minha mãe, ainda estava subordinado, quase projetando um lugar no qual a gente poderia jogar, sair desse jogo de desequilíbrio de balanças e jogar junto alguma coisa. E obviamente que poderíamos fazer uma análise de tudo via o que foi a nossa idealização em relação a isso, o que foi o susto dele diante de alguma coisa que vinha quebrar a lógica de 20 anos de experiência dele no pornô, mas a análise que me interessou foi a de perceber o quanto eu ainda estava apostando nesse outro, nele, e não percebendo que de fato o que estava se movendo profundamente era o jogo com a minha mãe, era a relação com a minha mãe, o sentido de permanência dela.

Hoje em dia acredito, sem dúvida, que a coisa mais forte e transgressora para mim foi a conversa que eu tive com ela no Carnaval. Contei a ela o que ia acontecer, o que seria a peça, e já muito perto de gravar a cena disse que ela precisava escolher se queria ficar ou não. E ali, quando fizemos aquele pacto juntas, alguma coisa estava se movendo.

Agência Ophelia A dramaturgista e coassistente de direção Lara Duarte tem entre suas criações anteriores a performance ‘Como Medeia Para Minha Mãe’ e a peça “Remedeia”

As pessoas acham forte a cena de sexo, mas talvez eu precisasse de mais tempo para entender o que de fato estava acontecendo ali. O que estava se movendo de verdade era esse sentido da permanência da minha mãe. E que a gente ainda está, inclusive, abaixando a nossa autoridade de querer que ela diga as razões que a gente quer ouvir, que ela diga as minhas razões para estar na peça. As razões para ela estar na peça não são as mesmas que as minhas. Eu estou aqui fazendo pesquisa de teatro, fazendo doutorado, justificando por um monte de coisas, mas ela tem outras razões. Enquanto eu não for capaz de legitimar as razões dela, eu vou continuar sendo essa que invisibiliza. É por isso que eu falo que cada feminino que se projeta ali e que acha ela uma coitada, ou sei lá o quê, também está vendo a sua própria relação com o feminino, assim como eu sigo vendo até hoje porque nada disso para mim é solucionado. Eu estou me batendo ainda com as minhas próprias heranças, com os meus lugares de abnegação ou não. Mas ali estava acontecendo alguma coisa. Ela ali que é o grande movimento, não é a pornografia, mesmo sendo uma experiência diferente.      

Lara
Mas acho que hoje, com a webcam, com os nudes, o WhatsApp, enfim, a pornografia está tão em outro lugar também que no trabalho a gente tem a pornografia e o filme de terror como experimentações de linguagem a partir dessa ideia de uma linguagem pré-expressiva em relação a esse estado fusional com a mãe. E a Janaina fala isso na peça, de como seria uma experimentação com o terror que fosse passível de repetição, em que ela não morresse ou não matasse uma pessoa, e era mais complicado fazer isso no teatro. Então a investigação foi toda na pornografia.

A escolha do vídeo foi muito também de ir compreendendo no dia a dia como seria ter uma cena de sexo, uma penetração, e perder o caráter performativo que era entender o que estava acontecendo ali naquele momento e ter o primeiro instante todas as vezes. Creio que a pornografia estabelece as relações de poder de maneira muito crua e direta, mesmo sendo uma superindústria com várias questões supercomplicadas. Mas, se tem tanto consumidor, se ela existe há tanto tempo, ela nos diz respeito de muitas maneiras. Um dos caras que a gente entrevistou falou que o feminismo inaugurou na pornografia a “pornografia soft”, que é uma coisa para pensarmos também. E o quanto estamos dispostos a olhar para o nosso próprio desejo de submissão, de negação dele ou de afirmação dele. E isso se dá na pornografia, ainda mais a hétero, muito explicitamente. E explicitamente acho que é uma boa palavra. Dona Amália chegou no set de filmagem com um bolo de banana, e isso eu acho maravilhoso.

Maria Eugênia
A parte do casting tem toda uma sensação de que trazer uma cena pornô vai, de alguma maneira, reescrever esse ato, no sentido de que o estupro poderia ser reescrito com um protagonismo seu nessa cena. Por outro lado, me parece que também existe uma tentativa de subverter esses lugares do masculino no controle e o feminino passivo, como se vocês tentassem algum tipo de vingança nas entrevistas. Queria que vocês falassem um pouco.   

Janaina
Eu acho que acaba acontecendo isso porque os caras estão acostumados com um universo que é basicamente masculino, no sentido dos agentes, dos produtores, dos diretores, os técnicos. E aí o cara entra sozinho num estúdio pequeno com nove mulheres atrás das câmeras fazendo o teste… Então, acho que de pronto tem uma intimidação, mas, mesmo assim, a gente vê que é tão forte o lugar deles que um dos entrevistados falou que em uma hora ele faria sexo com todas. Ou seja, ou ele não se sente intimidado ou fala isso pela própria intimidação que sente.  

Lara
E em se tratando de pornografia, que sexo seria feito em uma hora? Essa é uma pergunta legal também para a gente se fazer.

Janaina
Tinha um cuidado grande nas perguntas, um interesse real em saber as respostas deles. Acho que tinha poucos comentários que acabavam entrando em algum lugar de julgamento porque eu também abria para as meninas fazerem perguntas e, às vezes, eu sentia que ia para esse lugar de “mas é isso mesmo”, quase chamando a atenção do cara, mas em geral não foi essa a tentativa, não teve nenhuma vontade de intimidar. A gente basicamente perguntava qual a sua relação e experiência na pornografia, e isso normalmente já fazia o cara falar bastante coisa, se era diferente para a mulher e para o homem no pornô, o que as pessoas buscavam mais na pornografia, o que a sua mãe acha de você ser um ator pornô. E as respostas foram muito surpreendentes porque as mães, de uma forma geral, eram sempre um “tudo bem, minha mãe tem orgulho”, “minha mãe me acha incrível, ela não vê mas está tudo certo”. E a gente sabe que para uma mulher nunca seria. Isso todos colocaram: a diferença do homem que faz pornô e da mulher que faz pornô.

A última pergunta era se ele aceitaria fazer uma cena de sexo comigo e ser dirigido pela minha mãe. Quando aconteceu essa situação da briga na cena da transa especificamente, se eu quisesse ter levado a peça para esse lugar e fazer um superfinal no sentido de “vejam como o machismo é horrível”. Eu tinha todos os elementos ali para isso. Mas não era para isso que estávamos fazendo a peça. É claro que é, mas não adianta colocar o machismo do mundo na conta desse cara. O movimento da peça é outro, mas, claro que tem algo de cobaia, de colocar eles numa situação na qual estão sendo olhados a partir dessa perspectiva. A gente teve muito cuidado na hora de fazer a edição, de não colocar o cara em dado recorte e num lugar muito violento. A gente tomou alguns cuidados para não tornar especificamente esses caras os vilões da história porque não era essa a vontade. E para não transformar a pessoa meio boba, o que também é uma questão delicada. Acho que todo o documental de uma biografia do outro é sempre meio autoritário.

Maria Eugênia
Em relação a eles, você não acha que é uma questão de classe que atravessa? Me parece que é quase como se a subversão desse lugar do feminino só pudesse se dar no momento em que você traz esse componente de classe para o jogo.

Janaina
Um dos caras disse que só tem cinco no Brasil que estão no nível dele, e ele chamou mais quatro para essa entrevista. Então, são caras que têm três mil filmes, que estão num patamar de reconhecimento em relação à pornografia. Eu não sei quais caras eu chamaria. Eles são os caras da pornografia e se a gente acha que eles são ignorantes ou sei lá o quê, não importa porque eles têm cinco milhões de views, ele é o primeiro ator da pornografia no Brasil e no mundo. Então, quem eu vou chamar que não ele? O meu poder de acadêmica, que ganho minha bolsinha, claro que em algum lugar eu tento salvar a minha autoestima, mesmo sendo fodida, e eles tentam salvar a deles por outros lugares. E ele tem poder, ele tem muito mais poder do que eu.

Lara
Havia uma ignorância de mão dupla: por parte de quem estava apresentando o universo da pornografia e por parte da gente ligada ao estudo da linguagem, do teatro. Mas a gente teve um cuidado de não fazer uma emboscada por meio do documentário e lançar as perguntas para confirmar que eles são machistas e que eles não prestam. A tentativa nunca foi essa, mas de conhecer o universo da pornografia, adentrar ele com toda a limitação que a gente tinha, sim, de ter uma linguagem acadêmica, sim, de estar numa pesquisa poética, mas com muita curiosidade pela pornografia.         

Janaina 
Eu escrevi uma carta logo depois da filmagem, ficamos oito horas entrevistando, então cheguei em casa e escrevi. Havia muito mais uma sensação de furar uma bolha e falar: “Meu Deus, isso é um universo que a gente desconhece completamente”. E completamente ao contrário, uma sensação de quebra de preconceitos porque os caras ali eram uma infinidade de questões. Não era assim: “Nossa, estou encontrando os machos que detonam as minas nos filmes”. Era o contrário, eram caras com histórias. A fala de um deles conseguia expressar um superafeto pela mãe, outra fala se revelou preconceituosa, uma terceira demonstrou superdelicadeza com a gente, uma quarta supertimidez. Então a gente teve uma relação de curiosidade. Mas, sim, talvez um lugar de classe se faça notar.

Lara
Mas eles também autorizaram a fala e a imagem deles, então tem uma coisa ali de que cada um é responsável pelo que está dizendo e vamos ver o abismo entre as falas todas.  

Janaina
No teste a gente estava ali realmente numa relação de curiosidade e tentando não criar armadilhas. Não queria ridicularizar. No teste eles mandam e isso é uma questão. Se você é mulher, você mostra o seu corpo. E se é homem tem de mostrar o seu pau, não é nem o corpo. Então a gente teve cuidado para não fazer nada que fosse constrangedor, na nossa ótica. Mas é muito mais forte e mostra mais essa diferença de mundos quando a gente foi, de fato, gravar a cena e eu fui com todo o meu lugar de pesquisadora, laboratório, atriz, artista, lúdica, e ele veio com a referência de quem faz filme pornô há 20 anos. Basicamente a gente não tinha linguagem. E eu querendo saber como é que fazia porque não sou atriz pornô, como começa. Você fala “oi” para a pessoa e o que acontece?

Guto Muniz A performer propõe a desmontagem de ‘Stabat Mater’ e dialoga com o público em ação que fez parte da MITsp em 2020: ela foi a pesquisadora em foco na edição

De qualquer maneira, nosso combinado era não saber, era chegar lá e começar, mas sabendo que pode ser que não aconteça, pode ser que eu desista, que ele broche. Mas o que não estava na conta era a gente não conseguir minimamente começar a falar a mesma língua. E aí sim vem a expectativa porque ele traz o código do pornô segundo o qual quem manda é o cara. Eles dão a letra, eles é que fazem a corte com as ferramentas deles. E eu, de uma maneira ingênua, a estudiosa da classe média que nem frequenta a pornografia e que achou que fosse ter uma experiência como se fosse com um boy esquerdo-macho… E não, o cara é profissional e ele sabe tudo que tem de ser feito. E eu não queria fazer aquele caminho, eu queria inventar uma caminho que não existia. Então não tinha como a gente conversar. Ou eu teria que me render ao pressuposto da pornografia, ao lugar que está reservado às mulheres nesses sets, ou a gente não encontra um novo outro lugar. Portanto, não foi possível encontrar um outro lugar.  Ali sim, para mim, gritou a expectativa, a classe. Não compreendi o lugar dele e não fui capaz. Rejeitei o mundo que ele me trazia, assim como ele rejeitou o mundo que eu trazia para ele.

Isso não entra na peça. Temos mais de oito horas de material com as entrevistas com esses caras, mais todas as conversas com esse ator especificamente, todos os áudios de WhatsApp. É um material incrível. As coisas que ele me disse, muito inteligente, na verdade. Ele falou aquela frase que eu projeto: “Está preparada para ser outra pessoa depois disso?”. Fez várias provocações muito interessantes e acho que foi uma escolha muito certa. Inclusive para quebrar a cara porque estávamos no performativo, na experiência, no risco, naquilo de pode ser que aconteça e pode ser que não aconteça, um mundo que eu desconheço. Então foi só descoberta, e foi muito legal, mesmo com tudo sendo estranho, principalmente no final com a saída dele.        

Abre para a participação do público:

Ramilla Souza – jornalista, fotógrafa, atriz, dramaturgista e coassistente de direção do espetáculo
Queria reiterar um pouco o que vocês disseram e falar a partir de um ponto de vista que eu tive durante o processo, sobre o qual tenho pensado muito. De alguém que chegou quase no comecinho dessa coisa, quando era só uma ideia que partiu do pressuposto dessa mãe apagada e que depois virou um texto de 50 páginas. A gente trabalhou por nove meses nesse primeiro processo que era muito mental, que era muito nós três com um texto que virava outra versão e outra versão e outra versão. Tinha essa mãe e é muito curioso – eu percebo isso hoje, não na época – o fato de que a gente estava escrevendo sobre ou escrevendo para alguém que existia. Alguém que a gente não conhecia e alguém que a gente só sabia quem era por meio da visão da própria filha. Então, eu sinto que o texto tinha um lugar nesse momento e que a peça ganhou outro canto. De fato ela é muito performativa nesse lugar e acho que tanta gente entendeu que tema era esse, sobre o que exatamente estávamos falando.

Quanto à presença da Amália, do ator pornô também, mas sobretudo a presença dela foi uma virada muito intensa na coisa toda. Eu estava escrevendo sobre uma pessoa que não era essa pessoa. Ela nem é essa coitada e nem é essa supermulher que a gente acha que deveriam ser as mulheres. Era outra coisa, era outro tipo de relação com a vida. É você ir para um encontro com um ator pornô, com a sua filha, e levar um bolo. É esse o lugar.

Nos últimos dois meses da peça, ela deu uma virada muito significativa. Eu sinto que as coisas mais significativas nesse momento eram talvez a decapitação, talvez o sexo, e isso eu não vejo como a coisa mais profunda e relevante para quem vai ver a peça. É outra relação que se dá ali, muito mais sutil e menos óbvia. A gente só enxergou de fato esse lugar mais sutil, esse lugar mais profundo e mais complexo com essas presenças, com a presença da dona Amália e com a presença e a ausência desse cara. Se em determinado momento do processo a gente a via numa cadeira, ao fundo, de repente ela estava cantando, porque ela é uma pessoa e essa pessoa se colocou. E a vida se deu e virou outra coisa. A ideia virou a partir dessa pessoa.

Vana Medeiros – dramaturga e diretora de teatro
Eu vi o espetáculo nesta semana, no Teatro de Contêiner. Vou falar um pouco sobre a mãe. Acredito que você [para Janaina] deve receber muitas perguntas porque é um aspecto muito importante na construção do espetáculo. Me chamou muita atenção a frase que você falou agora há pouco [dita por Loupan] e está no espetáculo: “Está preparada para ser outra pessoa depois disso?”. A performance, o ritual que transforma todo mundo que está fazendo ali e que transforma cotidianamente…

Não sei se você faz isso sempre, mas na apresentação a que assisti teve uma hora em que você disse que aquilo já estava perdendo o efeito, quando se referia à cena do tapa, porque pediu para fazer, mas que agora já não estava mais se surpreendendo tanto. Eu assisti ao Conversas com meu pai e acho que ali também tinha uma questão de você olhar de um jeito que isso aqui está resolvendo alguma coisa em mim. E eu não sei se resolvendo é bem a palavra, mas que isso está te reposicionando. E quando você fala da questão da constelação, também acho bem interessante.

Queria saber como foi essa relação da sua pesquisa de performance e como incluir outras pessoas nisso, porque no Conversas com meu pai você não incluía o seu pai, mas neste você inclui a sua mãe. E essa relação da pergunta: “Está preparada para ser outra pessoa depois disso?”. Porque ela também serve bastante para a sua mãe. Você podia contar um pouco mais sobre isso para a gente e como é a relação da sua mãe com a peça hoje?


Janaina
Quando eu escrevi existia essa mãe em cena, que eu nem sabia se seria ela que faria, mas eu sabia que tinha essa mãe. Depois foi ficando tão forte que deveria ser com ela, mas eu tinha muito medo de chamá-la. Protelei isso o máximo que consegui, durante meses. Tanto o cara do pornô quanto a minha mãe: a gente não sabia o que seria. O dela foi mais difícil porque eu demorei muito para realmente conseguir dizer a ela o que ia acontecer e o que seria a peça. Teve o momento em que fiz o primeiro convite, falei para ela que era uma peça de teatro, perguntei se fazia sentido para ela fazer uma peça comigo. E tudo isso foi filmado, porque achei que poderia fazer parte da peça, embora não faça, mas de certa forma está lá.

Agência Ophelia A jornalista Maria Eugênia de Menezes na mediação do Encontro com Espectadores ao lado de Lara e Janaina, na Sala Vermelha do IC, em 1º de dezembro de 2019

Contei toda a saga para ela, desde o Conversas com meu pai, mas eu não conseguia contar sobre a história do sexo, do cara, e como é que isso ia se materializar. E aí teve uma primeira leitura que fizemos com ela em novembro do ano passado [2018], com gente assistindo. Eu dei o texto para ela ler em casa porque não tive coragem de conversar com ela direito, só pedi para ela ler. Depois da leitura ela não falou nada e eu fiquei me perguntando se ela tinha mesmo entendido. Eu não tinha coragem de sentar e conversar de verdade sobre esse assunto. Era muito difícil para mim ter essa conversa com ela. De algum jeito as coisas mudariam e seríamos outras pessoas depois disso. Mas no meio do Carnaval finalmente a gente teve essa conversa. Só chovia e eu fui para a casa dela com a Wilssa Esser [diretora de fotografia], que foi a menina que filmou e que é uma figura muito interessante, muito silenciosa no processo, nunca deu opinião sobre nada, mas com um olhar sempre muito atento, uma presença em que eu senti e encontrei confiança.

Na cena do pornô tinha um monte de gente, mas essa conversa eu tinha muita vergonha de fazer na frente dos outros e, principalmente, delas, que já estavam comigo há muito tempo no processo. Foram quase quatro horas de conversa e é o material mais íntimo e mais profundo de todos, no qual realmente para mim estava tudo ali em questão. O meu olhar sobre ela, que é violento, que é de uma mulher de apagamento, que é de uma mulher de não reconhecimento. E de eu não querer ser essa mulher abnegada, que vive para a família, que abre mão de tudo, de estudar. Essa que vai cuidar de três filhas, de uma marido bêbado, de um pai doente. Tudo que eu neguei e desprezei nesse lugar, estava ali nessa conversa. E, ao mesmo tempo, todos os nossos silêncios, a minha relação com o meu pai, o estupro que tem na peça e sobre o qual a gente só conseguiu falar a respeito disso nesse dia, nesse processo, porque ela puxou o fio dessa conversa.

Então eu perguntei para ela e disse que se ela quisesse sair, desistir, era aquele o momento. Ela virou para mim e disse que entendia as razões por estar fazendo isso e me falou coisas lindas, e lindas do jeito dela.  Ela não vai falar as coisas que eu quero ouvir de uma mulher feminista e empoderada com um certo discurso. Ela fala do jeito dela, como: “Eu quero ajudar no que eu puder”. É desse jeito que ela vai formular, eu estou te ajudando, e não que está redescobrindo a sua feminilidade. Ela vai dizer o que ela puder dizer. Ela vai fazer o que ela puder fazer. E o meu exercício, que não é fácil, talvez seja de reconhecer o valor disso e não o que eu fiz, de desprezar.

É complexo porque tudo isso está em um lugar de apagamento, de uma invisibilidade materna e de um lugar muito violentado, social e culturalmente falando. É muito difícil a gente reconhecer isso como potência. Você realmente sustentar um lar com marido violento, alcoólatra e ser essa figura de sustentação. E, sim, que tem que abnegar de muita coisa porque se não tiver ninguém ali cuidando daquelas crianças, quem vai estar? E nessa conversa, de algum jeito, a gente faz um pacto no sentido de que estamos juntas nisso aqui e estamos cuidando para que cada uma não esteja apenas na ordem do saber. Poder falar desse estupro com a minha mãe em cena, quando ela contou isso a primeira vez no ensaio, o que foi para mim ouvir da boca dela aquilo ali, fazer e repetir… A gente não vai sofrer em cena porque ela está sofrendo, não vai porque a gente adora fazer e receber abraço no final. E ela também adora, e adora dizer que é por mim. 

São 17 mulheres nos bastidores. Elas falam no WhatsApp entre elas. Pois teve um dia que uma delas me disse que já não era mais por mim. A Flávia [Maria Campos, preparadora vocal] fazia aulas de canto com a minha mãe e foi um trabalho de descoberta delas. E uma hora a Flávia me tirou da história porque obviamente que o meu lugar ali agencia uma série de coisas, de funcionamentos que tem a ver com esse lugar de dependência, de estou fazendo por você. Hoje é muito mais fácil chamar a minha mãe para fazer um ensaio do que para ela ficar com os meus filhos. Para ficar com os meus filhos isso move um monte de neurose minha e dela. Eu sou filha dela há 38 anos e sabe o que é uma pessoa não ser capaz de fazer as coisas por prazer, sempre foi pelo outro.

Mas a prática é tão maravilhosa que é a maneira como ela chega nos ensaios, a maneira que ela vai fazer aula de canto, a maneira como ela vai aquecer e passar o texto dela, a maneira como ela simplesmente está ali, sem precisar trazer todos os nossos vícios, os nossos cacoetes. Hoje de manhã eu estava no sítio com ela e perguntei se ela queria vir no Encontro com Espectadores. Disse que não. Ela não tem vontade de estar aqui, mas ela lê as críticas, fica com medo de cada notícia que vai chegar, tem vergonha. Para ela o olhar do outro é muito difícil, mas se relaciona muito bem com a coisa do sexo, diz que não choca, porém o olhar dos outros é mais difícil.

Para ela é muito difícil quando vai alguém da família assistir, porque estar sendo vista ali é problema, e não ela estar ali vivendo aquela cena que tira de letra. Ela tem as imagens dela que quer preservar. Quando ela está falando com as pessoas no final da peça eu tenho que sair de perto porque pode ser que eu tenha vergonha de alguma coisa que ela fale. Pode ser que ela fale alguma coisa que seja péssimo para mim, então eu me afasto e não quero saber. Porque é o jeito dela, é assim que ela vai se relacionar. E se a pessoa quiser filtrar aquilo do jeito que ela quiser, ela vai fazer o que quiser com aquela informação e eu não vou poder controlar. Eu parei de querer controlar os significados dela. Uma amiga psicóloga me disse: “Não dá para você achar que tem controle sobre o que está acontecendo aqui, e o controle sobretudo para ela. Ou você deixa a sua mãe ser adulta e escolher ou então, de novo, você vai fazer o que sempre fez, que é não aceitar a escolha dela. Ou você aceita a escolha dela e deixa ela ser adulta nessa escolha, seja o que for, e aceita os sentidos que ela está projetando aqui, ou você vai ficar num desespero de querer enquadrá-la no seu discurso, no que você espera, no que você diria, no que você faria”. E não é fácil, é um negócio que até hoje eu sofro. 

Lara
Sobre o “Está preparada para ser outra pessoa depois disso?”, acho bacana pensar também em qual patamar disso a gente está falando. Se é a peça, se é a cena de sexo, se é a repetição, se é a pesquisa, se é a relação. E acho que cada um encontra uma resposta depois disso. A Virginia [Woolf] fala muito sobre não fazer do estupro, por exemplo, uma experiência-limite. Que você não precisa plasmar a sua personalidade em antes e depois por conta de um estupro, porque você vai dar um peso para esse trauma quando você pode seguir. Claro que não é seguir e está tudo certo, mas a escolha de transformar uma experiência em antes e depois diz muito também sobre que sujeito você está formando a partir disso. É possível fazer das experiências não necessariamente uma linha do tempo, um antes e um depois, mas lugares  aos quais a gente retorna muitas vezes. Quando a gente começou o processo com a coisa toda da Virgem Maria – eu não tenho nenhuma relação religiosa, meus pais não têm formação cristã –, pensava que essa história de Virgem Maria, no auge dos meus 26 anos, não interessaria e não teria nada a ver comigo. Depois, contudo, quando você vai entendendo que tipo de imaginário é formado na sociedade por conta dessa figura da Virgem Maria, e que não tem nada a ver com a religião, percebe o quanto que a gente plasma a passividade ou o estupro, o trauma, como um antes e depois, e que não necessariamente precisa ser assim.  

Roberto Borenstein – ator
Acho que você falaram muita coisa que eu tinha em mente perguntar, como saber se sua mãe foi convidada para estar aqui. Mas eu queria saber como ela foi como atriz no começo, e ainda mais agora, se a atuação dela após alguns meses de peça vai variando também. Quando assisti, eu perguntei para ela como era fazer a peça e senti um orgulho muito grande dela por fazer parte disso. E um orgulho acho que principalmente de se entregar a um trabalho e confiar em você, pela posição que você conquistou, pela sua trajetória e pela sua história dentro do teatro. Acho que ela se entregou como uma forma de respeito e orgulho da pessoa, da filha que ela tem. 

Ramilla
A gente dizia que dona Amália era a atriz que todo diretor queria ter. Verdade, ela é muito disponível, mas é muito complexo porque de fato ela tem vergonha. Ela teve uma questão com a recepção do público. Quando o público não ria, por exemplo, de maneira que a gente teve de explicar coisas, que não era porque a pessoa da plateia estava com uma cara “x” que não estava gostando, ao contrário, podia estar concentrada. Mas é muito disponível, raramente ela diz não para a gente.

André Cherri Amália Fontes Leite e Lucas Asseituno, este participante como a figura do Príapo Amador

Tem esse lugar que ela não admite exatamente para a gente que está lá atuando e ao mesmo tempo você percebe que ela gosta. É um lugar fluido e ao mesmo tempo é muito legal dirigir porque é um lugar sem cacos, sem vício. Afinal, não é a atriz que está lá, é uma senhora. Teve um momento, quando estávamos já muito perto de estrear, que a Janaina foi para o México e a gente precisava continuar a ensaiar, não podia parar. Então precisavam ensaiar eu, Lara, Lucas, dona Amália e a Flávia, que era a preparadora vocal. E foram ensaios incríveis. A ausência da Janaína fez evoluir a coisa, a gente montou cenas sem ela. Mandávamos vídeos perguntando o que ela achava, mas montamos tudo porque o fato de a filha sair deu uma liberdade para ela. Amália é uma pessoa muito complexa e muito interessante. Não dá para fazer a leitura como sendo essa mãezinha, mas ao mesmo tempo ela é essa pessoa que traz bolo.

Janaina
O que a gente vê dos nossos pais é um recorte. Foi muito doido quando ela começou a se colar com as pessoas do meu meio, os meus parceiros, mas começando a construir uma rede dela, com a autonomia dela. Foi muito importante eu me retirar disso para deixar acontecer sem a minha sombra sobre ela e sem a sombra dela sobre mim. Então foi também esse movimento. E aí oscila porque ela não tem as ferramentas de atriz. A gente sempre retoma coisas com ela, mesmo coisas de memória, repassa o texto com ela, tem alguns cuidados, mas ela está ali como não-atriz. Se ela canta bem ou não, se é boa atriz ou não, ela está ali por uma outra questão. Porque eu acho que ela propõe um vínculo com a plateia, comigo, com o material que não tem a ver com a ordem da atuação. Não tem muitas questões do tipo se ela gagueja no texto dela, por exemplo. Isso é irrelevante perto do que é.  

Lara
Tem uma expressão de um amigo, também de um outro trabalho com familiares, que falava que não eram atores, eram parentes profissionais que estavam em cena. Então, dona Amália está como parente profissional.

Beth Néspoli – Teatrojornal
A Maria Eugênia era muito fascinada pelo espetáculo, estava indo pela segunda vez e eu, pela primeira. Quando saímos da apresentação, disse a ela que me sentia burra, porque de alguma forma eu não tinha o mesmo fascínio pelo espetáculo, talvez tenha alguma questão ali que você, como público, não chegou nela. Por isso a ideia do Encontro com Espectadores é, também, no sentido de que o espetáculo não termina ali e você continua processando, elaborando. Eu queria até aproveitar que o Pedro Vieira e o Emerson Rossini estão aqui porque eu vi o espetáculo muito atravessada pelo De volta a Reims, o trabalho deles a partir do qual a gente também discutiu aqui.

De volta a Reims é baseado no livro de um filósofo francês contemporâneo, o Didier Eribon. Ele é homossexual, saiu da cidadezinha dele, fez toda uma carreira acadêmica e, 35 anos depois, o pai dele morre e mesmo assim ele se recusa a ir lá, só vai depois. Quando retorna a essa cidade do título, ele faz uma análise dele mesmo, da subjetividade de quem partiu para os estudos culturais, faz palestras, de modo que entendeu que saiu do armário da homossexualidade e entrou em um armário de classe, porque veio de uma família de operários. De alguma forma, ele esquece dessa origem e a questão de classe figura como uma coisa sobre a qual ele não pensa mais, porque está em outra chave. E na peça ele faz um questionamento de que, na França, o operariado já foi de esquerda e, de repente, deu uma guinada à direita. Até que ponto a intelectualidade, os acadêmicos também não têm responsabilidade nesse afastamento.

Eu vi a peça deles três vezes porque é realmente complexa e muito interessante, mas estou falando isso porque assisti a Stabat Mater muito atravessada por esse questionamento. Fiquei me perguntando até que ponto a relação de classe foi importante nessa virada quando o cara desistiu.

Falei com a Maria Eugênia no dia seguinte. Acordei pensando na peça e mandei mensagem. A gente começou a discutir e foi justamente o que me pegou forte. A saída desse ator pornô é inesperada e isso é muito importante. Até que ponto essa discussão é uma discussão de classe, sim, porque esse é um apagamento também. E eu não estou querendo cobrar de você uma coisa que você não se propôs a fazer, mas é quase como se você não se desse conta da questão de classe que está ali. E ela não vem à tona, você não a agarra. Quase tudo que está ali você agarra e discute não para dar resposta. Contudo, é como se a questão de classe não aparecesse, nem nele nem na sua mãe. Penso que não apareceria para mim se eu não tivesse visto De volta a Reims recentemente. Quando você falou que cada pessoa vai lá e se coloca no feminino, talvez eu tenha me colocado como classe mesmo, mas eu só falei para deixar mais claro o que aconteceu.

Janaina
Em relação ao embate com a minha mãe, por exemplo, é menos uma questão de “eu saí de um certo lugar”, porque eu acho que a fusão ali é muito mais psíquica, e não é à toa que eu faço o espetáculo depois de ser mãe e casada. A minha classe e o meu doutoramento não me serviram de nada no sentido de não visitar lugares exatamente em que essa mãe me assombrava. Então, eu só precisei fazer essa peça justamente porque a classe e a minha intelectualidade não me tiraram em nada dessa fusão psíquica de me ver repondo esses lugares. Desse feminino abnegado materno em relação ao meu próprio companheiro e em relação aos meus próprios filhos. Para mim, é dessa ordem. Não foi para me separar dela, mas por me ver próxima demais. E de alguma maneira rever um ajuste de contas com isso que me habita.

Agora, a negação disso certamente tem a ver. Se eu estivesse no bairro em que cresci, se tivesse feito o caminho que muitas das minhas amigas fizeram – que é de virarem esposas e mães, e aí você tem um trabalho quase como aquilo que vai te proporcionar um lugar de sobrevivência –, talvez eu estivesse num lugar de cola com essa posição materna muito menos crítica. Sem dúvida, a minha posição crítica em relação a esse feminino materno abnegado tem a ver com os passos que eu dei artisticamente, intelectualmente. E não só de classe, porque nas classes mais baixas tem muitas mulheres fazendo processos de empoderamento, e a gente sabe que é diferente. Então, sim, acho que há alguma coisa na minha rejeição a essa posição que tem a ver com algo que é do lugar intelectual, que é de sair de um certo lugar, de bairro, de vida, de perspectivas, de horizontes. 

Já com o cara eu teria que pensar muito, porque ele é de uma classe melhor do que a minha. Se a gente pensar materialmente, ele tem muito mais dinheiro do que eu, por exemplo. Agora, intelectualmente falando, sim, mas que jogo é esse? É um embate, é quase a colonizadora ao inverso: é eu me achar com mais condições que ele porque eu tenho certas ferramentas intelectuais e isso seria deslegitimar as ferramentas dele. E ali o embate foi muito da ordem do código e do lugar do macho e da fêmea. Não tinha uma conversa de classe rolando ali. Tinha o lugar das posições esperadas no arranjo sexual colocado dentro da indústria pornô. Se eu teria que ser mais generosa, eu me daria um curto-circuito bem grande porque a gente não está falando de uma classe diferente, a gente está falando realmente de histórias diferentes. Mas como você coloca isso na balança? Ele tem muito mais dinheiro do que eu, muito mais trânsito do que eu, muito mais acesso a coisas do que eu. Mas, sim, tenho um percurso intelectual totalmente diferente do dele e eu não sei como colocar isso numa balança. Não sei o que eu teria a dizer sobre isso na peça. Não sei mesmo e eu teria que pensar muito.

André Cherri Cena de ‘Stabat Mater’ captada durante a primeira temporada no CCSP: peça selecionada na Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos

A saída dele foi porque não aceitou o outro jogo que eu propus, diferente dos 20 anos de jogo que ele tinha com o feminino na história. A posição dele é muito autoritária em relação ao feminino. O jogo está dado sobre o que é um homem num set pornô e o que é uma mulher no set pornô. Tinha uma ingenuidade minha em achar que eu tinha poder de transgressão ali. A artista experimental performer que vai causar no pornô. Mas, de alguma forma, eu causei porque foi desestabilizador para ele. É um cara que não tem nenhuma fama de ser violento no sexo. Conversei com várias pessoas que trabalham com ele. Mas foi tão desestabilizador que ele precisou dar a letra e dizer que não dava.

Eu falei para ele: “Assim não vai dar”. Eu estou aqui para não conseguir fazer, e tudo bem. Você chegar lá e não acontecer nada, ser tudo estranho, não tem problema. Porém, não tem como para ele não ser assim porque esses caras foram feitos para acertar. Eles são feitos para entrar no set e garantir a ereção e a ejaculação. É disso que eles vivem, é essa a pressão sobre eles e isso é muito louco. E aí você propõe um outro jogo. Talvez eu tenha apresentado mal as cartas para ele. Mas eu não consigo ver como a questão de classe seria alguma coisa para a gente problematizar para a peça. Realmente, teria que pensar sobre isso, Beth, porque era outro tipo de jogo de força. Acredito que com qualquer cara mais rico, da minha classe, da classe artística, são lugares de arranjo do masculino e do feminino. Às vezes na transa a gente percebe quando a pessoa está te colocando num certo lugar. E ele visitou um lugar ali que não tinha jogo, não tinha negociação nesse lugar. É daí que vem a treta.                       

Lara
Eu acho que pode ser bacana a gente pensar o tanto que diversas classes sociais consomem pornografia, e talvez no mesmo site. Se você adentrar o mundo do que é consumido na pornografia, como que se dá essa divisão? Ela é plasmada em quais opressões? Tem uma figurinha que está rodando no WhatsApp que diz: “É possível unir luta de classes e tesão?”. E fica a pergunta um pouco para mim, no sentido de assumir uma responsabilidade por estar pensando conceitualmente a peça numa certa medida. Por estar partindo de textos teóricos ou por Janaina estar no doutorado e isso ser uma chave de poder. Mas sabemos o quanto as opressões são muito complexas e enraizadas. O pensamento conservador é um só.

Quando a gente começa, em alguma medida, a separar as opressões para discutir didaticamente e pensar em medidas afirmativas, leis ou grupos de afirmação política, etc. e tal, esse é um movimento necessário, bacana e militante.

Talvez na peça a gente se proponha a olhar para todas essas opressões em si. E para que tipo de comportamento ainda é reproduzido através do filtro da pornografia, da maternidade, da linguagem do filme de terror. Como também a peça não passa exatamente por uma discussão de raça. A gente não se propõe a adentrar esses espaços de discussão, a enxergar o conceito da peça por essa chave. De qualquer maneira as opressões de classe estão ali. Só que a gente está escolhendo uma outra linguagem, um outro aprofundamento. O que não significa necessariamente negar tais opressões. Apenas não é a forma que o conteúdo se apresentou para a gente.        

Emerson Rossini – ator e diretor de teatro
A minha questão é um pouco mais prática, Janaina. Nesse espetáculo você assina a direção e tem duas assistentes. Foi sua primeira direção? Eu queria entender mais como você pensou a direção. Porque você fala da abjeção como um lugar difuso e eu penso a direção como esse lugar de achar contornos, escolhas para se colocar coisas em cena ou não. Como que funciona isso na sua cabeça? Quando você vai escolher algo para colocar em cena, você pensa no todo ou no que você quer dizer e depois vai ajustando ou não? Ou se tem muito a mão das assistentes? Por exemplo, quando você está numa cena ao fundo e tem uma luz de contra, quem fala “vem mais para cá”? Essas escolhas estéticas de cena.

Janaina
Eu assino conjuntamente outras direções, mas sozinha é essa peça e os Femininos abjetos 1 e 2 que são laboratórios e começam como exercícios. Acho que tem etapas. Nessa primeira etapa do texto, a versão 1 já vem com muita descrição de rubrica: já vem com essa mesa de palestra, com pole dance, já tem a figura de máscara, já tem a mãe apagadinha num canto. Já tem essa figura que vem se arrastando no chão, meio O chamado [filme de suspense de 2002 dirigido pelo estadunidense Gore Verbinski]: eu pegava um brinco no chão e furava o peito. Já tinha também essa história da cena de sexo. Então, já tinham vários apontamentos desde a origem, derivados de minha cabeça, sem ensaiar. Não foi um texto que nasceu da sala de ensaio ou de workshop, como é o caso dos Femininos abjetos, que nascem totalmente da sala de ensaio.

Depois é um grande jogo de costura, de brincar a partir do material que surge. Eu nunca tinha escrito um material assim: escrever um texto inteiro já projetando uma certa curva cênica e depois ver como isso se daria na prática. A gente fez uma primeira leitura desse material e começou durante muito tempo a mexer na dramaturgia ainda sem fazer cena. Porque tinha muito esse caráter de palestra-performance. Isso era muito importante, pensar como é que a gente trazia esse raciocínio.

A gente conta que no Conversas com meu pai teve esse apagamento e depois, quando eu viro mãe, a gente percebe esse ato falho e depois chega ao Stabat Mater. É uma peça assim meio de tese, de construção de raciocínio. A gente via que esse raciocínio ainda era truncado, tinha um monte de citação dentro, era muito digressivo. Passamos muito tempo quebrando a cabeça com essa lógica porque a gente entendia que era uma peça em espiral e gastamos muito tempo com isso. Um belo dia fiz um workshop em casa e já tinha a peruca, a máscara, essa figura de chapéu que era lá do Conversas com meu pai, tinha ainda o pole dance, a palestrante grávida. Colocamos as imagens na roda. Mostrei as que já existiam e chegaram outras imagens propostas por elas.

Essa é uma fase na qual a gente começa a “workshopar” mais o próprio texto, transformando-o em cena. Num outro momento, vem um ajuste mais fino e começam a chegar as demais figuras, o trabalho com o vídeo, com a iluminadora. E aí começa um diálogo muito forte com a equipe. Se vamos projetar em duas telas, se seria câmera ao vivo. E durante muito tempo foi câmera ao vivo. A gente ficou um tempão experimentando na sala de casa. Tinham closes, aquela cena ginecológica, tudo aquilo era na câmera. Tinha experiências de cena que a gente ia fazendo junto. Muitas vezes eu pedia para elas fazerem a peça também. Elas faziam a peça inteira dentro e eu olhava de fora para conseguir entender o que estava acontecendo. E até hoje, se a gente vai ajustar a luz, eu peço para elas entrarem em cena, superconfio no olhar delas. Em cada apresentação tem uma delas vendo de fora porque existe uma hora em que eu não sei nem isso, se a luz está certa, se o vídeo está entrando no fade certo, enfim, coisas que são da ordem da chatice.

Mas tudo foi muito orgânico, não é da ordem da montagem. A gente foi encontrando a partir do texto. Porque ele é muito verborrágico, tem uma dependência do contato com a plateia, o ato de conversar, de falar, de expor. E essas soluções de cena implicam encontrar plasticidade, um cenário que tivesse alguma coisa que apontasse para essa formalidade da palestra, mas que também criasse esse ambiente com as flores, uma toalha de mesa meio cafona. Ao mesmo tempo traz esse lugar meio puteirinho, com esse tom vermelho, esse pole dance. Então, a gente foi misturando conceitos que eu já tinha e depois foram totalmente materializados pela Melina Schleder, nossa parceira de direção de arte [também assina cenário e figurino]. Ao mesmo tempo que ele é muito autoral, é um espetáculo muito conversado. Todos esses ajustes finos, desde uma edição final de vídeo até o desenho de luz, passando pela minha mãe na cena, teve muito a ver com essa rede de conversas e de criação. 

Maria Eugênia
Infelizmente o nosso tempo acabou. Eu queria agradecer muito a presença de vocês neste que é nosso último Encontro com Espectadores do ano. Espero que a gente retome nossas conversas aqui no ano que vem. Agradeço ainda ao Itaú Cultural por nos receber e aos intérpretes de Libras.

Agência Ophelia Pessoas que assistiram ao espetáculo, ou não, bem como integrantes da equipe de criação estiverem presentes na conversa

Equipe de criação:

Stabat Mater

Concepção, direção e dramaturgia: Janaina Leite

Performance: Janaina Leite, Amalia Fontes Leite e Príapo

Participações especiais: Príapo amador (Lucas Asseituno) e Príapo profissional (Loupan)

Dramaturgismo e assistência de direção: Lara Duarte e Ramilla Souza

Colaboração dramatúrgica: Lillah Hallah

Direção de arte, cenário e figurino: Melina Schleder

Iluminação: Paula Hemsi (ultraVioleta_s)

Videoinstalação e edição: Laíza Dantas (ultraVioleta_s)

Assistência geral: Luiza Moreira Salles

Sonoplastia e operação de som e vídeo: Lana Scott

Operação de luz: Jhenifer Santine

Preparação vocal: Flavia Maria Campos

Provocação cênica: Kenia Dias e Maria Amélia Farah

Concepção audiovisual e roteiro: Janaina Leite e Lillah Hallah

Direção de fotografia: Wilssa Esser

Participação em vídeo: Alex Ferraz, Hisak, Jota, Kaka Boy, Mike e Samuray Farias

Identidade visual, projeções e mídias sociais: Juliana Piesco

Fotos: André Cherri

Assessoria de imprensa: Frederico Paula/Nossa Senhora da Pauta

Direção de produção e circulação: Carla Estefan/Metropolitana Gestão Cultural

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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