ANOTA
11.9.2025 | por Teatrojornal
Foto de capa: Daisy Serena
O teatro anda afeiçoado aos romances de Maria Valéria Rezende. Carta à rainha louca (Alfaguara, 2019), por exemplo, ganha uma segunda adaptação em menos de dois anos. Em São Paulo, o musical de mesmo nome, produção inédita do Núcleo Toada, faz temporada no Sesc Bom Retiro entre 12 de setembro e 12 de outubro. Um projeto idealizado pela atriz, cantora e preparadora vocal Lilian de Lima, com dramaturgia de Bárbara Esmenia, direção de Patricia Gifford, direção musical de Fernanda Maia, também responsável por composições e arranjos, e um coro de 17 vozes em cena.
Já o monólogo Isabel das Santas Virgens e sua Carta à rainha louca (2023), uma produção do Rio de Janeiro, foi atuado, produzido e adaptado por Ana Barroso, sob direção de Fernando Philbert, e ficou em cartaz no Sesc Pinheiros em 2024.
O livro O voo da Guará Vermelha (2005), por sua vez, caiu nas graças da Cia. do Tijolo com a peça Guará Vermelha (2023), exibida no Sesc Avenida Paulista naquele ano, sob direção de Dinho Lima Flor, dramaturgia de Fabiana Vasconcelos e demais criadores, envolvendo nove atores e quatro musicistas.
Dona de biografia que daria um livro, um filme ou, claro, uma peça, atualmente às voltas com a cegueira no olho esquerdo e a catarata no direito, a autora de 82 anos nasceu em Santos (SP), viveu no sertão pernambucano, bem como no Recife e em Olinda, depois mudou-se para o agreste paraibano, em Guarabira, até pousar em João Pessoa a partir de 1989.
Esse coral poderoso, com uma equipe artística grande ao redor, é composto por pessoas com diferentes idades, com variadas experiências em teatro, vindas de diferentes territórios, numa diversidade étnico-racial e de gênero, de maneira a enfrentar a beleza do desafio de formar um coro. Quisemos evocar a coletividade, trazendo o sentido de uma rede, de uma aliança, de uma força, de um certo sentido de comunitarismo, porque é uma história de opressão (Patricia Gifford, diretora)
Com estudos formais em sociologia, pedagogia e língua e literatura francesa, Rezende tornou-se educadora popular, conviveu com Paulo Freire (1921-1997), atuou em diferentes regiões do Brasil e no exterior. Consta que jogou bola com Pelé na adolescência, na mesma cidade natal em que conheceu aquela com a qual a amizade desaguaria, décadas depois, no livro de memórias Patrícia Galvão: Pagu, militante irredutível (Rosa dos Tempos, 2024), narrativa memorialística acerca da destemida Patrícia Galvão (1910-1962), escritora, poetisa, desenhista, ilustradora, diretora teatral, agitadora cultural, crítica literária, jornalista, tradutora, ativista política e militante operária. Também amiga de Frei Betto, das primeiras pessoas a incentivá-la a publicar seus escritos. Encontrou Fidel Castro em Havana, assim como proseou com Carlos Drummond de Andrade ao longo de uma viagem de ônibus, dentre inúmeras anedotas vivenciadas.
“Estudou em um colégio de freiras e nunca pensou em se tornar escritora porque se encantou com as missões feitas pelas religiosas que eram suas professoras. Na faculdade, uniu-se a movimentos da juventude católica, conheceu a Teologia da Libertação e, em 1965, virou noviça. Faz parte da Congregação de Santo Agostinho, de religiosas educadoras de meninas e que não precisam usar hábito”, relata a jornalista e dramaturga Marta Góes em perfil publicado na revista Marie Claire em 2016. Entre inúmeros feitos, portanto, a autora multipremiada estreou no ofício de escritora em 2001, aos 59 anos, quando lançou Vasto mundo (Beca), romance que abriu o leque de sua obra a contos, crônicas e literatura infantil e juvenil, além de traduções. Ela coidealizou o Mulherio das Letras, movimento e coletivo feminista literário nacional e internacional que reúne escritoras, editoras, ilustradoras e outras profissionais da área do livro, criado em 2017 para dar visibilidade à participação das mulheres na literatura, questionar a desigualdade e promover o intercâmbio entre autoras brasileiras e estrangeiras.
Quando lançou Carta à rainha louca, era como se cumprisse um compromisso assumido havia mais de 40 anos. “Na década de 1980, dediquei-me muito à pesquisa histórica sobre as mulheres no período colonial na América Latina e depois especialmente no Brasil. Em 82, encontrei, no Arquivo Ultramarino de Lisboa, uma carta escrita de próprio punho (o que era raro na década de 1750) por uma mulher que se defendia, com ricos argumentos e muita ironia, da acusação de tentar fundar um convento clandestino, sem ordem da Coroa, o que era ‘crime’, passível de punição, especialmente na região das Minas, onde a presença de ordens religiosas, masculinas ou femininas, era proibida. Não achei, entretanto, nenhuma outra referência a ela, nem os documentos de conclusão do processo. Fiquei me sentindo sua irmã, e como que responsável por dar-lhe voz. Finalmente, percebi que, com as hipóteses que formulei para pesquisar e tudo o que havia imaginado, a melhor maneira de fazer-lhe alguma justiça era escrever um romance. Para pesquisa histórica eu já tinha muita coisa acumulada. Mas ao optar pela forma de carta, pois foi assim que a descobri, tive de enfrentar o desafio de escrever numa linguagem plausível para o século 18 e legível no 21”, declarou Rezende em entrevista a Sandro Retondario, do jornal Rascunho, em 2019.
A nova montagem
O espetáculo do Núcleo Toada, formado em 2006, conta a história de Isabel das Santas Virgens, personagem inspirada em uma mulher real, Isabel Maria. Isolada num convento em Olinda, escreve uma carta à Rainha Maria I, de Portugal, conhecida como Rainha Louca, relatando sua trajetória e denunciando as violências cometidas pelos homens no período do Brasil colônia.
No fim do século XVIII, em Minas Gerais, a protagonista fundou uma comunidade com o objetivo de acolher mulheres pobres, sem família, sem renda e sem destino, conhecidas como “sobrantes”, já que essa população era constantemente vítima de violência. No entanto, o ato incomodou os poderosos e ela foi presa no Recolhimento da Conceição, em Olinda, sob a falsa acusação de tentar criar um convento feminino clandestino.
Encarcerada por cerca de três anos, ela acreditava que sua libertação viria através do poder das palavras. Por isso, escreveu uma carta à rainha D. Maria I (1734-1816), relatando sua história e os abusos praticados pelos homens da Coroa contra a população vulnerável. “Somente uma outra mulher seria capaz de entender suas dores. E, sendo a rainha uma mulher com autoridade e poder, Isabel acreditava que ela poderia tirá-la da prisão”, comenta Lima.
Para a diretora Patricia Gifford, cofundadora da Cia São Jorge de Variedades, há 27 anos, e professora na Escola Livre de Teatro de Santo André, o espetáculo Carta à rainha louca soma outras presenças à da narradora que conta a sua vida no livro e “consegue dar protagonismo às mulheres pobres, enclausuradas em conventos, às mulheres escravizadas, às meninas de famílias ricas usadas como moeda de troca em casamentos arranjados e tantas que foram apagadas da história”. Como o grupo mantém uma relação forte com a música, a ideia de ocupar o palco com um coro potente logo começou a tomar forma.
No coro cênico, além da própria diretora musical Fernanda Maia, estão Carla Vitor, Cida Portela, Eli Weinfurter, Joice Jane Teixeira, Legina Leandro, Márcia Fernandes, Marta Mendes, Priscila Ortelã, Rebeka Teixeira, Rommaní Carvalho, Simone Julian, Uriã de Barros, Wilma Elena, Giullia Assmann e Mayara Alencar.
“Esse coral poderoso, com uma equipe artística grande ao redor, é composto por pessoas com diferentes idades, com variadas experiências em teatro, vindas de diferentes territórios, numa diversidade étnico-racial e de gênero, de maneira a enfrentar a beleza do desafio de formar um coro. Quisemos evocar a coletividade, trazendo o sentido de uma rede, de uma aliança, de uma força, de um certo sentido de comunitarismo, porque é uma história de opressão”, afirma Gifford.
Em relação à sonoridade, além das próprias vozes como instrumentos, estão presentes em cena um contrabaixo, violoncelo, piano elétrico, sanfona, violino, rabeca, enfim, diversos instrumentos de sopro e percussão. “Fernanda se preocupou em remeter tanto aos estilos musicais comuns do século XVIII quanto aos ritmos mais contemporâneos e de domínio público, como em uma cena linda em que um coro de lavadeiras entoa uma cantiga de roda antiga, cantada até os dias de hoje”, pontua Lima.
O Núcleo Toada iniciou trajetória quando estreou o show ‘Uma toada para João e Maria, o amor segundo Chico Buarque’ (2006), movido pelo desejo de montar espetáculos que unissem duas linguagens artísticas, a música e o teatro. Vieram trabalhos como o musical ‘Pagu, anjo incorruptível’, o show ‘Pagu do peito desabotoado’ e a ‘Desmontagem COR DE CHUMBO’, que revisita a primeira peça teatral montada pelo Toada.
Bate-papo
A temporada no Sesc Bom Retiro inclui a ação ‘Do romance ao palco: bate-papo sobre Carta à rainha louca’, dia 4 de outubro, sábado, 16h, com a escritora Maria Valéria Rezende e mediação de Lima e Gifford. A conversa abordará a adaptação da obra para os palcos, a trajetória da escrita do livro, o processo de montagem do espetáculo e a reflexão sobre a condição das mulheres no Brasil colônia e suas ressonâncias ainda nos dias de hoje. Dura duas horas e a entrada é livre, no teatro da unidade, sem inscrição ou retirada de ingressos.
Tempos depois do lançamento do livro em pauta, Rezende soube que o acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, visitado no início dos anos 1980 e no qual encontrou três cartas e um processo incompleto contra Isabel Maria, foi progressivamente digitalizado e, logo, ela poderia ter pesquisado a documentação on-line antes de mergulhar a fundo na escrita mais de três décadas depois. “Mas a história já estava inventada na minha cabeça. Então deixei para ler o resto da história real só agora, com a ‘minha’ carta pronta e publicada! Espero que a verdadeira Isabel Maria me perdoe!”, rogou a autora ao Rascunho.
[Este conteúdo tem apoio do Sesc São Paulo]
Serviço:
Carta à rainha louca
Núcleo Toada
De 12 de setembro a 12 de outubro de 2025.
Sexta e sábado, 20h, e domingo, 18h. Sessão extra no dia 10 de outubro (sexta), 15h.
Acessibilidade: a sessão de 4 de outubro (sábado) contará com audiodescrição; a sessão 5 de outubro (domingo), com interpretação em libras.
Sesc Bom Retiro (Alameda Nothmann, 185, Campos Elíseos, tel. 11 3332-3600.
120 minutos | 14 anos | Acessibilidade | 291 lugares.
R$ 60 (inteira), R$ 30 (meia-entrada) e R$ 18 (credencial plena).
Disponível para compra on-line pelo link: https://www.sescsp.org.br/programacao/carta-a-rainha-louca/. Ou direto nas bilheterias das unidades.
Ficha técnica:
Adaptação da obra literária Carta à rainha louca, de Maria Valéria Rezende
Idealização: Lilian de Lima e Núcleo Toada
Dramaturgia: Bárbara Esmenia
Direção geral e encenação: Patricia Gifford
Direção musical, composições e arranjos: Fernanda Maia
Atriz-cantora: Lilian de Lima
Coral cênico: Carla Vitor, Cida Portela, Eli Weinfurter, Joice Jane Teixeira, Legina Leandro, Márcia Fernandes, Marta Mendes, Priscila Ortelã, Rebeka Teixeira, Rommaní Carvalho, Simone Julian, Uriã de Barros, Wilma Elena.
Musicistas: Fernanda Maia, Giullia Assmann, Márcia Fernandes, Mayara Alencar, Rebeka Teixeira, Rommaní Carvalho, Simone Julian e Uriã de Barros.
Direção de arte: Ouroboros Produções Artísticas
Adereços, cenário e figurino: Carol Gracindo e Thaís Dias
Costureiras: Duda Viana e Elza Dias
Aderecista: Helena Menezes
Assistente de produção artística: Felipe Dias
Criação e operação de luz: Laiza Menegassi
Desenho de som: LABSOM – Julia Mauro (JUMA) e Kleber Marques
Operação de som e microfonação: Julia Mauro (JUMA) e Grazi Kayapó
Técnica de palco e contrarregra: Katiana Aleixo
Produção: Plataforma – Estúdio de Produção Cultural
Direção de produção: Fernando Gimenes
Assistência de produção: Priscila Ortelã e Jeniffer Rosseti
Designer gráfica: Raquel Rib
Fotos: Daisy Serena
Redes sociais: Mayhara Ribeiro
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Carol Zeferino e Daniele Valério Projeto: Núcleo Toada e Cooperativa Paulista de Teatro