9.9.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2006
TEATRO
Canal exibirá 13 dos cerca de 30 teleteatros que o coordenador do Centro de Pesquisa Teatral dirigiu na década de 70
Programas selecionados incluem “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues; atores, críticos e pesquisadores comentarão as histórias
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O diretor de teatro Antunes Filhos também foi um homem de televisão, veículo contra o qual hoje pragueja ao ver atores com quem trabalhou atuando em novelas (caso de Luís Melo).
A face televisiva do diretor poderá ser vista na série “Antunes em Preto e Branco”, que a TV Cultura promete levar ao ar até o final do ano -dia e horário de exibição a definir.
Serão apresentados 13 dos cerca de 30 teleteatros que Antunes dirigiu e adaptou para a emissora, na década de 70.
Todos os programas serão apresentados na íntegra. Entremeando os três blocos, haverá depoimentos de artistas que participaram dos projetos ou de críticos e pesquisadores.
Os teleteatros foram produzidos originalmente em preto e branco. A Folha teve acesso a um deles, “A Casa Fechada” (1975), adaptado da peça de Roberto Gomes (1882-1922).
No trabalho, é possível entrever também o olhar cinematográfico de Antunes. A fotografia explora a atmosfera de Paranapiacaba (SP), a locação escolhida, com a neblina nas ruas, a arquitetura inglesa nos casarões e a estação de trem.
A séria é rara oportunidade para assistir, por exemplo, às atuações de Jofre Soares, Karin Rodrigues, Jairo Arco e Flexa.
Numa cidade interiorana, os moradores estão em polvorosa com o caso de uma mulher que trai o marido e é obrigada a fugir. Tempos depois, o casal, os três filhos e um delegado estão de volta à casa desabitada. Enquanto decidem o rumo de suas vidas, trancafiados, do lado de fora a vizinhança maldiz a adúltera.
Entre os títulos selecionados pelo núcleo de dramaturgia da TV Cultura, constam ainda “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, com Lilian Lemmertz e Edwin Luisi no elenco, e “A Escada”, de Jorge Andrade, com Rodolfo Mayer, Antônio Fagundes e outros.
São Paulo, quinta-feira, 07 de setembro de 2006
TEATRO
Grupo, que completa sete anos, une lendas urbanas à “Odisséia”, de Homero
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Quando o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos lançou o projeto de intervenções artísticas “Urgência nas Ruas”, em 2001, as ruas do centro de São Paulo eram lidas como um “mar sem fim”. Ao tomar a “Odisséia”, de Homero, como referência para o seu novo espetáculo, a diretora Claudia Schapira descobriu que a metáfora era mais palpável do que imaginava. Na Grécia Antiga, todo pedaço de terra equivalia à propriedade privada e o único espaço neutro era o mar, para onde as pessoas erravam em busca de liberdade -isso antes que surgisse a ágora, a praça do povo.
Navio negreiro
A partir deste Dia da Pátria, os espectadores, segundo Schapira, embarcam num “navio negreiro”, nas ondas de “Frátria Amada – Pequeno Compêndio de Lendas Urbanas”. A reunião de cidadãos gregos que faziam sacrifícios aos deuses era chamada de frátria. Schapira, que também assina o roteiro, costura com sua equipe histórias de personagens da metrópole, autodenominados “zés-ninguém”.
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Sujeitos como o migrante nordestino que revê a volta da selva de pedra; a artista que foi trabalhar como balconista no exterior e viu que seu lugar era aqui; e o detento que se recusa a fazer acordo com o diretor de presídio. Todos refletem a respeito de outras possibilidades em suas vidas.
Com direção musical do DJ Eugênio Lima, direção de arte de Julio Dojcsar e 13 “atores-Mcs” em cena (teatro épico casado com cultura hip hop), o espetáculo faz parte da mostra de aniversário do grupo, “Bartolomeu, 7 Anos Nele Deu!”. Até dezembro, serão reapresentadas duas peças do repertório: “Acordei Que Sonhava” (27/10 a 17/11) e “Bartolomeu -Que Será Que Nele Deu?” (24/ 11 a 15/12). Estão previstos ainda lançamentos de livro, documentário e CD sobre o projeto “Urgência nas Ruas”, além de uma exposição e uma radionovela. Tudo por conta do Programa de Fomento ao Teatro.
2.9.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, sábado, 02 de setembro de 2006
TEATRO
Comemorando 27 anos, grupo monta “Camaradagem”, sobre embate nas relações homem-mulher
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Protagonista de três casamentos malsucedidos, o sueco Johan August Strindberg (1849-1912) tingiu boa parte de seus contos e peças com a misoginia, aversão às mulheres. Vide “Senhorita Júlia”, em que uma aristocrata apaixona-se por um criado e termina se suicidando. Ou “Camaradas”, em que uma mulher assume papel machista -montagem inédita no Brasil que o grupo Tapa apresenta a partir de hoje no Viga Espaço Cênico.
Na tradução de Rafel Rabelo, optou-se por “Camaradagem”, já que o título original é de cunho mais ideológico em português. É camaradagem no sentido da relação aberta a que se propõe o jovem casal Axel (interpretado por Tony Giusti) e Bertha (Patricia Pichamone).
Eles são pintores. Metida em terno e gravata, Bertha se passa por amigo de Axel, sob consentimento deste, como forma de conseguir espaço no mercado de trabalho. A “encenação” estremece quando ambos disputam vaga num salão de pintura. A quem caberá mais poder? Em certa medida, Bertha é a antípoda de Nora, aquela que bate as portas e vai-se embora do casamento em “Casa de Bonecas”, do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), com quem Strindberg rivalizava.
Segundo o diretor Eduardo Tolentino de Araújo, 51, “Camaradagem” é politicamente incorreta em vários sentidos. “Mostra como a sociedade suaviza algumas questões, não bota o dedo em feridas, não dá nome aos bois. Esse embate entre masculino e feminino vem desde as cavernas”, afirma. Paralelamente à boemia dos intelectuais e às noitadas de absinto, Strindberg amplia os estados interiores a outras relações decadentes, como a do militar com sua “Amélia”. São 12 atores no tablado do Viga, onde a platéia fica mais próxima da cena. Espaço propício ao “teatro íntimo” que Strindberg defendeu até em manifesto.
Nascido no Rio há 27 anos, o Tapa acaba de completar duas décadas de permanência em São Paulo, onde constrói elogiado repertório. Ergue “Camaradagem” com recursos do Programa de Fomento (município) e Prêmio Estímulo (Estado).
1.9.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, sexta-feira, 01 de setembro de 2006
TEATRO
Diretor da companhia alemã Volksbühne inicia turnê por seis cidades do país
“O Teatro é o esporte do pensamento”, diz Castorf; “Na Selva das Cidades” será apresentada hoje e amanhã no Sesc Pinheiros, em SP
VALMIR SANTOS
Da Reportagem local
O diretor alemão Frank Castorf age um pouco como os personagens de “Na Selva da Cidade”: aprecia dizer não. Na peça do dramaturgo também alemão Bertolt Brecht (1898-1956), um bibliotecário se recusa a “vender” a um negociante a sua opinião negativa sobre determinado romance.
É o “parti pris” algo surrealista do texto que se revelará mais complexo nas relações humanas sob os vetores afetivos, políticos e sociais. Isso tanto no contexto da Chicago de 1912, centro financeiro em que se passa a ação original, quanto na geografia indefinida da releitura de Castorf, que cabe em qualquer metrópole de 2006.
Em nova passagem pelo Brasil com a cia. Volksbühne (da qual se viu “Estação Terminal América” no ano passado, livríssima adaptação de “Um Bonde Chamado Desejo”, de Tennessee Williams), Castorf traz a montagem de “Na Selva das Cidades” que estreou em fevereiro na sede do teatro estatal, na antiga Berlim Oriental -espaço inaugurado em 1914 e construído por uma associação de operários. No Brasil, a turnê passa por seis cidades, começando por São Paulo (há apresentações no Sesc Pinheiros, de hoje a domingo).
Castorf já disse não, por exemplo, a um teatro que dirigia e do qual foi demitido no início dos anos 80, por causa de um espetáculo politicamente incorreto. Mais recentemente, resistiu apenas um ano como diretor artístico do Ruhrfestspiel, um festival internacional do interior alemão, sob alegação de “afastar o público”.
Deu tempo de levar o projeto “Os Sertões”, do grupo Oficina Uzyna Uzona, que depois fez temporada no próprio Volksbühne.
“Teatro é o esporte do pensamento”, diz Castorf, 55, que recebe a Folha no hotel em que está hospedado.
Saudade da morte
Como Zé Celso, que dirigiu “Na Selva das Cidades” em 1969, ele destaca a antevisão do jovem Brecht -é sua terceira peça- quanto aos regimes de exceção e à deterioração da vida, em vários aspectos, na cotação do sistema capitalista.
E nem é o Brecht, cujo cinqüentenário de morte é lembrado este ano, do paradigma da luta de classes, do contorno épico que vai caracterizar a fase, por assim dizer, mais madura de sua obra. Nos anos 20, segundo Castorf, sua dramaturgia soava lírica, sob influências do dadaísmo e do jazz, em meio à lama, à solidão, à selva, ao inferno de Rimbaud.
Anos depois, Brecht dizia que “Na Selva…” embutia alguma “saudade da morte”. “Ele assimilou e vomitou tudo por meio da escrita.
Ao terrorismo político, contestou com o terrorismo poético, a independência de pensador que praticou a vida toda.” No enredo, o bibliotecário Shlink e o comerciante Garga entram numa espiral de discussões que passa por valores materiais e imateriais.
Eles até convivem, conhecem o campo de um e de outro, há inclusive uma sugestão homoerótica, mas o ringue é inevitável.
“O Garga entra com família, o Shlink com a riqueza. Um sabe que vai perder a família e o outro sabe que vai perder o dinheiro, num comportamento de quem é viciado em jogo, um jogo de forças”, diz o diretor.
A turnê, que incorpora técnicos e atores brasileiros, faz parte do programa Copa da Cultura (MinC, Instituto Goethe e Sesc-SP) e segue para Santos (Sesc local, 5 e 6/9), Salvador (Teatro Castro Alves, 9 e 10/9), Guaramiranga, no CE (Festival Nordestino de Teatro, 15/9), Fortaleza (Teatro José de Alencar, 18/09) e Brasília (Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro, 21 e 22/ 9).
Na selva das cidades
Quando: hoje e amanhã, às 21h; dom., às 18h
Onde: Sesc Pinheiros – teatro (r. Paes Leme, 195, tel. 3095-9400)
Quanto: R$ 20
28.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 2006
TEATRO
Peça da companhia do diretor inglês mostra luta de imigrante por passaporte
Protagonista lembra que, além de africanos, famílias da Europa Oriental e do Oriente Médio também sofrem ao mudar de país
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Na arte, criar formas simples e destiná-las com significação ao outro é sempre um desafio.
Peter Brook submete-se a ele com mais profundidade desde os anos 1970, quando viajou à África com o seu Centro Internacional de Criação Teatral.
O espetáculo “Sizwe Banzi Está Morto” -que faz sessões de amanhã a quinta-feira, no Sesc Anchieta, em São Paulo, com ingressos esgotados- é exemplar de como a riqueza da cultura e a resistência popular daquele continente influenciam o trabalho do encenador inglês -que também já se arriscou na direção cinematográfica (em “Encontro com Homens Notáveis” e “O Mahabharata”), e na literatura (“Fios do Tempo”, “A Porta Aberta”). Desta vez, o londrino Brook, 81, não vem ao Brasil. Desde 2000, suas produções recentes são vistas no RS, MG, SP e RJ.
Nelas, as cenas são como que conformadas a uma arena, mesmo quando em platéia frontal, com pleno potencial para envolver a platéia. Era assim em “O Traje” (Le Costume), “A Tragédia de Hamlet” e “Tierno Bokar”. A ênfase numa voz narradora acentua ainda mais a noção de uma roda de contadores de história, símbolo da transmissão oral africana.
Em “Sizwe Banzi”, dá-se igual despojamento. Há poucos objetos em cena. São mínimas as variações de luz. Para ter idéia, no Festival de Avignon, no mês passado, o espetáculo foi encenado ao ar livre.
Dois africanos francófonos representam a história de um trabalhador imigrante às voltas com a segregação racial do Estado nos anos 70.
Não à toa, a peça foi escrita em 1976, ano do levante estudantil contra o regime. E a seis mãos -pelo trio sul-africano Athol Fugard, John Kani e Winston Ntshona. O entrecho político é a obrigatoriedade de passaporte para circular nos guetos. O drama de Banzi é que só obterá o documento e trabalhar para sustentar sua família se provar que está morto.
A perda de identidade é retratada na interpretação de Habib Dembélé, o “Guimba”, ator e dramaturgo nascido no Mali, e Pitcho Womba Konga, cujo congolês radicado na Bélgica.
Konga, que vive Banzi, é cantor de hip hop desde os anos 1980 e já lançou álbuns independentes. Nos últimos anos, segue em carreira paralela com a companhia de Brook.
“Naturalmente, a peça tocou-me profundamente, porque também faz parte da minha história”, diz Konga à Folha. “Os imigrantes viajam para encontrar um lugar melhor, mas, às vezes, enfrentam condições muito difíceis. Isso não diz respeito somente aos povos negros da África mas também à Europa Oriental, ao Oriente Médio.”
Segundo Pitcho, a peça ensina como lidar com a diferença. “O que você deve fazer para ser aceito, para ter boas condições de vida. Felizmente, o apartheid não acontece sempre, o que não significa que os problemas tenham desaparecido.”
26.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, sábado, 26 de agosto de 2006
TEATRO
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O amor homossexual aflora em pleno campo de concentração nazista. “Bent”, peça que o norte-americano Martin Sherman escreveu em 1979 e já foi adaptada para o cinema (Sean Mathias, 1997), ganhou montagem carioca no ano passado. E o público de São Paulo pode assisti-la no Sesc Avenida Paulista, onde estreou ontem.
Uma das cenas mais citadas da obra é a de sexo entre os personagens Max (Augusto Zacchi), preso ao tentar fugir para Berlim, pela condição de judeu, e Horst (Gustavo Rodrigues), perseguido por assinar um manifesto em favor dos direitos dos homossexuais. Max, um “bon vivant” trapaceiro, tem sua identidade transformada (ou descoberta). Obrigado por policiais a espancar seu namorado até a morte, quando detido, ele reafirmará sua sexualidade em condições subumanas.
“A imagem que tenho da peça é a da flor de lótus que nasce num lugar cinza, em todos os sentidos. Beleza e dor”, diz Zacchi, 29. Para Rodrigues, 30, a peça transita ainda por outras quebras de preconceito. “A aceitação do outro, do diferente, passa também pela crença, pela ideologia, pela raça”, diz o ator. O que justifica a contemporaneidade do texto montado 25 anos atrás por Roberto Vignati, no Rio.
A nova versão brasileira é dirigida por Luiz Furlanetto, o mesmo de “Trainspotting” (2001), para quem “Bent” é “um grito de alerta”. Ele co-criou o espaço cenográfico formado por ferro e pedra, onde circulam ainda os atores Rodrigo Pandolfo, Miro Marques, Frederico Lessa e Allan Souza Lima, além do cantor Breno Pessurno.
24.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 24 de agosto de 2006
TEATRO
Na peça que estréia hoje em São Paulo, ator Renato Borghi encara seu primeiro Shakespeare, em caprichada produção
Texto é um dos menos conhecidos do bardo inglês e aborda a ascensão e queda de um mecenas no meio de uma realidade mesquinha
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Em dezembro de 1972, ao final da temporada de “As Três Irmãs”, do escritor russo Anton Tchecov (1860-1904), o ator e diretor Renato Borghi desligou-se do Oficina -grupo e depois teatro em que assentou tijolos nos seus primeiros 15 anos de história.
Discordava da linha então mais radical e antropofágica adotada pelo amigo também diretor José Celso Martinez Corrêa, nascido no mesmo dia, mês e ano em que ele (30/3/1937). Borghi mergulhou em outro autor clássico, Shakespeare. Chegou a cogitar “Ricardo 3º”, mas o texto que o mobilizou de chofre era dos menos conhecidos do bardo inglês, tanto sob a ditadura militar quanto o é agora: “Timão de Atenas”, peça que estréia hoje no Teatro Popular do Sesi. “Quando o li, a primeira coisa que me chamou a atenção era esquisita: soava como uma parceria de Shakespeare com Brecht”, diz Borghi. “Era uma sensação nítida de que continha a clareza que Brecht gostaria de transmitir a respeito do sistema capitalista, mas dentro de um Shakespeare de 400 anos antes. Parecia uma transmissão espiritual.” Recentemente, ele revolveu sua biblioteca e encontrou uma tradução da peça com anotações de 1973. Idas e vindas, Borghi, 67, atravessou mais de três décadas -numa carreira que já adquiriu espessura histórica- para finalmente aportar na dramaturgia com que a maioria dos intérpretes sonha. Na contracorrente dos estudiosos que torcem o nariz para o texto “menor” do autor de “Hamlet” (mas que Peter Brook dirigiu em 1974), Borghi e seu grupo, o Teatro Promíscuo, montam “Timão de Atenas” em produção profissional (16 atores, quatro músicos e pelo menos outros 30 nomes envolvidos no projeto) da qual o Brasil não teve notícias. Do final dos anos 80 para cá, sabe-se de montagens no Rio, com Aderbal Freire-Filho, com alunos da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), ou da junção do texto com “Troilus e Cressida”, também de Shakespeare, com o grupo Os Fodidos Privilegiados; e ainda uma adaptação da obra no circuito paulistano da Cultura Inglesa, com egressos da USP, por Marco Antônio Pâmio.
Lobby
“É uma peça praticamente inédita”, exagera Borghi. Versa sobre ascensão e queda de um mão-aberta, o mecenas Timão (ou Timon). No primeiro ato, a ação se passa na pólis, Atenas, não por acaso o berço da civilização ocidental. É lá que o primeiro personagem shakespeareano de Borghi distribui sua riqueza a todos que lhe procuram. O assédio vem de senadores, negociantes, artistas, amigos… “A peça é lobby puro”, diz o ator protagonista. “Fala muito desse aspecto com o qual a gente tem se defrontado demais ultimamente, essa coisa mesquinha, corrupta, individualista, cada um querendo dar o seu golpezinho e se sair bem.” No segundo ato, o perdulário vai a pique. Sai a cidade, surge a floresta em que um esfarrapado Timão sonda o quão a sociedade que idealizara está enraizada na ambição pelo dinheiro, pelo ouro, o lucro perpétuo. “O segundo ato, para mim, é um gozo. É tesão total. É delirante”, diz Borghi. “O Timão paga o casamento de um, resolve a vida do outro, dá presente caríssimos. Em troca da dádiva absoluta, ele cria uma dívida absoluta, porque acredita que a qualquer momento a fortuna dele garantirá aquela sociedade idealizada. E, na verdade, quebra a cara, saca que estava completamente enganado.”
Diretores
“Timão de Atenas” inclui dramaturgos e diretores na pele de atores. O diálogo de gerações passa por Mauricio Paroni de Castro (do Atelier Teatral de Manufactura Suspeita), que vive Apemanto, o único amigo que não bajula , ao contrário, solta-lhe impropérios a todo instante, alertando-o sobre os malefícios do “coração liberal”. Também está lá Marcelo Marcus Fonseca (Cia. Teatro do Incêndio), como Flavio, o fiel criado de escudeiro, que tampouco conseguiu que fechasse o cofre. Outros nomes, como Nilton Bicudo (como Poeta), Pedro Vicente (Pintor) e Alvise Camozzi (Joalheiro) também já dirigiram ou escreveram peças. “Ao contrário do que possa parecer, eles foram bastante solidários, não me aborreceram não”, diz Elcio Nogueira Seixas, 34, que co-assina a direção com Luciana Borghi, sobrinha do ator. O filho de Borghi, Ariel (como Alcebiades), também contracena com ele.
Perdas
Com 48 anos de carreira, Borghi conhece os reflexos de um duro processo de criação de um espetáculo em seu próprio corpo. Nos últimos meses, passou por uma cirurgia na coluna e amargou outros cinco dias num hospital com gastroenterite aguda -acompanhada do baque da perde dos amigos Raul Cortez e Gianfrancesco Guarnieri, no mês passado. Lembra que atuou com Cortez em “Pequenos Burgueses” (1963/64), que também protagonizou um texto de sua autoria, “Lobo de Ray-Ban” (1967).
Com Guarnieri, atuou em “Pegue e Não Pague”, de Dario Fo (1982). “Dedico o espetáculo aos meus dois amigos”, conclui o ator.
São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 2006
TEATRO
“Proprietários à Moda Antiga” faz parte de projeto sobre o teatro da Rússia
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Da nova geração de diretores de teatro em Moscou, Mindáugas Karbáuskis, 34, traz ao Brasil a adaptação de um conto de Nikolai Gógol (1809-1852) em que jovens interpretam personagens mais velhos.
Em “Proprietários à Moda Antiga” (2001), espetáculo que faz temporada de hoje a quinta-feira no Sesc Santana, um patrão idoso é humilhado pelos criados após a morte de sua mulher -eles se amavam muito e viviam tranqüilamente numa casa na aldeia. Certo dia, ela “retorna” para resgatá-lo.
Karbáuskis fala em tentativa de revisitar o passado. “Não sob a perspectiva da política, do socialismo, mas com um olhar atencioso sobre a vida humana, o drama íntimo das pessoas.”
Felicidade ilusória
Em sua leitura de Gógol, a intenção é tirar as camadas sentimentalistas da relação do casal e acentuar que toda felicidade é ilusória, dadas as agruras do viúvo diante da perversidade dos empregados.
O casal protagonista é vivido por Aleksandr Semtchev e Polina Medvêdeva. O espetáculo passou pelo Rio de Janeiro no final de semana.
Trata-se da terceira atração do projeto Estação de Teatro Russo – Brasil 2006. Em setembro, vêm “O Capote”, também baseado em conto de Gógol, com o Teatro Sovremênnik de Moscou, em cooperação com o Centro Teatral Vsévolod Meyerhold, sob direção de Valéri Fókin, e “K.I. Crime e Castigo”, inspirado em capítulo da obra de Dostoiévski, encenação de Kama Ginkas.
O projeto com as cinco peças é realizado por Funarte, ministérios da Cultura do Brasil e da Rússia, Festival Internacional de Teatro Tchecov e Sesc-SP.
15.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 15 de agosto de 2006
TEATRO
Prestes a completar 84 anos, ator escolhe “O Avarento”, 90ª peça da carreira e quarta do comediógrafo que interpreta
Dirigido pela primeira vez por Felipe Hirsch, ele sobe ao palco do Cultura Artística; cenário recria ambiente teatral do século 17
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
“É uma peça para ressaltar as máscaras dos atores, a expressão facial”, adianta Daniela Thomas. No gigantesco palco do teatro Cultura Artística (1.156 lugares), em São Paulo, ela deslocou a cenografia praticamente para o proscênio, onde o público verá um Paulo Autran maquiado como as últimas gerações nunca viram.
Também o recurso da ribalta (fileira de refletores, antigamente velas, ao nível do palco, na dianteira), como nos tempos de Molière, no século 17, conforme releitura do diretor Felipe Hirsch, reforça ainda mais a dramaticidade de Harpagon, o protagonista de “O Avarento”.
“Ele é tão fanático por dinheiro que fica muito engraçado. Pessoalmente, ele sofre muito, o tempo inteiro, mas o sofrimento dele é cômico”, afirma Autran, 84 anos no próximo dia 7 de setembro.
Dos mais clássicos intérpretes brasileiros (estreou profissionalmente no Teatro Brasileiro de Comédia em 1949), ele andava com saudade dos autores clássicos. Pela quarta vez na carreira, recorre ao comediógrafo francês Jean-Baptiste Poquelin, o Molière (1622-1673), de quem já levou ao palco “O Burguês Fidalgo”, nos anos 60; “As Sabichonas”, nos anos 60; e “Tartufo”, nos anos 80.
Metido em ceroulas impagáveis, sem a peruca molièresca sugerida pelo material publicitário da peça, Autran desponta em cena numa tarde de ensaio com a altivez de quem está diante do fotógrafo alemão Fredi Kleemann (1927-1974), dos tempos de TBC. Foi com ele que, como muitos colegas, aprendeu a congelar a expressão do olhar e do gesto, como o fez diante do repórter-fotográfico da Folha.
Paulo Autran anuncia “O Avarento” como a 90ª peça em 57 anos de carreira, descontados os dois primeiros anos da fase amadora. Convidou Hirsch a dirigi-lo pela primeira vez. O diretor da Sutil Companhia de Teatro tem 34 anos, quase 50 a menos. Autran gosta de trabalhar com jovens criadores, a exemplo de Eduardo Tolentino de Araújo, do grupo Tapa, e Paulo de Moraes, da Armazém Cia. de Teatro.
Reconhece assim tangenciar o risco. “Às vezes, o diretor muito moço, fascinado pela sua própria autoridade, capacidade, inventa coisas que só prejudicam o andamento do espetáculo”, afirma o ator. Normalmente, é ele quem adapta os textos, mas delegou a atual tarefa ao próprio Hirsch. “A melhor comédia é aquela a que você assiste com uma lágrima no olho”, dizia o teatrólogo britânico Bernard Shaw.
Hirsch lança mão da frase para apontar as entrelinhas que deseja vislumbrar no texto sobre a triste figura de Harpagon.
O diretor e Daniela Thomas, falam em “poesia da exaustão”, conceito que nasceu na primeira onda de ataques do PCC em São Paulo, em maio.
“É exaustivo eternizar poesia num mundo, num país, numa cidade sitiados”, diz Hirsch. “É como se Autran e uma trupe de atores atraíssem o público para um bunker, o teatro.”
No cenário, ergue-se uma parede com caixas de papelão das quais os atores saem no início do espetáculo, como se encaixotados. Aos poucos, parte da estrutura vai-se desmontando e deixa vazar pelas frestas e “janelas” um fundo com telão de época a representar um céu azul entre nuvens.
Moedas
Além do “bunker”, a cenografia guarda relação com a caixa de moedas que o obsessivo Harpagon enterra em seu jardim, alvo de muitos qüiproquós. Idem para os imóveis envolvidos em plásticos, de modo que durem o máximo. No apego a bens materiais e ao dinheiro, o ordinário arranha a relação com os filhos, empregados e todos os que o rodeiam.
Elisa e Cleanto têm que driblá-lo o tempo todo para conquistar seus amores e não contrariar o pai, sempre de olho nos dotes dos interessados na prole. Acrescente-se uma alcoviteira, um agiota e um criado e, pronto, eis a comédia à la Molière. “Num certo sentido, Harpagon se parece muito com alguns políticos que a gente conhece”, diz Autran.
Ele atua ao lado da sua mulher na vida como ela é, Karin Rodrigues, no papel da alcoviteira Frosina (“As pessoas como eu têm apenas, como rendimento, a intriga e a astúcia”, diz a personagem); e do amigo Elias Andreato, que o dirigiu em “Visitando o Sr. Green” (2000) e “Adivinhe Quem Vem para Rezar” (2005), na pele do criado Flecha.
Também estão em cena Gustavo Machado e Cláudia Missura, nos papéis de filhos, e Luciano Schwab, Tadeu Di Pyetro e Arieta Corrêa, atriz que deixa o CPT de Antunes Filho após seis anos.
“Todo mundo começou pelo mesmo tipo de paixão, só que em épocas diferentes. Se a gente aciona essa paixão, todos os traumas, limites, dúvidas tendem a diminuir”, diz Hirsch. “É aí que a linguagem do Paulo se encontra com a do Felipe. Quero ficar próximo do amor que o Paulo tem pelo teatro.”
15.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 15 de agosto de 2006
TEATRO
Antônio Januzelli dirige a partir de hoje, em teatro em Pinheiros (SP), “Querido Pai”, livre adaptação de texto autobiográfico do escritor tcheco
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
“Eu não consegui me salvar da sua influência”, escreve Kafka a seu pai, frase que a maioria dos filhos endossaria sem pestanejar. Franz Kafka (1883-1924) não finge suas angústias e alegrias em “Carta ao Pai”, páginas autobiográficas que escreveu aos 36 anos e jamais foram lidas pelo comerciante tido como autoritário que o trouxe ao mundo.
Os altos e baixos da relação pai-filho são levados ao pé da letra no “pensamento corporal” desequilibrado (conforme a preparadora Patrícia Noronha) do quarteto de atores que encena “Querido Pai”, livre adaptação da obra do autor tcheco que entra em cartaz hoje no Viga Espaço Cênico.
“Carta ao Pai” chega com a assinatura de Antônio Januzelli à frente daquele que vai se alicerçando como grupo, o Arquipélago, união das “ilhas” pelas quais o professor da USP e diretor transita em sua pesquisa contínua sobre a expressão dramática do ator.
Não espere as convenções do olhar psicológico sobre culpas e ressentimentos. “Estamos falando de um filho que escreveu para o pai no início do século 19 [mas nunca lhe mostrou a carta]. Não dá para supor como era a relação, ficar analisando aos olhos de hoje; isso empobreceria o texto”, afirma o ator Henrique Schafer, 39, do elogiado solo “O Porco” (2004), dirigido por Januzelli.
“Trazemos “Carta ao Pai” pelo valor que ela tem em si, pela contundência dessa relação à flor da pele”, diz Schafer. A partir dessa condição humana, o desejo é abrir as portas para um pai mítico, um pai opressor, um pai dos pobres; por fim desfilam os arquétipos na galeria. Schafer, Frederico Foroni, Eduardo Ruiz e Patrícia Ermel constroem narrativa em que ora aludem a depoimentos pessoais nascidos de jogos de improviso ora dão voz a Kafka, ao pai e a outros membros da família judia (mãe e duas irmãs), sem consolidá-los como personagens, como diz Foroni, 29, idealizador do projeto.
À livre adaptação do livro traduzido por Modesto Carone, Ruiz imprimiu o processo de dramaturgização (em que o texto ganha corpo na ação dos atores). Inclusive, há citações a outras obras de Kafka.