Reportagem
“É a história, senhoras e senhores jurados, de uma mulher fantasma. Uma mulher que ninguém vê, que ninguém conhece. É a história de um lento desaparecimento. Uma trágica descida ao inferno, no qual a mãe leva a filha. Esta mulher cometeu o pior: um infanticídio. Ela matou a filha, e reconhece. É insuportável para nós e ultrapassa o entendimento. Uma mãe que se autoriza a matar a própria cria, só podemos vê-la como sendo um monstro. E um monstro deve ser morto. Então, abram um código penal e a condenem. Mas, se o fizerem, senhoras e senhores, vocês terão feito um julgamento sem justiça. Vocês terão respondido apenas à questão mais fácil, e não a que sua responsabilidade de jurado o obriga a fazer. Se você não conseguir se fazer essa pergunta, ficará na praia atordoado com o horror do crime”.
Ocupamos um dos assentos do Tribunal de Justiça da comuna provinciana Saint-Omer, ao norte da França. O trecho acima é da advogada de defesa da senegalesa Fabienne Kabou, de 36 anos, acusada de ter abandonado a filha de 15 meses na maré alta da praia de Berck-sur-Mer, a 71 quilômetros dali, em novembro de 2013.
Afogada e sem indícios de violência, a criança foi encontrada no dia seguinte por dois pescadores, que pensaram se tratar de um bebê a bordo de uma embarcação de refugiados, já que a região pertence ao departamento de Pas-de-Calais, rota migratória.
Interessada pela abrangência do tema parental e não pela abordagem do infanticídio em si, caso real motor de seu primeiro longa-metragem de ficção que evoca mitologias gregas da Quimera e de Medeia, a cineasta francesa Alice Diop tece uma obra não distante de seu modo de fazer documental. Em simbiose e diálogo com o teatro e a pintura, ela conduz a seletividade de foco do espectador para propor direcionamentos e enquadramentos que muitas vezes exibem apenas quem ouve, ao invés de quem fala. A criação foi premiada no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 2022, e vai representar a França no Oscar 2023 na categoria melhor filme estrangeiro
Quem nos oferece o lugar de espectador nos meandros do caso verídico é Alice Diop, de 44 anos, cineasta e documentarista francesa em seu primeiro longa-metragem de ficção, Saint Omer. Pré-selecionada para representar a França na categoria melhor filme estrangeiro na 95ª cerimônia do Oscar 2023, a obra venceu o Leão de Ouro (Grande Prêmio do Júri) e o Leão do Futuro (Melhor Primeiro Filme) na última edição do Festival Internacional de Cinema de Veneza, em setembro passado, onde estreou mundialmente. A produção deve chegar ao Brasil em março.
Em junho de 2016, Diop se deslocou até a referida cidade para participar das cinco sessões que determinariam a condenação de 15 anos de reclusão de Kabou. A obsessão pela história real – como a própria denomina – nasce quando vê a foto da ré publicada no jornal Le Monde, seguida do enunciado “Procura-se”. Na imagem em preto e branco, captada por câmeras de vigilância, uma mulher empurra o carrinho de um bebê numa estação de trem parisiense.
Filha de pais senegaleses e também jovem mãe, a realizadora teve uma identificação imediata com a desconhecida. “Confesso que fui ao julgamento fantasiando sobre a dimensão lírica de seu ato. Eu tinha lido um artigo que a jornalista Pascale Robert Diard havia escrito: ‘Ela deixou a filha na praia’. Para mim, metaforicamente, ela a devolveu ao mar por querer oferecer uma mãe mais poderosa do que poderia ser”, diz, em trecho da entrevista concedida à escritora, tradutora e crítica de cinema Hélène Frappat, publicada como parte do material de divulgação. Em francês, “mar” é feminino.
A segunda identificação veio pela retórica. Com quociente intelectual (QI) considerado acima da média, Fabienne Kabou estava em processo de escrita de uma tese de doutorado sobre o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), referência nos campos da lógica, da filosofia da linguagem, da matemática e da mente. Sua eloquência e domínio do idioma ganhavam ênfase por parte da imprensa que cobria o caso e que, muitas vezes, demostrava dificuldade em associar as origens africanas à figura culta da imigrante com dicção e vocabulário apresentados de maneira segura e virtuosa.
Vivia em Paris, no ateliê do pai de sua filha, um escultor francês aposentado, 30 anos mais velho do que ela, que não a legitimava e tampouco reconheceu a criança. Sem declaração civil de nascimento, quando questionada pelo júri sobre as motivações do crime, Kabou respondeu que “a protegia contra o mal”. No testemunho, atribuiu as ações às forças malévolas e à feitiçaria, afirmando ter passado períodos ouvindo vozes que lhe davam direcionamentos sobre o que fazer.
“Sua língua é uma língua de resistência. Eu sei porque tive o mesmo sintoma. Muito cedo, mesmo antes de ter lido Bourdieu, entendi o que falar significa”, diz Diop, em referência a Pierre Bourdieu, sociólogo e autor de Ce que parler veut dire: L’économie des échanges linguistiques, publicado em 1982 pela Fayard e, no Brasil, mais recentemente pela Edusp, 2ª edição reimpressa em 2022, sob o título A economia das trocas linguísticas: O que falar quer dizer). “Entendi que é uma maneira de devolver as balas, para se proteger do desprezo. Sempre tenho a impressão de que minha linguagem não é clara o suficiente, tenho uma preocupação com a precisão, a clareza. Falar é um compromisso profundo, e a questão da linguagem, do direito de dizer, está no centro de todos os meus filmes.”
Historiadora e mestre em sociologia visual pela Universidade Sorbonne, seu primeiro curta-metragem documentário La tour du monde (A torre do mundo, 2005) retrata a diversidade cultural e étnica de seu bairro de nascimento e infância, Aulnay-sous-Bois, composto por várias unidades habitacionais públicas construídas em 1973 nos subúrbios do norte de Paris.
Depois vieram Clichy pour l’exemple (Clichy para exemplo, 2006), rodado no bairro periférico Clichy-sous-Bois, quando manifestações tomaram o país após a morte dos adolescentes Zyed Benna et Bouna Traoré, eletrocutados numa subestação de energia, na qual entraram para escapar de um controle policial, em 2005; e Les sénégalaises et la sénégauloise (As senegalesas e a sénégauloise, 2007), resultado de uma de suas visitas ao Senegal para retratar uma mãe e duas filhas. O neologismo “la sénégauloise’ é a junção das origens senegalesa e francesa.
Vencedor dos prêmios de melhor documentário no Festival Internacional de Cinema de Berlim e de melhor filme na Mostra Encontros do Festival, em Nous (Nós, 2021) Diop faz uma travessia de norte a sul por meio da linha de trem Rer B, que conecta bairros populares a Paris.
Em Saint Omer, é a partir da experiência presencial no tribunal que a realizadora intuiu a possibilidade de um filme. Assim, junto à escritora, roteirista e dramaturga francesa Marie Ndiaye e à montadora Amrita David, parceira em todos os seus documentários anteriores (total de nove), iniciou o processo de pesquisa, apuração dos fatos e escrita de um roteiro inspirado no caso verídico, mas alimentado por uma convocação de figuras gregas mitológicas, como a Quimera, criatura mística caracterizada pela aparência híbrida de dois ou mais animais, e a feiticeira Medeia, personagem-título da tragédia escrita em 431 a.C. pelo poeta e dramaturgo Eurípides, conhecida por ter sacrificado os dois filhos em vingança à traição do esposo Jasão com Glauce, mais jovem e menos bárbara, filha de Creonte, rei de Corinto.
Na sinopse, grávida de quatro meses, a escritora e professora universitária Rama (Kayije Kagame) busca criar uma versão contemporânea do mito clássico a partir do testemunho de Laurence Coly, nome fictício para Fabienne Kabou, interpretada pela francesa Guslagie Malanda.
“Eu não poderia ter feito esse filme sem a construção de Rama e, a partir dela, poder indicar exatamente o que me interessa na história: a reflexão em torno da maternidade. E é justamente a ficção que me permite pontuar precisamente, de forma completamente universal, ao ponto de todas as mulheres do mundo se identificarem com a personagem, ainda que seja uma mulher negra francesa vivendo no século XXI”, explica a cineasta durante bate-papo após a pré-estreia no cinema Majestic Bastille, em Paris, em novembro passado, durante evento feminista organizado pela jornalista e ativista francesa Elvire Duvelle-Charles. Ocasião em que ela e Kagame foram ovacionadas de pé por uma plateia majoritariamente feminina.
“No filme, a encenação substitui a dimensão lírica que permite o acesso à história, para limpá-la do seu carater sórdido, inaudível, impensável. É o que nos permite olhar para o vazio desta história e dela retirar um maior conhecimento, uma maior compreensão de nós mesmos para perdoar nossas mães, todas as nossas mães. E é Rama quem permite fazê-lo, na identificação que permite ao espectador. Sem ela, teria sido apenas uma notícia banal e trágica, e nada mais que uma versão cinematográfica de Faites entrer l’accusé”, explica, em referência ao programa especializado em processos judiciários e reconstituições de casos criminais lançado nos anos 2000 e ainda veiculado na TV aberta francesa.
O episódio Kabou está disponível no YouTube pelo canal oficial do programa.
Por ter reconhecido nela algo de si própria, a diretora diz ter escrito a personagem já pensando em Kagame. O primeiro encontro com a atriz se deu durante uma sessão de retrospectiva de documentários, organizada por um coletivo afro-suíço no início de 2018, no cinema Le Spoutnik, em Genebra, após a exibição de La mort de Danton (A morte de Danton, 2011). O média-metragem acompanha a tentativa do ator negro e periférico Steve Tientcheu – estudante da renomada escola de arte dramática Cours Simon – em representar o Danton criado em 1835 pelo dramaturgo alemão Georg Büchner (1813-1837).
Na mostra, também foram projetados: La permanence (A permanência, 2016), laureado pelo Institut Français Louis-Marcorelles no Festival Cinéma du Réel, por acompanhar um clínico geral durante o atendimento a pacientes cujos problemas de saúde geralmente teriam origem na condição de migrantes e exilados; e Vers la tendresse (Em direção à ternura, 2016), que investiga o território masculino a partir das experiências amorosas de quatro jovens, num universo onde corpos femininos nada mais são do que silhuetas fantasmagóricas e virtuais. Recebeu o César de melhor curta-metragem – prêmio equivalente ao Oscar, tido como a maior honraria cinematográfica da França, com importância semelhante ao Molière, no teatro, e ao Victoires de la Musique, nesta arte.
Interessada pela abrangência do tema parental e não pela abordagem do infanticídio em si, Diop tece uma obra cinematográfica não distante de seu modo de fazer documental. Em simbiose e diálogo com o teatro e a pintura, ela conduz a seletividade de foco do espectador para propor direcionamentos e enquadramentos que muitas vezes exibem apenas quem ouve, ao invés de quem fala. Ou por meio de ângulos estáticos na cenografia monocromática de Anna Le Mouel, como se para invisibilizar a acusada, fazendo-a camuflar na madeira envernizada e nos figurinos terrosos, assinados por Annie Melza Tiburce. E, principalmente, pela densidade do texto e ode à palavra, que mesmo em momentos de não-dizer, anuncia a que veio, tal a maneira alusiva à escravidão presente nas algemas de Laurence Coly, conduzida por um policial branco.
“A função dos longos planos-sequência é de realmente colocar o espectador na mesma posição em que estive quando assisti ao processo e de atravessar as múltiplas nuances que o filme apresenta: a de gênero, a racial e a da maternidade. Mas, para mim, a questão central é de olhar essa mulher – que é um mistério, e não um monstro – e, a partir dela, descer ao nosso próprio íntimo subterrâneo e esclarecer questões obscuras, desconfortáveis e cheias de tabus”, diz.
A criadora sublinha que a estética do filme é absolutamente política, pois trata-se de corpos raramente filmados, mulheres raramente vistas e ouvidas. Propositalmente, com a ideia de inscrever a pictorialidade desses corpos na história do cinema, as primeiras referências enviadas à diretora de fotografia Claire Mathon (Spencer, 2021; e Atlantique, 2018) foram pinturas do holandês Rembrandt; modelos negros do pós-impressionista francês Paul Cézanne; obras como La belle ferronière, do final do século XV, do italiano Leonardo Da Vinci; e Grape wine, tela de 1966 do pintor realista estadunidense Andrew Wyeth (1917-2009).
Na literatura de não-ficção, também inspiraram os livros Souvenirs de la cour d’assises (1913), de André Gide (1869-1951), Nobel de Literatura em 1947; A sangue frio (1965), do escritor, roteirista e dramaturgo estadunidense Truman Capote (1924-1984); e O adversário (2000), do roteirista e realizador francês Emmanuel Carrère, de 65 anos.
Para compor a personagem, Guslagie Malanda trabalhou respiração e postura com um mestre de técnica tai chi chuan, além de ter se apoiar nas atuações de Brigitte Bardot, hoje com 88 anos, no drama franco-italiano La vérité (A verdade, 1960), dirigido por Henri-Georges Clouzot (1907-1977); e Florence Carrez-Delay, de 81 anos, no papel-título de Le procès de Jeanne d’Arc (O processo de Joana D’arc, 1962), de Robert Bresson (1901-1999). O drama reconstrói o dia do julgamento da heroína francesa a partir de depoimentos e textos do processo original, que resultou em sua execução em 1431, lançada à fogueira após ter sido condenada por heresia.
Formada em história da arte e com experiência em curadoria independente de exposições, Malanda estreou nas telas em 2014 como a protagonista de Mon amie Victoria, de Jean Paul Civeyrac. Até cruzar seu caminho com o de Diop – que soube da atriz depois de ler uma entrevista na revista Les Cahiers du Cinéma – e ser escolhida para compor o elenco. Antes, recusara algumas dezenas de propostas em produções sobre atentados, crise migratória e prostituição. Em La bête (A besta, 2022), filme de ficção científica de Bertrand Bonello, ainda sem data oficial de lançamento nos cinemas franceses, interpreta a boneca Kelly, ao lado da atriz Léa Seydoux, de La vie d’Adèle (2013), traduzido no Brasil como Azul é a cor mais quente.
Já a suíça Kagame, para a preparação de seu primeiro papel no cinema, trabalhou corpo e a questão do silêncio com a bailarina e coreógrafa francesa Bintou Dembélé, pioneira do hip hop no país e diretora artística da companhia Rualité, desde 2002. Antes de Saint Omer, a atriz havia participado da série H24 – 24 horas na vida de uma mulher (2021), dirigida por Nathalie Masduraud e Valérie Urrea.
Dramaturga, autora de performances, peças sonoras, filmes e instalações, Kagame estudava na ENSATT – Escola Nacional de Artes e Técnicas do Teatro de Lyon quando foi descoberta pelo diretor, coreógrafo e artista plástico estadunidense Robert Wilson, 81 anos. Após ser convidada a participar da residência no Watermill International Summer Program (2014-2015), em Nova York, integrou o elenco de Les nègres (Os negros), encenado por Bob Wilson a partir do texto de 1958 do poeta, dramaturgo e ativista francês Jean Genet (1910-1986).
Ao trabalhar com atrizes de teatro [Aurélia Petit, de 51 anos, advogada de defesa de Coly, e Valérie Dréville, 60 anos, presidente do júri], Diop reuniu um quadro seguro de artistas para sua obra de estreia. “Nós não ensaiamos muito. Fizemos poucas tomadas. Eu dirigi a emoção. Não dizia ‘ação’ ou ‘corta’. Começávamos a filmar e as atrizes eram levadas para a cena, numa espécie de deslizamento entre a realidade e a ficção. Elas interpretavam o texto e eu ficava emocionalmente suspensa em ouvi-las. Era preciso respeitar a experiência, como no teatro”, diz.
Associada ao Festival de Avignon e ao Teatro Nacional de Estrasburgo, Dréville protagonizou Médée-matériau (2002) na versão do alemão Heiner Müller (1929-1995) encenada por Anatoli Vassiliev, de 80 anos, realizador russo conhecido mundialmente. O solo cristaliza o trabalho de laboratório no qual a artista mergulhou durante suas idas a Moscou.
Além das tragédias de Eurípides e Séneca, filósofo do Império Romano, inúmeros dramaturgos franceses criaram versões para a personagem mitológica, como Pierre Corneille (1636), Jean Racine (1677), Jean Anouilh (1946); Laurent Gaudé e Max Rouquette (2003). No audiovisual, a soprano greco-americana Maria Callas foi eternizada no filme Medea, do italiano Pier Paolo Pasolini, em 1969. Em 1988, foi a vez do cineasta dinamarquês Lars von Trier, em drama homônimo.
Em 2003, como resultado de um workshop realizado em Burkina Faso, o diretor do Théâtre de Nanterre-Amandiers Jean-Louis Martinelli, 71 anos,criou Médée, versão africana a partir do texto de Max Rouquette (1908-2005), escrito originalmente em occitano, idioma do século XII propagado por trovadores nas cortes europeias e ainda falado em algumas regiões do sudoeste francês.
“Fiquei impressionado com a forma como o campo semântico da França rural no final do século XX ecoa a maneira como as palavras ainda são usadas na África. A peça de Rouquette também me parece mais colorida do que a de Eurípides e, a meu ver, se adapta bem à arte de contar histórias, própria de um contador africano. Logo, os atores imediatamente e naturalmente se apoderaram desse material”, diz o encenador em entrevista publicada em novembro de 2009 na L’avant-scène théâtre, revista bimensal editada desde 1949, icônica nas artes cênicas.
Seis anos após a primeira montagem, Martinelli retoma o espetáculo. Mas, desta vez, com um Jasão de terno e gravata (Hamadou Sawadogo) e uma Medeia cigana, representada pela atriz, dramaturga e diretora burquinense Odile Sankara, apoiada por um coro de mulheres falantes de bambara, língua também do Mali, Costa do Marfim e Gâmbia. Fundadora do Les Récréâtrales, espaço pan-africano dedicado à pesquisa-formação, criação-produção e divulgação cênica desde 2002, a artista é irmã mais nova de Thomas Sankara, líder revolucionário marxista e presidente de Burkina Faso assassinado em 1987.
Das criações afro-brasileiras, a obra Além do rio, do escritor e dramaturgo Agostinho Olavo, apresentada pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1957, trouxe uma rainha africana escravizada no século XVII, feita amante do senhor branco e cujos filhos foram mortos num rio. Em Curra – Temperos sobre Medeia (2008), o grupo Contadores de Mentira (Suzano, SP) mesclou dança, maracatu, candomblé e orixás com banquete e bebida servidos em cena para o público.
Em 2019, Gota d’água, peça de 1975 concebida por Chico Buarque e Paulo Pontes, ganhou releitura do ator e diretor Jé Oliveira, cofundador do Coletivo Negro (grupo embrionário da Escola Livre de Teatro de Santo André, SP). Gota d’água {PRETA} traz a cantora Juçara Marçal como Joana [papel também desempenhado pela atriz substituta Carlota Joaquina] e Oliveira intérprete de Jasão, um jovem sambista que desponta para o sucesso.
Quando questionada sobre manter o nome da cidade Saint-Omer no título da obra – grafado sem o hífen –, Diop partilha as estranhezas de sua recepção no local, onde pôsteres da candidata à presidência Marine Le Pen (partido francês de extrema-direita Rassemblement National) se mantinham intactos e corpos negros raramente eram vistos caminhando pelas ruas: “É, ao mesmo tempo, o lugar e a ressonância da palavra [Sainte ô mère / Santa ô mãe]. Um lugar real e um vínculo abstrato.”
…
“Sabemos que, na gravidez, as células e o DNA materno migram em direção ao feto. O que sabemos menos é que a troca se faz em ambos os sentidos. As células da criança também vão em direção aos órgãos da mãe e se instalam em todo o seu corpo: do cérebro até as artérias. Mesmo depois do parto, mesmo se a gestação não foi até o fim, as suas células persistem. Às vezes, durante toda a vida de uma mulher. Uma mãe e seu filho são assim imbricados, um no outro, de maneira inextricável.
Vocês sabem como os especialistas chamam essas células? As ‘células quiméricas’, como a Quimera, o monstro mitológico. Um ser composto por membros de diferentes animais: a cabeça de um leão, o corpo de uma cabra e um rabo de serpente. Então, senhoras e senhores jurados, eu lhes digo que nós, mulheres, somos todas Quimeras. Levaremos dentro de nós o traço de nossas mães e de nossas filhas, e elas levarão outras mães e outras filhas. É uma rede infinita.
Nós somos, em algum lugar, todas monstros. Mas monstros terrivelmente humanos”.
(Reprodução de parte do discurso fictício da defesa, interpretado por Aurélia Petit)
Ficha técnica:
Saint Omer (2022, 122 min.). Estreia nos cinemas brasileiros em março de 2023
Com: Adama Diallo Tamba, Aurélia Petit, Dado Diop, Guslagie Malanda, Kayije Kagame, Mariam Diop, Robert Cantarella, Salimata Kamate, Thomas De Pourquery, Valérie Dréville e Xavier Maly
Direção: Alice Diop
Roteiro: Alice Diop, Amrita David e Marie Ndiaye
Direção de fotografia: Claire Mathon
Montagem: Amrita David
Som: Dana Farzanehpour, Emmanuel Croset, Josefina Rodriguez e Lucile Demarquet
Casting: Stéphane Batut
Cenário: Anna Le Mouel
Figurino: Annie Melza Tiburce
Cabelo e maquiagem: Élodie Namani Cyrille e Marie Goetgheluck
Direção de produção: Paul Sergent e Rym Hachimi
Coprodução: Arte France Cinema Pictanovo Hauts-de-France
Parcerias: Agência Nacional para a Coesão Território, Centro Nacional de Cinema e Imagem Animada, Ciclic – Centro Val de Loire, Cofinova 18, Fundo Imagens da Diversidade, Indefilms 10, Região Île-de-France e Região Nouvelle-Aquitaine
Distribuição: Les Films du Losange
Jornalista e escritora brasileira radicada na França, tem contribuições em projetos artísticos e socioculturais a partir de atuações em ONGs, revistas, rádio, televisão, fotografia, assessoria de imprensa e produçāo de eventos. É autora da biografia Esumbaú, Pombas Urbanas! 20 anos de uma prática de teatro e vida (2009) e uma das criadoras do Orgulho Crespo, movimento independente de valorização do cabelo afro iniciado em 2015 com a 1ª Marcha do Orgulho Crespo SP. A iniciativa integra o calendário oficial do Estado de São Paulo com o #DiaDoOrgulhoCrespo, celebrado todo 26 de julho por meio da Lei 16.682/2018.