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Artigo

Medeia está viva. Por que a Terra chora?

20.5.2021  |  por Bim de Verdier

Foto de capa: João Caldas Fº

A escolha do espetáculo a ser encenado se faz em diálogo com o mundo em volta. O teatro funciona como um termômetro no sovaco do tempo. A tragédia Medeia, escrita pelo dramaturgo Eurípedes há quase 2.500 anos, fala de uma mulher apaixonada, que deixou seu país seguindo seu coração, e depois assassinou os próprios filhos para se vingar do marido que a abandonou por outra. O mito é certamente mais antigo ainda e durante séculos foi reescrito e recontado em inúmeras versões como espetáculo teatral, ópera, balé, filme e romance.

É possível lembrar das óperas de Giovanni Pacini (1843), do balé de Samuel Barber (1946), dos filmes de Pier Paolo Pasolini (1969) e Lars von Trier (1988) e da narrativa de Christa Wolf (1996). Na Suécia, Willy Kyrklund compôs em Medeia de Mbongo (1967) uma crítica ao colonialismo. Suzanne Osten e Pär Lysander criaram Os filhos de Medeia (1975), onde a separação dos pais é contada a partir da perspectiva filial. No Brasil, a linha de tempo passa por Agostinho Olavo na peça Além do rio (1957), junto ao Teatro Experimental do Negro (TEN); Chico Buarque e Paulo Pontes em Gota d’água (1975), inspirada na adaptação de Oduvaldo Vianna Filho para a televisão (1972); Denise Stoklos no solo Des-Medeia (1994); Consuelo de Castro em Memórias do mar aberto (1997), recentemente apresentada com Bete Coelho como personagem principal; Antunes Filho em duas montagens seguidas (2001 e 2002); Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz no acolhimento da obra de Wolf em Medeia vozes (2013); e Jé Oliveira na enegrecida Gota D’Água {PRETA} (2019).

A sueca Sara Stridsberg e outras autoras das novas encenações de Medeia tentam desmascarar as estruturas e processos que a levam a seguir o destino que lhe é imposto, sem de forma alguma defender suas ações. Elas contam sobre uma mulher que representa o pesadelo da sociedade patriarcal onde está inserida, uma mulher que se revolta, que não aceita sua situação, que questiona as leis e exige liberdade e amor. Medeia não é agradável e doce, simplesmente. Ela provoca e desafia o valor mais elevado do que seria a feminilidade, a maternidade

O que faz com que a história de Medeia continue viva? É um mito rico, de vários tópicos entrelaçados, formando a tecelagem de símbolos que compõem um espetáculo teatral. Estão presentes temas como amor, abandono, exílio, gênero, poder, opressão, culpa e maternidade. Sempre as crianças são vítimas dos conflitos dos adultos. Notável é a recorrência de montagens a partir do mito de Medeia em tempos pandêmicos. Pode parecer paradoxal. Nos tempos difíceis, deveríamos procurar comédias, peças para rir e se divertir, como fazem as personagens de Giovanni Boccaccio no Decamerão (1353). No entanto, em tempos extremos precisamos também de textos extremos. Sara Stridsberg, a autora da releitura contemporânea Terra Medeia (2009), diz que não escreve sobre pessoas extremas, mas sobre pessoas sensíveis em situações extremas.

A Medeia de Eurípedes foi escrita por um homem para ser encenada por homens, diante de um público de homens não escravizados. Um drama a ser apresentado ao ar livre, em um espaço teatral construído com pedras gigantescas, inserido na natureza. A Grécia de então era uma sociedade que buscava estabelecer um novo tipo de regime, chamado democracia. Para a construção dessa nova ordem, eram necessários lugares de encontro, lugares onde, juntos, fosse possível investigar questões importantes da vida humana, como liberdade, gênero, poder, crime e castigo. Para mudar o mundo, é necessário mudar o pensamento, como refletimos e compreendemos a nossa vida na Terra. Essa força do pensamento manifestou-se na Grécia Antiga em mudanças na cultura, na ciência, nas artes e no teatro.

Quem está contando o quê para quem? Nas encenações contemporâneas de Medeia, muitas vezes mulheres atuam como dramaturgas, diretoras e produtoras. Já faz muito tempo que o papel de Medeia é visto como um dos grandes desafios da história do teatro para uma atriz. Estamos longe dos tempos em que só homens podiam pisar no palco, ainda que o domínio de personagens principais masculinas ao longo da história de teatro seja marcante. A escolha de encenar Medeia, reapropriar-se dessa personagem sob a perspectiva feminina, decorre, por vezes, do desejo de expressar que ela não é somente uma louca, que comete crimes impossíveis de perdoar e compreender. O desejo de contar como uma refugiada, abandonada e desesperada, vivendo em uma sociedade patriarcal, pode chegar a agir dessa forma extrema e inaceitável. Com certeza, em toda a dramaturgia mundial, mulheres loucas, prostitutas e vítimas foram sempre muito representadas. Esse fato foi apontado, por exemplo, por Hélène Cixous no seu texto clássico Aller à la mer (1977). O título é um trocadilho a ser interpretado tanto como “ir para o mar” como “ir para a mãe”, isto é, voltar às origens. Aller à la mer é: um manifesto e um desafio de construir linguagens, histórias e interpretações mais fidedignas daquilo que significa viver como mulher.

Andréia Machado Nicole Cordery e André Guerreiro Lopes são Medeia e Jasão na montagem virtual da peça da sueca Sara Stridsberg, ‘Terra Medeia’, pela também atriz Bim de Verdier, autora deste artigo

Sara Stridsberg e outras autoras das novas encenações de Medeia tentam desmascarar as estruturas e processos que a levam a seguir o destino que lhe é imposto, sem de forma alguma defender suas ações. Elas contam sobre uma mulher que representa o pesadelo da sociedade patriarcal onde está inserida, uma mulher que se revolta, que não aceita sua situação, que questiona as leis e exige liberdade e amor. Medeia não é agradável e doce, simplesmente. Ela provoca e desafia o valor mais elevado do que seria a feminilidade, a maternidade.

Aristóteles verbalizou, na sua Poética, escrita por volta de 335 a.C., cerca de 100 anos depois que Medeia de Eurípedes foi representada pela primeira vez, sua visão sobre a tragédia e a catarse que ela produz no público. Ele explica como construir uma dramaturgia em etapas em que, depois de um crescendo de tensão e de emoções fortes, pode acontecer a purificação, isto é, o alivio das tensões, a catarse. A personagem principal, de status elevado, é expulsa da comunidade e a ordem social é restabelecida. O público suspira aliviado e a história segue para seu triste desfecho.

Talvez não seja mais a catarse que se quer, mas a tensão, as perguntas. Talvez se queira a investigação de até onde é possível acompanhar Medeia. Seria possível o convívio do imperdoável e do perdão?  Podemos enxergar o que move Medeia e podemos impedi-la? Se a compreendermos simbolicamente, como uma condição, não só como uma pessoa, quem é ela? Quem é capaz de sacrificar seus próprios filhos, seu futuro? Em que situação alguém seria capaz disso? São tópicos candentes nos tempos de hoje.

Anteriormente, eu trabalhava com o mito de Ifigênia. Eu me questionava por que as gerações mais velhas e os poderosos não tomam responsabilidade pelo mundo que deixam para as futuras gerações. Como nós, os seres humanos, somos capazes de devastar as riquezas naturais, de explorar os menos privilegiados e não cuidar dos vulneráveis? Na peça Ifigênia em Áulis, também de Eurípedes (408 a.C.), o rei Agamenon sacrifica sua filha Ifigênia para ter sucesso na guerra contra Tróia. Pensei que o mito me falava sobre essa questão de uma forma simbólica. Dava para entender que, na guerra, faz-se de tudo para vencer. Mas os tempos que vivemos são mais complexos e precisamos de textos dramáticos que espelhem a nossa dor, frente às catástrofes que não conseguimos evitar. Encenando Medeia, foi preciso pesquisar o que não sei, onde minhas hipóteses não bastam. Questionar, sem ter uma visão de onde se quer chegar, é algo que abre novos caminhos.

O filósofo francês Michel Serres explica que ser aberto é condição necessária para a existência de qualquer sistema. Em toda comunicação há ruídos. Tentar fazer uma comunicação sem ruídos é fechar o sistema e cair no domínio da escravidão da razão. A fronteira, chamada por ele de “zona de mestiçagem”, é onde o desenvolvimento acontece. É lá que pensamentos não dicotômicos são possíveis. “A Terra, na verdade, nos fala em termos de forças, de ligações e de interações, o que basta para fazer um contrato. Cada um dos parceiros em simbiose deve, de direito, a vida ao outro, sob pena de morte” (Serres, 1991).  Medeia, que não pertence nem à Cólquida nem a Corinto, que carrega as contradições do mundo dentro de si, sabe e sente à flor da pele o que isso significa.

Na sua essência, a tragédia contém uma luz que é sua própria contradição. O amor, que é ausente; a união, que falha; e a empatia de outros personagens ou do próprio espectador são contrapontos no destino cruel do protagonista. Sara Stridsberg quer que sua peça Terra Medeia funcione como uma provocação. “Que alguém deveria dizer: Você não está amaldiçoada, existe uma responsabilidade no seu entorno quando você não consegue se proteger… Pode ser uma comunidade, uma rede de proteção social, pessoas ao seu redor, uma família que ampara quem está caindo.” As personagens de Terra Medeia são complexas, são como nós, contraditórias e incoerentes. Ensinam a necessidade de tentar compreender quando não se compreende, de aceitar que a própria vida é uma abordagem inacabada. Demostram que os paradoxos podem coexistir.

João Caldas Fº Cordery repete parceria com Verdier em ‘Dissecar uma nevasca’ (2015), também de Stridsberg; o texto da vez foi escrito a partir do mito grego para o Teatro Nacional da Suécia, onde estreou em 2009, e ilustra como alguém rejeitado no amor e na sociedade pode perder o chão e se tornar perigoso

Na peça Jogo de sonhos, de August Strindberg (1902), há um homem velho e cego que, à beira do mar, ouve os sons de um navio que leva embora seu único filho. O velho conta essa história: “Perguntei certa vez a uma criança por que o mar é salgado e a criança, cujo pai estava em viagem, respondeu logo: o mar é salgado porque os marinheiros choram muito. Por que choram tanto os marinheiros?… É, ele respondeu, é porque eles estão sempre partindo… E é por isso que eles costumam secar os lenços no alto dos mastros!… Por que choram os homens quando estão tristes? Eu perguntei… Às vezes, ele respondeu, precisa limpar o vidro dos olhos para se ver mais claro.” Diante de questões candentes, em um mundo onde há razões em demasia para ficar triste, a tragédia oferece também uma possibilidade de chorar e talvez, assim, de enxergar com mais clareza.

O teatro tem o papel de fornecer espaços para encontros, físicos se possível, virtuais se necessário. Não temos, agora, acesso aos teatros de mármore, pedra e tablados. Mas os tempos de hoje oferecem novas possibilidades e o teatro sempre foi mestre em ultrapassar obstáculos com criatividade e teimosia. Melhor chorar juntos do que cada um isolado em sua casa. Quando não é possível estar juntos fisicamente, a mera consciência de que estamos juntos na emoção, de que dividimos a mesma tristeza, o mesmo medo, a mesma inconformidade, pode ser consoladora.

Meditando sobre o título deste texto, fiquei em dúvida: será que escolho: “Medeia está viva. Por que a Terra chora?”; ou seria melhor: “A Terra está viva. Por que Medeia chora?”.

.:. Bim de Verdier é atriz e diretora teatral atuando na Suécia e no Brasil. Assina e está no elenco de Terra Medeia, que estreia sábado (22) pela Plataforma Teatro. É mestre pela Universidade de Estocolmo com estudos teatrais também no Instituto Dramático da Suécia e na Universidade de Brasília. Trabalhou em várias universidades nos dois países, criou o projeto Interculturalidade e Teatro Popular na Universidade Estadual de Santa Cruz (BA) e o curso de Teatro na Universidade Popular de Wik, Uppsala. Desenvolveu vários intercâmbios internacionais entre Suécia e outros países europeus, África do Sul e Brasil. Dentre os trabalhos como atriz, destacam-se Senhorita Julia e Pranto de Maria Parda. Dirigiu obras de Shakespeare, Strindberg, Fo, Brecht e Stridsberg, dentre outras.

Serviço:

Terra Medeia

Estreia sábado (22), às 17h. Sábado e domingo, às 17h. Até 13 de junho

Retirada de ingresso gratuito e transmissão pelo site Plataforma Teatro

80 minutos

14 anos

Sinopse:

Em Terra Medeia, a autora Sara Stridsberg acompanha de perto a tragédia clássica escrita por Eurípedes há quase 2.500 anos. No entanto, o mito antigo é situado no mundo contemporâneo e, ainda assim, fora de tempo e espaço. Nesse enredo, onde a realidade se mistura com o sonho, Medeia é uma imigrante que, abandonada por seu marido, também perde o direito de viver no país dele.

Andréia Machado A diretora Bim de Verdier em cena: “Medeia faz de tudo para encontrar alguma solução. Ela se revolta, quer justiça, chora e esperneia, exige sua vida de volta. Ela quer fugir do destino, mas alguém tem que ser Medeia. Medeia é sempre Medeia”, afirma

Ficha técnica:

Texto: Sara Stridsberg

Tradução: Bim de Verdier e Nestor Correia

Direção: Bim de Verdier

Com:

André Guerreiro Lopes…………….Jasão

Bim de Verdier………………………..Mãe e Deusa

Daniel Ortega………………………….Médico

Nicole Cordery………………………..Medeia

Renato Caldas………………………….Creonte

Rita Grillo……………………………….Babá

Direção de arte, fotografias e filmagens: João Caldas

Equipe de captação de imagens, edições e transmissão: Marcela Horta, João Caldas e Andréia Machado

Operação de vídeos ao vivo: Marcela Horta

Contrarregra: Madu Arakaki

Composição original de trilha sonora: Leo Correia de Verdier

Direção de produção: Selene Marinho

Produção executiva: Marcela Horta

Designer gráfico: Leonardo Miranda

Assessoria de imprensa: Pombo Correio

Produção: SM Arte Cultura / Cordery e Viana Produções Artísticas

Consultoria de figurino: Julia Correia de Verdier

Execução vestidos Medeia: Flávio Mothé

Participação especial (Voz da Princesa): Anna Zepa

Consultoria em áudio: Alexandre Martins

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