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Reportagem

‘Saint Omer’, a vida das quimeras

16.1.2023  |  por Neomisia Silvestre

Foto de capa: Srab Films

“É a história, senhoras e senhores jurados, de uma mulher fantasma. Uma mulher que ninguém vê, que ninguém conhece. É a história de um lento desaparecimento. Uma trágica descida ao inferno, no qual a mãe leva a filha. Esta mulher cometeu o pior: um infanticídio. Ela matou a filha, e reconhece. É insuportável para nós e ultrapassa o entendimento. Uma mãe que se autoriza a matar a própria cria, só podemos vê-la como sendo um monstro. E um monstro deve ser morto. Então, abram um código penal e a condenem. Mas, se o fizerem, senhoras e senhores, vocês terão feito um julgamento sem justiça. Vocês terão respondido apenas à questão mais fácil, e não a que sua responsabilidade de jurado o obriga a fazer. Se você não conseguir se fazer essa pergunta, ficará na praia atordoado com o horror do crime”.

Ocupamos um dos assentos do Tribunal de Justiça da comuna provinciana Saint-Omer, ao norte da França. O trecho acima é da advogada de defesa da senegalesa Fabienne Kabou, de 36 anos, acusada de ter abandonado a filha de 15 meses na maré alta da praia de Berck-sur-Mer, a 71 quilômetros dali, em novembro de 2013.

Afogada e sem indícios de violência, a criança foi encontrada no dia seguinte por dois pescadores, que pensaram se tratar de um bebê a bordo de uma embarcação de refugiados, já que a região pertence ao departamento de Pas-de-Calais, rota migratória.

Interessada pela abrangência do tema parental e não pela abordagem do infanticídio em si, caso real motor de seu primeiro longa-metragem de ficção que evoca mitologias gregas da Quimera e de Medeia, a cineasta francesa Alice Diop tece uma obra não distante de seu modo de fazer documental. Em simbiose e diálogo com o teatro e a pintura, ela conduz a seletividade de foco do espectador para propor direcionamentos e enquadramentos que muitas vezes exibem apenas quem ouve, ao invés de quem fala. A criação foi premiada no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 2022, e vai representar a França no Oscar 2023 na categoria melhor filme estrangeiro

Quem nos oferece o lugar de espectador nos meandros do caso verídico é Alice Diop, de 44 anos, cineasta e documentarista francesa em seu primeiro longa-metragem de ficção, Saint Omer. Pré-selecionada para representar a França na categoria melhor filme estrangeiro na 95ª cerimônia do Oscar 2023, a obra venceu o Leão de Ouro (Grande Prêmio do Júri) e o Leão do Futuro (Melhor Primeiro Filme) na última edição do Festival Internacional de Cinema de Veneza, em setembro passado, onde estreou mundialmente. A produção deve chegar ao Brasil em março.

Em junho de 2016, Diop se deslocou até a referida cidade para participar das cinco sessões que determinariam a condenação de 15 anos de reclusão de Kabou. A obsessão pela história real – como a própria denomina – nasce quando vê a foto da ré publicada no jornal Le Monde, seguida do enunciado “Procura-se”. Na imagem em preto e branco, captada por câmeras de vigilância, uma mulher empurra o carrinho de um bebê numa estação de trem parisiense.

Filha de pais senegaleses e também jovem mãe, a realizadora teve uma identificação imediata com a desconhecida. “Confesso que fui ao julgamento fantasiando sobre a dimensão lírica de seu ato. Eu tinha lido um artigo que a jornalista Pascale Robert Diard havia escrito: ‘Ela deixou a filha na praia’. Para mim, metaforicamente, ela a devolveu ao mar por querer oferecer uma mãe mais poderosa do que poderia ser”, diz, em trecho da entrevista concedida à escritora, tradutora e crítica de cinema Hélène Frappat, publicada como parte do material de divulgação. Em francês, “mar” é feminino.

A segunda identificação veio pela retórica. Com quociente intelectual (QI) considerado acima da média, Fabienne Kabou estava em processo de escrita de uma tese de doutorado sobre o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), referência nos campos da lógica, da filosofia da linguagem, da matemática e da mente. Sua eloquência e domínio do idioma ganhavam ênfase por parte da imprensa que cobria o caso e que, muitas vezes, demostrava dificuldade em associar as origens africanas à figura culta da imigrante com dicção e vocabulário apresentados de maneira segura e virtuosa.

Vivia em Paris, no ateliê do pai de sua filha, um escultor francês aposentado, 30 anos mais velho do que ela, que não a legitimava e tampouco reconheceu a criança. Sem declaração civil de nascimento, quando questionada pelo júri sobre as motivações do crime, Kabou respondeu que “a protegia contra o mal”. No testemunho, atribuiu as ações às forças malévolas e à feitiçaria, afirmando ter passado períodos ouvindo vozes que lhe davam direcionamentos sobre o que fazer.

Lucie Jansch A documentarista francesa Alice Diop, filha de senagaleses, contemplada com o Leão de Ouro (Grande Prêmio do Júri) e Leão do Futuro (Melhor Primeiro Filme) no 79ª Festival Internacional de Cinema de Veneza, organizado pela Bienal de Veneza, em setembro de 2022, onde estreou mundialmente seu longa de ficção ‘Saint Omer’

“Sua língua é uma língua de resistência. Eu sei porque tive o mesmo sintoma. Muito cedo, mesmo antes de ter lido Bourdieu, entendi o que falar significa”, diz Diop, em referência a Pierre Bourdieu, sociólogo e autor de Ce que parler veut dire: L’économie des échanges linguistiques, publicado em 1982 pela Fayard e, no Brasil, mais recentemente pela Edusp, 2ª edição reimpressa em 2022, sob o título A economia das trocas linguísticas: O que falar quer dizer). “Entendi que é uma maneira de devolver as balas, para se proteger do desprezo. Sempre tenho a impressão de que minha linguagem não é clara o suficiente, tenho uma preocupação com a precisão, a clareza. Falar é um compromisso profundo, e a questão da linguagem, do direito de dizer, está no centro de todos os meus filmes.”

Historiadora e mestre em sociologia visual pela Universidade Sorbonne, seu primeiro curta-metragem documentário La tour du monde (A torre do mundo, 2005) retrata a diversidade cultural e étnica de seu bairro de nascimento e infância, Aulnay-sous-Bois, composto por várias unidades habitacionais públicas construídas em 1973 nos subúrbios do norte de Paris.

Depois vieram Clichy pour l’exemple (Clichy para exemplo, 2006), rodado no bairro periférico Clichy-sous-Bois, quando manifestações tomaram o país após a morte dos adolescentes Zyed Benna et Bouna Traoré, eletrocutados numa subestação de energia, na qual entraram para escapar de um controle policial, em 2005; e Les sénégalaises et la sénégauloise (As senegalesas e a sénégauloise, 2007), resultado de uma de suas visitas ao Senegal para retratar uma mãe e duas filhas. O neologismo “la sénégauloise’ é a junção das origens senegalesa e francesa.

Vencedor dos prêmios de melhor documentário no Festival Internacional de Cinema de Berlim e de melhor filme na Mostra Encontros do Festival, em Nous (Nós, 2021) Diop faz uma travessia de norte a sul por meio da linha de trem Rer B, que conecta bairros populares a Paris.

Em Saint Omer, é a partir da experiência presencial no tribunal que a realizadora intuiu a possibilidade de um filme. Assim, junto à escritora, roteirista e dramaturga francesa Marie Ndiaye e à montadora Amrita David, parceira em todos os seus documentários anteriores (total de nove), iniciou o processo de pesquisa, apuração dos fatos e escrita de um roteiro inspirado no caso verídico, mas alimentado por uma convocação de figuras gregas mitológicas, como a Quimera, criatura mística caracterizada pela aparência híbrida de dois ou mais animais, e a feiticeira Medeia, personagem-título da tragédia escrita em 431 a.C. pelo poeta e dramaturgo Eurípides, conhecida por ter sacrificado os dois filhos em vingança à traição do esposo Jasão com Glauce, mais jovem e menos bárbara, filha de Creonte, rei de Corinto.

Na sinopse, grávida de quatro meses, a escritora e professora universitária Rama (Kayije Kagame) busca criar uma versão contemporânea do mito clássico a partir do testemunho de Laurence Coly, nome fictício para Fabienne Kabou, interpretada pela francesa Guslagie Malanda.

“Eu não poderia ter feito esse filme sem a construção de Rama e, a partir dela, poder indicar exatamente o que me interessa na história: a reflexão em torno da maternidade. E é justamente a ficção que me permite pontuar precisamente, de forma completamente universal, ao ponto de todas as mulheres do mundo se identificarem com a personagem, ainda que seja uma mulher negra francesa vivendo no século XXI”, explica a cineasta durante bate-papo após a pré-estreia no cinema Majestic Bastille, em Paris, em novembro passado, durante evento feminista organizado pela jornalista e ativista francesa Elvire Duvelle-Charles. Ocasião em que ela e Kagame foram ovacionadas de pé por uma plateia majoritariamente feminina.

Srab Films À esquerda, a atriz suíça Kayije Kagame é Rama, escritora e professora universitária empenhada em criar uma versão contemporânea da mitologia clássica a partir do testemunho da ré; aqui, contracena com Salimata Kamate, intérprete da mãe da mulher que “devolveu” sua filha ao mar

“No filme, a encenação substitui a dimensão lírica que permite o acesso à história, para limpá-la do seu carater sórdido, inaudível, impensável. É o que nos permite olhar para o vazio desta história e dela retirar um maior conhecimento, uma maior compreensão de nós mesmos para perdoar nossas mães, todas as nossas mães. E é Rama quem permite fazê-lo, na identificação que permite ao espectador. Sem ela, teria sido apenas uma notícia banal e trágica, e nada mais que uma versão cinematográfica de Faites entrer l’accusé”, explica, em referência ao programa especializado em processos judiciários e reconstituições de casos criminais lançado nos anos 2000 e ainda veiculado na TV aberta francesa.

O episódio Kabou está disponível no YouTube pelo canal oficial do programa.

Por ter reconhecido nela algo de si própria, a diretora diz ter escrito a personagem já pensando em Kagame. O primeiro encontro com a atriz se deu durante uma sessão de retrospectiva de documentários, organizada por um coletivo afro-suíço no início de 2018, no cinema Le Spoutnik, em Genebra, após a exibição de La mort de Danton (A morte de Danton, 2011). O média-metragem acompanha a tentativa do ator negro e periférico Steve Tientcheu – estudante da renomada escola de arte dramática Cours Simon – em representar o Danton criado em 1835 pelo dramaturgo alemão Georg Büchner (1813-1837).

Na mostra, também foram projetados: La permanence (A permanência, 2016), laureado pelo Institut Français Louis-Marcorelles no Festival Cinéma du Réel, por acompanhar um clínico geral durante o atendimento a pacientes cujos problemas de saúde geralmente teriam origem na condição de migrantes e exilados; e Vers la tendresse (Em direção à ternura, 2016), que investiga o território masculino a partir das experiências amorosas de quatro jovens, num universo onde corpos femininos nada mais são do que silhuetas fantasmagóricas e virtuais. Recebeu o César de melhor curta-metragem – prêmio equivalente ao Oscar, tido como a maior honraria cinematográfica da França, com importância semelhante ao Molière, no teatro, e ao Victoires de la Musique, nesta arte.

Interessada pela abrangência do tema parental e não pela abordagem do infanticídio em si, Diop tece uma obra cinematográfica não distante de seu modo de fazer documental. Em simbiose e diálogo com o teatro e a pintura, ela conduz a seletividade de foco do espectador para propor direcionamentos e enquadramentos que muitas vezes exibem apenas quem ouve, ao invés de quem fala. Ou por meio de ângulos estáticos na cenografia monocromática de Anna Le Mouel, como se para invisibilizar a acusada, fazendo-a camuflar na madeira envernizada e nos figurinos terrosos, assinados por Annie Melza Tiburce. E, principalmente, pela densidade do texto e ode à palavra, que mesmo em momentos de não-dizer, anuncia a que veio, tal a maneira alusiva à escravidão presente nas algemas de Laurence Coly, conduzida por um policial branco.

“A função dos longos planos-sequência é de realmente colocar o espectador na mesma posição em que estive quando assisti ao processo e de atravessar as múltiplas nuances que o filme apresenta: a de gênero, a racial e a da maternidade. Mas, para mim, a questão central é de olhar essa mulher – que é um mistério, e não um monstro – e, a partir dela, descer ao nosso próprio íntimo subterrâneo e esclarecer questões obscuras, desconfortáveis e cheias de tabus”, diz.

A criadora sublinha que a estética do filme é absolutamente política, pois trata-se de corpos raramente filmados, mulheres raramente vistas e ouvidas. Propositalmente, com a ideia de inscrever a pictorialidade desses corpos na história do cinema, as primeiras referências enviadas à diretora de fotografia Claire Mathon (Spencer, 2021; e Atlantique, 2018) foram pinturas do holandês Rembrandt; modelos negros do pós-impressionista francês Paul Cézanne; obras como La belle ferronière, do final do século XV, do italiano Leonardo Da Vinci; e Grape wine, tela de 1966 do pintor realista estadunidense Andrew Wyeth (1917-2009).

Na literatura de não-ficção, também inspiraram os livros Souvenirs de la cour d’assises (1913), de André Gide (1869-1951), Nobel de Literatura em 1947; A sangue frio (1965), do escritor, roteirista e dramaturgo estadunidense Truman Capote (1924-1984); e O adversário (2000), do roteirista e realizador francês Emmanuel Carrère, de 65 anos.

Para compor a personagem, Guslagie Malanda trabalhou respiração e postura com um mestre de técnica tai chi chuan, além de ter se apoiar nas atuações de Brigitte Bardot, hoje com 88 anos, no drama franco-italiano La vérité (A verdade, 1960), dirigido por Henri-Georges Clouzot (1907-1977); e Florence Carrez-Delay, de 81 anos, no papel-título de Le procès de Jeanne d’Arc (O processo de Joana D’arc, 1962), de Robert Bresson (1901-1999). O drama reconstrói o dia do julgamento da heroína francesa a partir de depoimentos e textos do processo original, que resultou em sua execução em 1431, lançada à fogueira após ter sido condenada por heresia.

Laurent Le Crabe A atriz francesa Guslagie Malanda é Laurence Coly em cena de ‘Saint Omer’, ficção de Alice Diop inspirada no infanticídio cometido por Fabienne Kabou, em 2013 ; o longa foi escolhido para representar a França no Oscar 2023 e está elegível em todas as categorias do César, prêmio máximo do cinema francês

Formada em história da arte e com experiência em curadoria independente de exposições, Malanda estreou nas telas em 2014 como a protagonista de Mon amie Victoria, de Jean Paul Civeyrac. Até cruzar seu caminho com o de Diop – que soube da atriz depois de ler uma entrevista na revista Les Cahiers du Cinéma – e ser escolhida para compor o elenco. Antes, recusara algumas dezenas de propostas em produções sobre atentados, crise migratória e prostituição. Em La bête (A besta, 2022), filme de ficção científica de Bertrand Bonello, ainda sem data oficial de lançamento nos cinemas franceses, interpreta a boneca Kelly, ao lado da atriz Léa Seydoux, de La vie d’Adèle (2013), traduzido no Brasil como Azul é a cor mais quente.

Já a suíça Kagame, para a preparação de seu primeiro papel no cinema, trabalhou corpo e a questão do silêncio com a bailarina e coreógrafa francesa Bintou Dembélé, pioneira do hip hop no país e diretora artística da companhia Rualité, desde 2002. Antes de Saint Omer, a atriz havia participado da série H24 – 24 horas na vida de uma mulher (2021), dirigida por Nathalie Masduraud e Valérie Urrea.

Dramaturga, autora de performances, peças sonoras, filmes e instalações, Kagame estudava na ENSATT – Escola Nacional de Artes e Técnicas do Teatro de Lyon quando foi descoberta pelo diretor, coreógrafo e artista plástico estadunidense Robert Wilson, 81 anos. Após ser convidada a participar da residência no Watermill International Summer Program (2014-2015), em Nova York, integrou o elenco de Les nègres (Os negros), encenado por Bob Wilson a partir do texto de 1958 do poeta, dramaturgo e ativista francês Jean Genet (1910-1986).

Ao trabalhar com atrizes de teatro [Aurélia Petit, de 51 anos, advogada de defesa de Coly, e Valérie Dréville, 60 anos, presidente do júri], Diop reuniu um quadro seguro de artistas para sua obra de estreia. “Nós não ensaiamos muito. Fizemos poucas tomadas. Eu dirigi a emoção. Não dizia ‘ação’ ou ‘corta’. Começávamos a filmar e as atrizes eram levadas para a cena, numa espécie de deslizamento entre a realidade e a ficção. Elas interpretavam o texto e eu ficava emocionalmente suspensa em ouvi-las. Era preciso respeitar a experiência, como no teatro”, diz.

Associada ao Festival de Avignon e ao Teatro Nacional de Estrasburgo, Dréville protagonizou Médée-matériau (2002) na versão do alemão Heiner Müller (1929-1995) encenada por Anatoli Vassiliev, de 80 anos, realizador russo conhecido mundialmente. O solo cristaliza o trabalho de laboratório no qual a artista mergulhou durante suas idas a Moscou.

Além das tragédias de Eurípides e Séneca, filósofo do Império Romano, inúmeros dramaturgos franceses criaram versões para a personagem mitológica, como Pierre Corneille (1636), Jean Racine (1677), Jean Anouilh (1946); Laurent Gaudé e Max Rouquette (2003). No audiovisual, a soprano greco-americana Maria Callas foi eternizada no filme Medea, do italiano Pier Paolo Pasolini, em 1969. Em 1988, foi a vez do cineasta dinamarquês Lars von Trier, em drama homônimo.

Em 2003, como resultado de um workshop realizado em Burkina Faso, o diretor do Théâtre de Nanterre-Amandiers Jean-Louis Martinelli, 71 anos,criou Médée, versão africana a partir do texto de Max Rouquette (1908-2005), escrito originalmente em occitano, idioma do século XII propagado por trovadores nas cortes europeias e ainda falado em algumas regiões do sudoeste francês.

“Fiquei impressionado com a forma como o campo semântico da França rural no final do século XX ecoa a maneira como as palavras ainda são usadas na África. A peça de Rouquette também me parece mais colorida do que a de Eurípides e, a meu ver, se adapta bem à arte de contar histórias, própria de um contador africano. Logo, os atores imediatamente e naturalmente se apoderaram desse material”, diz o encenador em entrevista publicada em novembro de 2009 na L’avant-scène théâtre, revista bimensal editada desde 1949, icônica nas artes cênicas.

Seis anos após a primeira montagem, Martinelli retoma o espetáculo. Mas, desta vez, com um Jasão de terno e gravata (Hamadou Sawadogo) e uma Medeia cigana, representada pela atriz, dramaturga e diretora burquinense Odile Sankara, apoiada por um coro de mulheres falantes de bambara, língua também do Mali, Costa do Marfim e Gâmbia. Fundadora do Les Récréâtrales, espaço pan-africano dedicado à pesquisa-formação, criação-produção e divulgação cênica desde 2002, a artista é irmã mais nova de Thomas Sankara, líder revolucionário marxista e presidente de Burkina Faso assassinado em 1987.

Reprodução A atriz, dramaturga e diretora burquinense Odile Sankara em ‘Médée’ (2009), versão africana encenada por Jean-Louis Martinelli a partir do texto de Max Rouquete (1908-2005), originalmente escrito em occitano
Jean-Louis Fernandez Escalada para o papel da juiza no drama da cineasta Alice Diop, a francesa Valérie Dréville protagonizou o solo ‘Médée-Matériau’ (2002), versão do alemão Heiner Müller dirigida pelo russo Anatoli Vassiliev
Lucie Jansch A suíça Kayije Kagame ladeada por Astrid Bayiha (esquerda) e Daphné Biiga em ‘Les nègres’ (2014), encenação de Bob Wilson para a peça de Jean Genet apresentada no Teatro Nacional do Odéon, em Paris

Das criações afro-brasileiras, a obra Além do rio, do escritor e dramaturgo Agostinho Olavo, apresentada pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1957, trouxe uma rainha africana escravizada no século XVII, feita amante do senhor branco e cujos filhos foram mortos num rio. Em Curra – Temperos sobre Medeia (2008), o grupo Contadores de Mentira (Suzano, SP) mesclou dança, maracatu, candomblé e orixás com banquete e bebida servidos em cena para o público.

Em 2019, Gota d’água, peça de 1975 concebida por Chico Buarque e Paulo Pontes, ganhou releitura do ator e diretor Jé Oliveira, cofundador do Coletivo Negro (grupo embrionário da Escola Livre de Teatro de Santo André, SP). Gota d’água {PRETA} traz a cantora Juçara Marçal como Joana [papel também desempenhado pela atriz substituta Carlota Joaquina] e Oliveira intérprete de Jasão, um jovem sambista que desponta para o sucesso.

Quando questionada sobre manter o nome da cidade Saint-Omer no título da obra – grafado sem o hífen –, Diop partilha as estranhezas de sua recepção no local, onde pôsteres da candidata à presidência Marine Le Pen (partido francês de extrema-direita Rassemblement National) se mantinham intactos e corpos negros raramente eram vistos caminhando pelas ruas: “É, ao mesmo tempo, o lugar e a ressonância da palavra [Sainte ô mère / Santa ô mãe]. Um lugar real e um vínculo abstrato.”

“Sabemos que, na gravidez, as células e o DNA materno migram em direção ao feto. O que sabemos menos é que a troca se faz em ambos os sentidos. As células da criança também vão em direção aos órgãos da mãe e se instalam em todo o seu corpo: do cérebro até as artérias. Mesmo depois do parto, mesmo se a gestação não foi até o fim, as suas células persistem. Às vezes, durante toda a vida de uma mulher. Uma mãe e seu filho são assim imbricados, um no outro, de maneira inextricável.

Vocês sabem como os especialistas chamam essas células? As ‘células quiméricas’, como a Quimera, o monstro mitológico. Um ser composto por membros de diferentes animais: a cabeça de um leão, o corpo de uma cabra e um rabo de serpente. Então, senhoras e senhores jurados, eu lhes digo que nós, mulheres, somos todas Quimeras. Levaremos dentro de nós o traço de nossas mães e de nossas filhas, e elas levarão outras mães e outras filhas. É uma rede infinita.

Nós somos, em algum lugar, todas monstros. Mas monstros terrivelmente humanos”.

(Reprodução de parte do discurso fictício da defesa, interpretado por Aurélia Petit)

Ficha técnica:
Saint Omer (2022, 122 min.). Estreia nos cinemas brasileiros em março de 2023

Com: Adama Diallo Tamba, Aurélia Petit, Dado Diop, Guslagie Malanda, Kayije Kagame, Mariam Diop, Robert Cantarella, Salimata Kamate, Thomas De Pourquery, Valérie Dréville e Xavier Maly

Direção: Alice Diop

Roteiro: Alice Diop, Amrita David e Marie Ndiaye

Direção de fotografia: Claire Mathon

Montagem: Amrita David

Som: Dana Farzanehpour, Emmanuel Croset, Josefina Rodriguez e Lucile Demarquet

Casting: Stéphane Batut

Cenário: Anna Le Mouel

Figurino: Annie Melza Tiburce

Cabelo e maquiagem: Élodie Namani Cyrille e Marie Goetgheluck

Direção de produção: Paul Sergent e Rym Hachimi

Coprodução: Arte France Cinema Pictanovo Hauts-de-France

Parcerias: Agência Nacional para a Coesão Território, Centro Nacional de Cinema e Imagem Animada, Ciclic – Centro Val de Loire, Cofinova 18, Fundo Imagens da Diversidade, Indefilms 10, Região Île-de-France e Região Nouvelle-Aquitaine

Distribuição: Les Films du Losange

Jornalista e escritora brasileira radicada na França, tem contribuições em projetos artísticos e socioculturais a partir de atuações em ONGs, revistas, rádio, televisão, fotografia, assessoria de imprensa e produçāo de eventos. É autora da biografia Esumbaú, Pombas Urbanas! 20 anos de uma prática de teatro e vida (2009) e uma das criadoras do Orgulho Crespo, movimento independente de valorização do cabelo afro iniciado em 2015 com a 1ª Marcha do Orgulho Crespo SP. A iniciativa integra o calendário oficial do Estado de São Paulo com o #DiaDoOrgulhoCrespo, celebrado todo 26 de julho por meio da Lei 16.682/2018.

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