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Crítica

Zona de indeterminação

23.7.2018  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Letícia Godoy

A Cia. Mungunzá de Teatro parece dar ouvidos ao educador Paulo Freire: “Eu não posso denunciar a estrutura desumanizada se não a penetro para conhecê-la”. A experiência imersiva na região da chamada Cracolândia, no centro de São Paulo, incide radicalmente sobre Epidemia prata, seu trabalho mais recente, sob direção de Georgette Fadel.

Os criadores processam artisticamente as severas contingências daquela geografia humana. A condição precária do sujeito na sociedade – ou seria a estrutura precária da sociedade a condicionar o sujeito? – acaba refletida no esmaecimento da narrativa e da materialidade da cena.

A companhia carrega essa urgência como se condenada ao objeto que a inquire a todo instante, estancando seu potencial para ir além do que constata. Um paradoxo incontornável.

No seu quinto espetáculo em dez anos, ‘Epidemia prata’, a Cia. Mungunzá transmite um grau de vulnerabilidade em cena que, a rigor, não é diferente do encarado por boa parte dos cidadãos que vive na região, pelos motivos que se conhece

Sabe-se que o que vai pelas artérias de alguns quarteirões em bairros como Santa Ifigênia e Luz é a somatização de uma cidade doente. O texto elaborado em equipe e a encenação cavam alguma suspensão ficcional e abrem janelas ao perspectivismo comunitário – o entorno do Teatro de Contêiner grita em cena com a aspereza do asfalto e o desespero da realidade sensível.

O resultado são fragmentos do vivido pelos artistas e do que eles entenderam do que viram, ouviram e sentiram no território. O enfrentamento metamaterial é o nervo exposto das sequelas sociais, econômicas e políticas demarcadas. Nesse aspecto, sente-se falta de mais autonomia na abordagem dos estados perturbadores do ser e do sistema. A margem de invenção poética esbarra na camada endurecida.

Letícia Godoy

Elza é a personagem atuada por Verônica Gentilin na obra da Cia. Mungunzá

“Enquanto eu continuar morrendo na sua calçada, não vai ter poesia”, diz Elza, a usuária que pontua parte dos quadros. Essa frase traduz o impasse. Atuada por Verônica Gentilin, ela é a pedra no meio do caminho da Mungunzá, que nunca se esquecerá da noite de outubro de 2017 na qual essa mulher, nome fictício, roubou a cena durante um fórum internacional que acontecia no Contêiner.

O público que acompanhava a mesa, os conferencistas escalados para discutir temas relativos às drogas, saúde pública e urbanismo, nos contextos de Bogotá e de São Paulo, além dos artistas-anfitriões, todos tinham diante de si a representação viva dos seres socialmente vulneráveis que investigavam. E a presença que pode causar repulsa: Elza incomodou e foi expulsa do local após ter os pedidos de comer e de fumar atendidos e, mesmo assim, desconcertar o referido diálogo.

Esse acontecimento é corajosamente reproduzido, de modo que a própria companhia expõe suas retinas fatigadas, como no poema drummondiano, indício do quão a travessia não foi nada pacífica. São tempos de guerra, se consideradas as estatísticas de violência e as operações militares que por lá vicejam.

Pensando nas práticas dos chamados teatros do real, o que se verifica na montagem é uma leitura crítica expandida em bases sensoriais. A pele, órgão mais extenso do organismo humano, é alegorizada como a epiderme do redemoinho urbano, o coração da cidade varrido por diferentes mecanismos.

A teatralidade insinua-se nessa zona de indeterminações que, em contraste, se dá numa cenografia que mimetiza, realisticamente, a arquitetura do próprio teatro multiuso onde a obra foi concebida e ensaiada. Quem assistiu à temporada de estreia, no Sesc 24 de Maio, no palco frontal da sala de concreto aparente, e reviu o trabalho agora em cartaz no Contêiner, seu berço, nota como a transposição espacial se mostrou fiel.

O ponto de partida do projeto foi o estudo acerca das pessoas, geralmente adolescentes, que se pintam de prata como estratégia para jogar malabares diante de carros no farol vermelho e obter alguns trocados. Ou, numa ação mais direta, pedir esmolas em vagões de metrô ou trem, como o garoto negro que testemunhamos na véspera de concluir a crítica, rosto caracterizado, lábios avermelhados e pés descalços, distribuindo seu apelo em papeizinhos.

Prata é a cor dominante nos pés, braços, mãos, tronco e rosto dos atuantes. Bem como nas duas variantes sustentadoras do roteiro: a visão pessoal de cada um sobre esses personagens reais e a leitura do mito grego de Medusa, capaz de transformar em estátua os seres vivos com os quais cruza o olhar – esta via fabular fica implícita.

Letícia Godoy

As pessoas que se pintam de prata e o mito de Medusa são vertentes do roteiro

Há um instante em Epidemia prata, já na segunda metade, em que o ator Marcos Felipe atravessa a cena lentamente. Ele surge em pé numa plataforma sobre rodas empurrada pelas mãos de outros colegas. Retarda o ritmo do gesto e da fala enquanto ecoa: “Sem porto para atracar! Somente o mar! Somente o mar!”.

A imagem volta à memória feito uma rede de arrasto que pesca os atores, as atrizes e a diretora convidada às voltas com essa parceria inédita. As afinidades estilísticas e ideológicas entre a companhia que completa dez anos e a cofundadora da Cia. São Jorge de Variedades, há 20 anos, revelam também seus limites.

Em Mistérios gozosos (1994), Zé Celso e Oficina intercalavam os quadros da peça cantando o verso “Há um grande cansaço de explicar o mar”, extraído de um trecho do poema dramático O santuário do Mangue, de Oswald de Andrade: “O mar parece um caramujo cor de chumbo/ Plúmbeo/ Há um grande cansaço de explicar o mar”. Foi escrito em 1950 e publicado postumamente, censurado por denunciar instituições burguesas e a igreja pela exploração das relações humanas na zona de prostituição do antigo bairro carioca do título, localizado em área pantanosa.

Dos versos épicos emanava um “movimento de vertiginosa transfiguração do real”, como anotou o poeta e diplomata Francisco Alvim em análise acerca do texto de Oswald, de quem Zé Celso irmana-se antropofagicamente. O fato é que o trabalho da Mungunzá e de Georgette não descola da opacidade da paisagem em que está inserido.

Letícia Godoy

Lucas Beda, Marcos Felipe, Verônica Gentilin e, ao fundo, Virginia Iglesias e Leonardo Akio na obra dirigida por Georgette Fadel

Os sofrimentos são latentes no estado performativo inspirados na confusão ordinária dos encontros e sumiços frequentes naquela área expositiva do caos, designada “fluxo” (a concentração de fornecedores e viciados em crack). A proximidade do mundo dos usuários é replicada no modo de vestir, falar e gesticular. O ciclo vicioso – tráfico, dependência química, ação de segurança, violência policial, assistência humanitária, tratamento médico e vizinhança acuada – constituí algumas das tensões visíveis, por vezes explosivas, com as quais os criadores lidam no cotidiano.

Recapitulando, o porto ausente naquele verso falado/esgarçado é uma referência à situação das pessoas que vagam pela Cracolândia, onde a companhia assentou um cais para a comunidade e para si (ainda que autodeclarado provisório), por meio do Teatro de Contêiner. O espaço aberto no início de 2017 não demorou a ser convertido em atracadouro da arte, da cultura e da sociabilidade.

Há poucos passos dali funcionam um Centro Temporário de Acolhimento e o Comando Geral da Guarda Civil Metropolitana. Na sala de arquitetura cênica inusual, as paredes laterais de vidro permitem ver e ser visto sob a perspectiva da rua, ao sabor dos ensaios, apresentações ou outras atividades que ali aportam.

No seu quinto espetáculo em dez anos, a Cia. Mungunzá transmite um grau de vulnerabilidade em cena que, a rigor, não é diferente do encarado por boa parte dos cidadãos que vive na região, pelos motivos que se conhece. Uma percepção diversa no arco da relevante trajetória que vem transformando processos de arte em sensações de vida.

.:. Visite o site da Cia. Mungunzá de Teatro.

Serviço:

Onde: Teatro de Contêiner Mungunzá (Rua dos Gusmões, 43, Luz (próximo à estação do metrô).

Quando: Sábado a segunda, às 20h. Até 30/7.

Quanto: Grátis, bilheteria abre uma hora antes do início da sessão

Duração: 70 minutos

Classificação indicativa: 14 anos

Equipe de criação:

Argumento e texto: Cia. Mungunzá de Teatro

Supervisão dramatúrgica: Verônica Gentilin

Direção: Georgette Fadel

Com: Gustavo Sarzi, Leonardo Akio, Lucas Beda, Marcos Felipe, Pedro Augusto, Verônica Gentilin e Virginia Iglesias

Codireção: Cris Rocha

Assistente de direção: Victor Djalma Amaral

Preparação corporal: Juliana Moraes

Direção musical: Bruno Menegatti

Vídeos: Flavio Barollo

Arquitetura cênica: Leonardo Akio e Lucas Beda

Figurino: Sandra Modesto

Desenho de luz: Pedro Augusto

Materiais gráficos: Leonardo Akio

Fotos de divulgação: Letícia Godoy e Mariana Beda

Produção executiva: Lucas Beda, Marcos Felipe, Sandra Modesto e Virginia Iglesias

Produção geral: Cia. Mungunzá de Teatro

Coprodução: Cooperativa Paulista de Teatro

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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