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Aquele que diz sim / O voo através do oceano, direção musical de Ira Levin e direção cênica de Alexandre Dal Farra, a partir da música de Kurt Weill e texto de Bertolt Brecht (parte do elenco e com Orquestra do Theatro São Pedro)

Crítica

Atravessar o costume

16.5.2023  |  por Artur Kon

Foto de capa: Heloísa Bortz

A “peça didática” (Lehrstück) tem sido um dos pontos centrais de debate em relação à atualidade, diríamos até contemporaneidade (querendo com isso falar da aproximação possível a algo já compreendido e nomeado como “teatro contemporâneo”), do teatro de Bertolt Brecht (1898-1956) – e, com ele, de toda uma ideia de teatro político. Pois de fato o “didatismo” tem sido uma das qualidades mais execradas em boa parte das produções que se pretendem devedoras dessa tradição, reconhecendo na presunção da parte de muitos artistas de ensinar algo à plateia uma forma de autoritarismo, uma presunção de saber que coloca o espectador como ignorante, além de uma pretensão descabida a ter as respostas para os impasses políticos do presente (quando já não parece possível aceitar sem mais as soluções antes oferecidas por concepções teóricas que, também é verdade, de modo algum perderam o poder de análise crítica da realidade).

Por outro lado, há algum tempo pesquisadores têm mostrado que esse gênero teatral inventado por Brecht, cujo nome preferem traduzir aqui no Brasil como “jogo de aprendizagem” (segundo a pesquisadora, professora e tradutora Ingrid Koudela (ECA-USP), nossa maior especialista nesse assunto, não tem nada de “didático” nesse mau sentido: não traz uma pedagogia “bancária”, como dizia o educador e filósofo Paulo Freire (1921-1997), em que se “deposita” um ensinamento do professor no aluno, do artista no espectador. Propõe, antes, um experimento coletivo sempre renovado, pelo qual possamos todos chegar a cada vez a algo como um aprender, ainda que sem conteúdo prévio a ser aprendido. Ou, diriam alguns filósofos contemporâneos que têm pensado a educação (como os estadunidenses Fred Moten, Stephano Harney e Tyson Lewis), mais “estudar” do que aprender. É para isso que serviria a forma esquemática, até mesmo um tanto árida, das peças escritas por Brecht (e que lhes rendeu tão má fama): só assim elas se tornariam de fato maleáveis, passíveis de intervenção por parte de cada grupo de artistas-estudantes que quiser encará-las.

E, na verdade, como suscita ‘Aquele que diz sim / O voo através do oceano’, não seria disso que o autor alemão estaria falando – não tanto da dominação da natureza, mas da superação de uma ‘segunda natureza’, um estado de coisas que é uma construção social, mas que se apresenta como tão imutável que até parece natural? Para o verdadeiro teatro político, aquele feito por Brecht, mas o mais das vezes não pelos seus admiradores e seguidores, não se trata de aprender conteúdos políticos, conscientizar-se das mazelas da sociedade para sair do teatro e tentar transformá-las. O que está em jogo, muito mais, é transformar o teatro, que é parte e sintoma dessa sociedade, que traz em sua estrutura material a mesma ideologia que muitas vezes criticamos apenas no campo do discurso. Essa operação formal (isto é, concreta) interna ao campo artístico antecipa toda emancipação possível na realidade, mesmo quando não advoga explicitamente por ela. O caminho contrário é o de apenas vestir um conformismo ou um conservadorismo com roupagens revolucionárias

Eu mesmo, diga-se de passagem, o fiz junto à minha companhia, a Cia de Teatro Acidental, em nosso último trabalho, com direção de Maria Tendlau: E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis, em que reescrevemos a peça didática A decisão, talvez a mais polêmica de Brecht. Mas ali se tratava de criar uma dramaturgia totalmente nova, sem nenhum compromisso com o texto que o escritor alemão nos deixou. E se não fosse esse o caso, mas sim o de realmente encenar (verbo que já parece trazer diversas dificuldades, uma vez que o “jogo” das Lehrstück era justamente uma experimentação aberta, sem ensaio e sem plateia, diferente do “teatro épico de espetáculo” das peças mais conhecidas do autor) uma dessas peças?

E se, além disso, se tratar de uma ópera?

Pois de fato a música era parte fundamental da concepção de Brecht para um novo teatro à altura de um futuro comunista no qual ele acreditava. Ao mesmo tempo, a instituição da ópera traz consigo muita coisa, uma bagagem repleta de expectativas, hábitos e pressupostos que podem muito bem limitar o espaço de experimentação.

Ora, foi justamente nesse “dispositivo” da ópera que Brecht pretendeu intervir, de modo a “refuncionalizar” essa arte burguesa já praticamente obsoleta. E é o que a encenação em cartaz no Theatro São Pedro este fim de semana alcança, ao mesmo tempo cumprindo com as intenções do autor e avançando as suas próprias, isto é, descobrindo seu próprio modo de fazê-lo para o seu (nosso) próprio tempo.

Não é a primeira direção cênica de Alexandre Dal Farra (provavelmente mais conhecido como dramaturgo, sobretudo nas criações de seu grupo, o Tablado SP – antigo Tablado de Arruar) para uma ópera nesse teatro, mas a terceira de um ciclo que começou com Os sete pecados capitais (em novembro de 2021)e seguiu com A ópera dos três vinténs (setembro de 2022), ambas também de Brecht e do compositor Kurt Weill. Porém, parece que a simplicidade dessas peças didáticas que agora ele enfrenta, mais que a espetacularidade que fez a fama das anteriores (das quais na verdade só pude assistir à primeira), permitiu um tratamento mais complexo e mais maduro, tematizando e problematizando, sem a necessidade de gestos supostamente radicais de recusa iconoclasta, a própria ópera.

O primeiro e principal sinal dessa operação é o cenário, que faz do palco desse tradicional teatro paulistano uma sala burguesa, ou na verdade mais que burguesa, pensando no que é a burguesia no Brasil: um burguês europeu que está mais para aristocrático. Escolha que certamente causará estranhamento para qualquer um que conheça minimamente as duas histórias a que viemos assistir, ou que apenas tenha lido as sinopses. Pois nenhuma das duas peças se passa em uma sala, muito menos uma dessas: na primeira, deveríamos ver uma expedição através das montanhas; na segunda, como o próprio nome basta para sabermos, um voo através do oceano.

De fato, quando a música começa, percebemos que aquele cenário de drama burguês não será utilizado, ao menos imediatamente: é da plateia que cantam os atores durante toda a primeira parte (apresentando-nos o menino que decide acompanhar seu professor em uma expedição para buscar do outro lado das montanhas remédio para sua mãe doente), como que ignorando o que há no palco. Mesmo quando lá subirem enfim os protagonistas da ação, é na plateia que permanecerá o coro, como se pertencessem ao público – ou como se o público pertencesse ao coro (operação fundamental do “teatro sem plateia” almejado por Brecht, e reforçada pelo uso de uma câmera ao vivo que projeta no palco a imagem dos espectadores justamente ao pretender filmar os coreutas). E aqueles que ocupam a cena o fazem de modo um tanto canhestro, superficial e desajeitado – o que aqui de modo algum se coloca como crítica: essa resistência em habitar a sala ali montada é absolutamente expressiva e coerente.

É como se, na verdade, fosse aquela a montanha que se tem que transpor. Mas também é outra coisa: porque é ali em cima que surge o dilema central da peça, o problema do “grande costume”. Pois o menino é incapaz de realizar a difícil travessia (como o professor já o alertara antes da partida), perde as forças e se torna um empecilho para a continuidade da missão. O “grande costume” diz que ele deve ser jogado de um despenhadeiro para que os demais não sejam obrigados a retornar; diz ainda que ele deve estar “de acordo” com esse fim (“o mais importante a aprender é estar de acordo”, diz a música que abre a peça e que retornará na conclusão). Mas o “grande costume” também é aquilo que sempre se fez e que por isso se deseja continuar fazendo, mesmo que pareça absurdo. Como a própria ópera.

Heloísa Bortz Parte do elenco de ‘Aquele que diz sim / O voo através do oceano’, direção musical de Ira Levin e direção cênica de Alexandre Dal Farra, a partir da música de Kurt Weill e texto de Bertolt Brecht, com Orquestra do Theatro São Pedro; o trabalho cumpriu temporada de 9 a 14 de maio

E ele, e eles, dizem SIM. Um SIM que fica projetado um tempo depois do fim dessa primeira peça, enquanto o cenário é preenchido com ainda mais elementos realistas dessa casa para prepará-la para a segunda.

Nesse sentido, é muito significativo que não assistamos em seguida ao Aquele que diz não, como alguns de nós poderíamos esperar – aqueles que estão mais habituados com a obra dramatúrgica de Brecht do que com a tradição operística, e portanto não sabem (era o meu caso até ler o programa da montagem) que esse outro texto, que ficou indissociável do primeiro a ponto de vermos o conjunto como uma única obra, só foi escrita um tanto depois, a partir da reação negativa de parte da esquerda e positiva de uma direita cristã, que viram no tema do Acordo um elogio conservador à obediência. Mas Aquele que diz não nunca foi musicado.

De todo modo, mesmo que não seja propriamente uma escolha, mas algo imposto por circunstâncias externas: eles não vão dizer não. Mas não basta dizer sim. Então o que resta a fazer?

Navegar, atravessar. É o que ensina a outra peça didática que compõe o programa, O voo através do oceano. “Através”e não “sobre”, como na tradução anterior mais conhecida, e que literalmente poderia ser vista como mais correta, pois o avião está acima e não dentro do oceano, mas que aqui não ajuda, pois não se trata de um sobrevoo e, sim, de um mergulho e atravessamento – gesto que parece muito mais produtivo para uma atitude crítica no tempo presente do que o “distanciamento” que associamos a Brecht (mas que não é a única nem melhor tradução para o famoso Verfremdungseffekt).

Assistimos ao primeiro voo transatlântico da História, entre Nova York e Paris, por um solitário aviador em seu “aparelho”. As condições meteorológicas não são ideais. O programa nos diz que “a tese da peça é a dominação da natureza pelo homem”, mas talvez as coisas sejam um pouco mais complexas. O piloto tem que vencer a natureza, mas não pode vencer a natureza. Não é possível recusá-la. Como dizem para ele (a nevasca e o vento e tudo o mais, aqui transformadas em personagens encarnadas pelo coro): estávamos aqui há mil anos, quando nenhum ser ousava nos enfrentar, e ainda estaremos aqui daqui mil anos, quando você já tiver morrido há muito tempo. Numa escala de tempo menor, de meros séculos, não seria esse o caso da ópera (que, a gente nunca consegue esquecer enquanto assiste, comanda tudo no espetáculo: o tempo já está dado pela música, o uso do elenco precisa corresponder às vozes necessárias para cada parte, a própria exclusão do Aquele que diz não – que tem tantas consequências para uma interpretação da obra – já estava pré-determinada pela ausência de uma partitura etc.)?

E, na verdade, não seria disso que o autor alemão estaria falando – não tanto da dominação da natureza, mas da superação de uma “segunda natureza”, um estado de coisas que é uma construção social, mas que se apresenta como tão imutável que até parece natural? Para o verdadeiro teatro político, aquele feito por Brecht, mas o mais das vezes não pelos seus admiradores e seguidores, não se trata de aprender conteúdos políticos, conscientizar-se das mazelas da sociedade para sair do teatro e tentar transformá-las. O que está em jogo, muito mais, é transformar o teatro, que é parte e sintoma dessa sociedade, que traz em sua estrutura material a mesma ideologia que muitas vezes criticamos apenas no campo do discurso. Essa operação formal (isto é, concreta) interna ao campo artístico antecipa toda emancipação possível na realidade, mesmo quando não advoga explicitamente por ela. O caminho contrário é o de apenas vestir um conformismo ou um conservadorismo com roupagens revolucionárias.

Não é possível se colocar acima dessas forças milenares, recusá-las simplesmente. É preciso contar com elas, considerá-las, em alguma medida aceitá-las, para atravessá-las. O que de modo algum é sinal de conformismo. De novo o modo de ocupação do espaço (da sala burguesa) é a chave. Mas os corpos já não se colocam de fora, como “por cima” do cenário, mas entram realmente nessa sala, apesar de em momento algum pertencerem ali, com os figurinos coloridos e brilhantes desses aventureiros contemporâneos. De fato um pouco como invasores. Ali eles montam acampamento (literalmente: armam uma rede e uma barraca no palco do Theatro São Pedro), exploram, investigam. O tempo todo parecem ao mesmo tempo enfadados (como boa parte do coro demonstra em gestos, posturas corporais e expressões faciais) e curiosos (afinal não cessam de, munidos da câmera que faz a projeção de vídeo ao vivo, observar os elementos mais mínimos dessa cenografia, e inclusive intervir neles, comendo as balas de uma bomboniere e quebrando com um martelo um pires e uma xícara).

Quando o protagonista enfim vence, retorna a projeção: SIM. Só a aceitação daquilo que precisa ser superado leva à vitória.

*

Nesta crítica, obviamente tenho uma perspectiva bem delimitada. Não tenho condições de avaliar esse trabalho do ponto de vista musical. Mas ele me diz muito sobre o estado atual das coisas no campo do teatro.

Num momento em que o teatro mais sintonizado com as questões candentes do presente toma as chamadas pautas identitárias para promover uma onda “performativa” (na qual se pretende que o discurso, e sobretudo a tomada de voz por sujeitos antes silenciados, sejam imediatamente transformadores de um estado de coisas insuportável), Alexandre Dal Farra parece assumir seu “lugar de fala”, isto é, a perspectiva de um homem branco heterossexual (etc. etc., para citar seu trabalho anterior, Verdade). E isso se aproximando do que de mais obsoleto e eurocêntrico e autoritário pode haver: a ópera.

Mas isso não é nenhum passo atrás. Trata-se de atravessá-la por dentro.

É como se ele descobrisse, em 2023, o contexto para criar a coisa mais parecida possível com o Regietheater alemãodos anos 90, em que a fidelidade aos clássicos da dramaturgia europeia se tornou meio para uma criação absolutamente radical e iconoclasta por parte de grandes encenadores. E vice-versa: apenas essa atitude irresponsável e até agressiva com as grandes obras é uma verdadeira fidelidade ao que elas têm de melhor e mais verdadeiro.

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Aquele que diz sim / O voo através do oceano

Temporada lírica 2023 da Orquestra do Theatro São Pedro (Rua Barra Funda, 171, Barra Funda, São Paulo, tel. 11 3221-7326)

O ensaio aberto aconteceu em 9 de maio (acompanhado por Artur Kon) e as récitas, entre 11 e 14 de maio

14 anos

70 minutos

Heloísa Bortz Aqueles que ocupam a cena o fazem de modo um tanto canhestro, superficial e desajeitado – o que aqui de modo algum se coloca como crítica: essa resistência em habitar a sala ali montada é absolutamente expressiva e coerente, escreve Kon

Ficha técnica

De Kurt Weill (música) e Bertolt Brecht (texto)

Ira Levin, direção musical da Orquestra do Theatro São Pedro

Alexandre Dal Farra, direção cênica e concepção cenográfica

Camila Refinetti e Stéphanie Fretin, cenografia

Wagner Antônio, iluminação

Awa Guimarães, figurino

Tiça Camargo, visagismo

Aquele que diz sim

[ópera escolar em dois atos, com libreto de Bertolt Brecht, com colaboração de Elisabeth Hauptmann, adaptado da versão inglesa da peça Taniko, de Arthur Waley]

Elenco:

Manuela Freua (Menino)

Luciana Bueno (A Mãe)

Vitor Bispo (O Professor)

Mar Oliveira (1º estudante)

Vitorio Scarpi (2º estudante)

Rafael Siano (3º estudante)

O voo através do oceano

[rádio-cantata em 16 números curtos, com texto de Bertolt Brecht e Elisabeth Hauptmann]

Elenco:

Flávio Leite, (O Aviador)

Vitor Bispo (Barítono)

Anderson Barbosa (Baixo)

Coro:

Caroline Brito da Paixão, soprano

Cintia Cunha, soprano

Daniela Apolinário, soprano

Larissa Guimarães, contralto

Verônica Tavares, contralto

Bruno Costa, contratenor

Juan Becerra, tenor

Ramon Lisboa, tenor

Rodrigo Morales, tenor

Ádamo, baixo

Fúlvio Souza, baixo

Renan Messina, baixo

Artista de teatro e pesquisador. Fundou a Cia de Teatro Acidental, na qual trabalha como ator e dramaturgo. Publicou a ‘Trilogia dos afetos políticos’ (Editora Javali, 2022). Mestre e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo; a dissertação ‘Da teatrocracia: estética e política do teatro paulistano contemporâneo’ saiu pela Annablume (2017); já a tese (no prelo) analisa e traduz os textos teatrais de Elfriede Jelinek, escritora austríaca ganhadora do Nobel. Realiza pesquisa de pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP).

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