13.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006
TEATRO
Peças são apresentadas em prédios do final do século 19 e começo do 20
Espectadores aprovam união de arquitetura e dramaturgia na região central e divulgam pequeno circuito com boca-a-boca
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Bairro de edifícios teatrais históricos (TBC, Oficina, Sérgio Cardoso), a Bela Vista tem alguns casarões transformados em palcos alternativos.
Só na rua Major Diogo, endereço do Teatro Brasileiro de Comédia (1948), há dois deles: a Casa da Dona Yayá, no número 353, e o Casarão da Escola Paulista de Restauro, no 91. A quarteirões dali, no 267 da r. Pedroso, fica o Casarão do Belvedere.
Dos anos 90 para cá, o espectador já se habituou às produções levadas a espaços não-convencionais, o que permite conciliar obras cênicas e arquitetônicas. A Bela Vista converte-se em capítulo à parte dado o perfil popular e a convergência de casarões tombados.
Diretor e atores do Redimunho de Investigação Teatral retornavam de ensaio, em janeiro, quando deram com o espaço perfeito para “A Casa”, inspirada em Guimarães Rosa. Descobriram que ali funcionava a Escola Paulista de Restauro, projeto de formação destinado a profissionais e à comunidade, parceria da Companhia de Restauro e do Museu a Céu Aberto.
O sobrado foi erguido em terreno de 750 m2 no final da década de 1910. Pertence à família do jurista José Luiz de Almeida Nogueira (1851-1914). Possui 13 janelas com varandas de ferro. A escola de restauro obteve da família concessão de uso por dez anos e decidiu abrir “janelas” para o teatro.
“A Casa”, assinada por Rudifran Pompeu, utiliza tanto os cômodos quanto o quintal pleno em árvores frutíferas. “No início, encontramos muitos sacos de lixo jogados por vizinhos. Agora que viram o movimento das pessoas, não jogam mais”, diz o diretor.
“O espetáculo faz a gente esquecer que está no centro”, diz a cineasta Vera Senise, 50, que assistiu à peça no último fim de semana. O artista Henry Vitor, 67, ficou impressionado na primeira cena. “Numa sala cheia de fotos e livros antigos, de repente entra o personagem vestido de cangaceiro, armado e à vontade, como se o seu mundo fosse ali.”
Segundo a atriz Fernanda Chicolet, 25, que ocupa o Casarão da Dona Yayá, o boca-a-boca “funciona bastante” nesse pequeno circuito dos casarões (de 20 a 40 pessoas por sessão), cujas fachadas não dão pinta de que se está diante de um teatro.
O imóvel foi construído no final do século 19 e serviu como morada de Sebastiana de Mello Freire, a dona Yayá (1887-1961), uma rica senhora da sociedade paulista confinada entre aquelas paredes como louca durante décadas. Tombado, o casarão é mantido pela USP, que o usa como espaço cultural. Seu primeiro inquilino teatral foi “5PSA o Filho” (2005).
Em “Quase de Verdade”, a itinerância se dá no plano imaginário. A saber: o público não se movimenta. Senta-se numa das grandes salas ao redor de uma mesa e ali acompanha a história. “As passagens de tempo e espaço são indicadas pelo texto”, diz Chicolet.
No Casarão do Belvedere, construído em 1927 e abrigo de teatro desde o ano passado, a cena da feira livre em “A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar” acontece entre escombros no quintal. “Boa parte do espetáculo se passa numa espécie de corredor entre a porta de entrada e a porta de fundos. Os personagens surgem e desaparecem entre os quartos”, diz o diretor Tin Urbinatti, 57.
9.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quarta-feira, 09 de agosto de 2006
TEATRO
Encenação de “O Círculo de Giz Caucasiano” discute ocupação da terra; diretor crê que socialismo está “em reconstrução’
Cinqüentenário da morte do autor alemão é lembrado com outras montagens e debates que envolvem também a obra de Górki
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
A militância política pode estar em baixa, mas dá sinais de sobrevida no teatro. Apesar da crise das utopias, do esfacelamento do socialismo e da arte engajada, grupos do país seguem devotos ao pensamento e à obra de Bertolt Brecht (1898-1956) na tentativa de interpretar a realidade.
No próximo dia 14 se completam 50 anos da morte do autor alemão, referência mundial do teatro político no século 20 e, ao que se vê, ainda neste que corre. É reverenciado por grupos como Galpão (MG), que montou “Um Homem É um Homem” em 2005; Companhia Fábrica São Paulo, que anuncia um ciclo para relacioná-lo com a obra de Górki; e Grupo dos 7, que articula suas canções com sambas-de-roda no espetáculo “Teatrosamba do Caixote”, em cartaz em São Paulo.
A efeméride fez com que a Companhia do Latão, das mais brechtianas e marxistas equipes do país, interrompesse período de seis anos com dramaturgia própria e voltasse à fonte em que se autobatizou.
Convidado pelo CCBB a dirigir um Brecht, o diretor Sérgio de Carvalho atravessou a ponte aérea com “O Círculo de Giz Caucasiano” e estendeu a empreitada ao próprio grupo e a artistas ligados a outros coletivos, como o Folias d’Arte, a Cia. São Jorge de Variedades, o Núcleo Argonautas e o Teatro do Pequeno Gesto (RJ). A montagem é apresentada hoje para convidados e entra em cartaz amanhã no CCBB do Rio. O Latão já montou “Santa Joana dos Matadouros” (98) e “Ensaio sobre o Latão” (97).
Traduzida no anos 60 por outro poeta, o anticomunista Manuel Bandeira, “O Círculo de Giz Caucasiano” foi concluída por Brecht em 1945, final da Segunda Guerra, quando estava exilado nos EUA, também ali perseguido por causa dos ideais comunistas.
“O Bandeira aceitou porque sentia o texto como uma crítica fortíssima à desumanização”, afirma Carvalho, 39, que pôs em cena um espetáculo com dez atores e 21 canções originais (por Martin Eikmeier).
Atualidade
“O Círculo” abre e fecha falando de terra. Questiona em que medida sua ocupação é justa ou legal, prato cheio para uma companhia que busca pensar Brecht no contexto do capitalismo atual e do Brasil, sociedade da periferia do mundo, no dizer de Carvalho.
No prólogo original, dois grupos de camponeses soviéticos discutem quem vai ficar com a terra: se aqueles que nela trabalham ou os antigos donos que a abandonaram. O início da peça traz uma interação em vídeo com participação do grupo Filhos da Mãe Terra, formado por crianças e adolescentes do assentamento Carlos Lamarca, do MST, em Sarapuí (SP).
Em seguida, vem a fábula sobre Gruxa (Helena Albergaria), a criada que decide abdicar de tudo para cuidar de um menino cujo pai, um governador, é assassinado e cuja mãe o abandona após a revolta local. “A Gruxa age não por uma espécie de heroísmo, mas pela tentação da bondade”, diz Carvalho.
Anos depois, baixada a poeira política, a mãe retorna e quer reaver o filho. Surge o juiz Azdak (Ney Piacentini). Com fama de corrupto e beberrão, “um revolucionário frustrado”, decide quem vai ficar com a criança. Ele traça um círculo de giz no chão, coloca o menino no centro e pede às duas mulheres que o puxem cada uma delas por um braço. Aquela que o tirasse do círculo ficaria com a guarda. “Azdak encarna o desejo de uma era em que a justiça fosse verdadeira”, diz Carvalho.
A contradição, recurso tão afeito ao teatro épico, também espreita a ocupação do CCBB pela Cia. do Latão. O braço cultural de uma instituição bancária serve como plataforma para comemoração dos dez anos do grupo, em julho de 2007. Estão previstos lançamentos de sete DVDs, três livros e o volume dois do CD “Canções de Cena”.
“Quem produz arte dentro de um ambiente em que ela está sujeita a compra e venda, estabelece algum nível de diálogo com o mercado. O importante é mostrar a contradição dessa produção com esse mercado. Fingir que ela não existe é também sair do debate. Como artista de esquerda, não posso sair do centro radiador desse sistema. Não queremos abastecê-lo com produtos culturais, mas trazer reflexões artísticas na contramão”, diz Carvalho.
O diretor não considera que o socialismo tenha acabado. “É um momento de reconstrução e acúmulo de forças do projeto socialista.” Para Carvalho, Brecht não tinha a ilusão do Estado socialista, mas de um movimento humanístico. “Ele escreveu “O Círculo” nos EUA, em pleno olho do furacão do capitalismo e da indústria cultural em formação. É um sujeito perturbador por isso, propõe as coisas dinamicamente.”
8.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 08 de agosto de 2006
TEATRO
Festival terá espetáculos de graça no Teatro Popular do Sesi e no Ibirapuera
Terceira edição do evento traz destaques de Rússia, França, Japão, Espanha e EUA e contempla cidades das regiões Sul e Sudeste
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O país vem afirmando seu espaço no circuito internacional de teatro de bonecos (ou teatro de animação). Cidades como Canela, Belo Horizonte e Curitiba fixaram seus festivais no calendário. E São Paulo chega ao terceiro ano do projeto Sesi Bonecos do Brasil e do Mundo.
De hoje a domingo, sempre com entrada franca, o teatro Popular do Sesi, na av. Paulista, e a praça da Paz, no parque Ibirapuera, recebem 17 companhias, cinco internacionais.
Quem abre a programação hoje -duas sessões por noite -é o grupo Teatro Tenj, fundado em Moscou em 1991. Em russo, seu nome significa sombra e já indica a técnica que maneja. No espetáculo “Metamorfoses”, é narrada a história de um pintor cujos quadros são transformados diante do espectador, sob música ao piano de cauda com composições de Chopin e Tchaikovski.
Amanhã, apresenta-se o grupo espanhol de fantoches La Fanfarra. Sem palavras, “Melodama” é uma adaptação livre de “A Vingança da Órfã Russa”, um melodrama escrito pelo pintor francês naïf Henri Rousseau em 1899. Em um retábulo duplo, um palco de bonecos desdobrado, desenvolve-se a história de Sofia, órfã, ingênua, que, ao pensar que conheceu o amor, termina presa em suas redes, o que passa pela tentativa de suicídio.
As demais atrações estrangeiras são: The Huber Marionettes (EUA), que domina a técnica com fios no espetáculo “Animação Suspensa”; a cia. Petits Miracles (França) traz “O Circo de Pulgas”, com técnicas não-convencionais; e o grupo Dondoro (Japão) encena “Kiyohime Mandara”, que combina bonecos de tamanho natural, máscaras e o teatro butô, nô e bunraku.
Atrações nacionais
O segmento nacional inclui grupos como Contadores de Estórias (RJ), com “Em Concerto”; Ventoforte (SP), com “Um Rio Que Vem de Longe”; Cia. da Tribo (SP), com “Homem-Palco”; Anima Sonho (SC), com “Bonecrônicas”; Sobrevento (SP/RJ), com “Cadê o meu Herói?”; e Valdeck de Garanhuns (PE/SP), com “Simão e o Boi Pintadinho”.
Na primeira edição, em 2004, o evento se estendeu a algumas capitais do Nordeste. No ano passado, foi ao Norte do país. Agora, contempla Sul e Sudeste (Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e Joinville). Em paralelo, o Sesi Leopoldina abriga simpósio e oficinas para profissionais.
“Estamos tirando o teatro de boneco do casulo e interagindo com ateliês, exposições, vídeo e música”, diz a curadora pernambucana Lina Rosa, 35.
“É preciso quebrar o preconceito de que teatro de bonecos é para crianças, que não é teatro”, avalia Lina.
4.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, sexta-feira, 04 de agosto de 2006
TEATRO
Aos 66, a atriz protagoniza “Comendo entre as Refeições”, de Donald Margulies
Texto dirigido por Walter Lima Jr., que estréia hoje no Teatro Folha, opõe veterana e sua aluna em apropriação de caso de amor do passado
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Aracy Balabanian não teve filhos. Assim como a escritora consagrada e professora universitária que interpreta na peça “Comendo entre as Refeições”, cuja temporada começa hoje no Teatro Folha.
Muito do instinto materno a atriz canalizou para sobrinhas que ajudou a criar e, mais recentemente, para uma afilhada. Isso para não dizer da variedade de personagens que há 43 anos acolhe no palco, na televisão e no cinema. “Todos eles, dos quais aparentemente nos apropriamos ao longo da carreira, nos ajudam a ser melhores como pessoa. Mesmo quando não tão virtuosos, a gente acaba aprendendo muito”, conta Aracy Balabanian, 66. “Sempre tive preocupação em escolher meus personagens: é isso que quero dizer neste momento? É isso que tenho vontade de trocar com alguém?”
O conflito de gerações em “Comendo entre as Refeições”, drama realista do americano Donald Margulies, lhe interessa sobremaneira. Trata-se do vínculo entre Ruth Steiner (Balabanian), professora da Universidade Columbia e dona de obra prestigiada em Nova York, e a estudante de letras Lisa (Virginia Cavendish), sua aluna, estagiária e também aprendiz de escritora. Num dos seus primeiros livros de ficção, sempre sob a tutela de Ruth, Lisa retrata uma paixão secreta vivida pela professora nos anos 50, sem o consentimento desta -um affair com o poeta nova-iorquino pinçado por Margulies da vida real, Delmore Schwartz (1913-1966), que influenciou artistas como Lou Reed.
A intimidade tornada pública, ainda que sob o viés ficcional, vira o pomo da discórdia. Ruth afirma que foi “roubada”, “violentada” em sua intimidade. Lisa contra-argumenta que escreveu a história em sua homenagem, inclusive sob seus preceitos de boa literatura. “É um espetáculo extremamente oportuno, porque fala de ética, aquela que o Mário Quintana dizia ser estética da alma, muito importante em tempos de individualismo absoluto”, diz Balabanian. Ela traça paralelo com sua geração, “de escrúpulos”, com as seguintes, que teriam regredido ao “se você não fez o que devia, faço eu e boto meu nome”.
A produtora da peça e atriz com quem contracena, Virginia Cavendish, 35, diz que a montagem dirigida por Walter Lima Jr. (segunda incursão do cineasta pelo teatro), que estreou em fevereiro no Rio, cuida em não prejulgar. A começar pelo título original, “Collected Stories”, que a tradutora Sueli Cavendish, sua mãe, optou por “Comendo entre as Refeições” a “Estórias Roubadas”, da versão protagonizada por Beatriz Segall em 2000, porque já denotaria juízo de valor.
Cavendish, a atriz, lembra que o autor traz em epígrafe o irlandês Oscar Wilde, para quem todo discípulo rouba um pouco do seu mestre. “No fundo, é quase uma história sobre a morte e o nascimento de um escritor, narrada pelas duas”, afirma a intérprete da pupila.
3.8.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 03 de agosto de 2006
TEATRO
Encenador mineiro estréia texto com forte crítica social, do alemão Büchner
Comédia “Leonce e Lena”, em cartaz no Sesc Paulista, estabelece relação de “desesperança” com o país e com a geração do diretor
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Há 14 anos, o grupo Galpão e o diretor Gabriel Villela foram transformados pela experiência da criação de “Romeu e Julieta”. Eles trouxeram à luz uma leitura popular da tragédia dos jovens amantes de Shakespeare segundo a tradição do circo-teatro, com atalhos, entre outros, para Guimarães Rosa.
Em fase autodefinida niilista, Villela agora vai ao autor alemão Georg Büchner (1813-37) para dissipar qualquer crença romântica. “Leonce e Lena” estréia hoje no Sesc Avenida Paulista, para convidados -a temporada começa amanhã. O texto, traduzido por Christine Röhrig, é uma comédia com entrelinhas de fábula sobre os desencontros de um casamento arranjado. O príncipe Leonce (Luiz Päetow) e a princesa Lena (Ana Carolina Godoy) pertencem a reinos distintos. Em meio ao tédio de suas vidas (e do poder), vão se conhecer num outro território.
Enamoram-se e se casam sempre mascarados, sem saber de suas condições de nobreza. As máscaras, tão caras à obra do encenador mineiro, só vão cair no final, embaralhando identidades e predestinações.
Se em Shakespeare o amor não sobrevive ao jogo político dos clãs, em Büchner o objeto amoroso também morre diante das convenções. Correlação de “desesperança” que Villela estabelece com seu país, sua geração.
“É muito difícil ter 47 anos e ver que a juventude já foi. É natural, mas não melhorou nada no país, só piorou. A gente nem chegou a ver o Paraíso do ponto de vista da contracultura dos anos 70. Nascemos sob a ditadura militar, não pudemos fazer um teatro político, engajado, exercitar algumas coisas, despirocar um pouco, fazer happening”, diz o encenador.
Tempo de revisões. “Nos anos 80, pegamos o portão fechando pela Aids, o isolacionismo estético dos diretores. Nos anos 90, até houve o reencontro dos diretores com dramaturgos e atores. E confesso que chego a 2006, olho para o Brasil e vejo esta metáfora, e não só aqui, mas no mundo: estão descascando as camadas da cebola, a caixa dentro da caixa, o vazio, como bem cita Büchner. Inventam-se assuntos, um atrás do outro, mas o projeto faliu.”
Villela quer traduzir essa percepção nas chaves da paródia e do escracho. A começar pelo espaço cenográfico concebido por J.C. Serroni, todo ele sob invólucro de caixas de papelão, das paredes ao chão. Inclusive as cem poltronas que ocupam quatro módulos em arena foram confeccionadas com o mesmo material.
Para desfilar a fábula em que o poder e as pessoas “estão festejando e morrendo”, há ainda projeções de trabalhos do artista mineiro Farnese de Andrade e uma fusão de minueto, que crispa gestos aristocráticos, com cancioneiro popular (com direção musical de Babaya).
São Paulo, quarta-feira, 02 de agosto de 2006
TEATRO
Em sua primeira turnê pela América do Sul, a companhia mostra em São Paulo e no Rio o espetáculo mais antigo em seu repertório
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Gerações acostumadas a ouvir e ver as aventuras de quatro animais, jumento à frente, a desbravar a cidade grande para virar artistas agora se deparam com um garoto nascido entre os néons da metrópole e, nela, tentado a melhorar a relação com o mundo. “Os Saltimbancos” de Chico Buarque, inspirado na escrita dos irmãos Grimm do conto “Os Músicos de Bremen”, dá passagem ao “Saltimbanco” singular do grupo canadense Cirque du Soleil.
Quatorze anos após sua estréia, em 1992, o mais antigo espetáculo do repertório da companhia multinacional serve como cartão de visita ao Brasil, com temporadas inéditas em São Paulo e no Rio, a ocorrer, respectivamente, entre esta semana e o início de dezembro -392 mil pessoas devem assistir ao espetáculo no país.
Nestas páginas, estão informações sobre algumas das 12 partes do espetáculo, um exemplo do moderno projeto de entretenimento ao vivo que o Soleil finca mundo afora.
Na concepção do diretor italiano Franco Dragone, que criou uma dezena de shows para a companhia entre os anos 1980 e 90, o que “Saltimbanco” sugere cenicamente é uma cidade imaginária com seus heróis anônimos, alguns saltimbancos, artistas que atuavam ao ar livre na Idade Média.
Abre com o número “Adágio”, em que uma família de origem ucraniana, os Vintilov, apresenta movimentos de contorcionismo e equilíbrio. Pai, mãe e filho -Maxsim, 10, que já passou metade da vida no posto que era da irmã, escalada para outra montagem- como que protagonizam o nascimento do garoto imediatamente engolfado pela vida adulta.
A partir daí, sucedem os quadros nos quais nem sempre se notará a trajetória desse personagem. Cabe ao espectador emendar sua própria narrativa, jamais linear, em meio a jogos de luz, som e figurinos multicoloridos, além da música ao vivo executada por uma banda.
Um pulo até o terreno ocupado pela trupe na Vila Olímpia dá conta da logística padrão alcançada em 22 anos de estrada.
Tudo destoa da visão do artista mambembe que salta de cidade em cidade. Na tenda principal não há serragens, mas piso de madeira; não há arquibancada de ripas, mas cadeiras de plástico; não há picadeiro, mas tablado que lembra uma semi-arena de teatro; não há trailer, mas contêineres.
Por cerca de uma hora no local, na semana passada, a reportagem não pôde falar com os artistas, todos concentrados em treinamentos sob uma lona reservada para isso. Cumprem de cinco a seis horas diárias.
A malabarista russa Maria Markova em nenhum momento desviou o olhar das bolinhas para as lentes do fotógrafo que a cercava. A chinesa Ren Jun improvisava a maquiagem em frente ao espelho (rito que dura até 90 minutos), antes de se equilibrar sobre um cabo de aço esticado num canto. Os gêmeos poloneses Daniel e Jacek Gutszmit também se ocupavam dos equipamentos para as paradas de mão e de cabeça.
A relações-públicas Pascale Ouimet, 31, explica que os 51 artistas tiveram seis semanas de folga após o final da temporada em Buenos Aires, no mês passado. Hospedados em hotel da região, passam boa parte do tempo ali para voltar à forma.
Segundo Ouimet, “Saltimbanco” é a melhor introdução ao Cirque du Soleil. “Um show honesto, simples e humano, pelo qual os fundadores da companhia têm muito carinho.”
É a primeira turnê do Soleil pela América do Sul -passou ainda por Santiago. O Rio será a 69ª cidade de “Saltimbanco”. E pode ser a última. Há dúvidas se o show continuará em repertório depois de tantos giros.
27.7.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 27 de julho de 2006
TEATRO
Ator cearense estréia hoje “Cleide Eló e as Pêras” no Sesc Avenida Paulista
Após “Aldeotas”, o também dramaturgo monta trilogia de peças curtas com depoimentos de quem ama com intensidades diferentes
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Gero Camilo balança prosa e poesia em suas narrativas para o teatro, como se viu em “A Procissão” (1997) e “Aldeotas” (2004). O curioso é que parte de sua dramaturgia ganha asas próprias por via do livro independente que o ator e autor lançou em 2002, “A Macaúba da Terra” (edição esgotada).
Daquelas folhas, já foram à cena parte dos contos de “As Bastianas” (2003), pela Cia. São Jorge de Variedades, e parte das peças curtas de “Entreatos” (2004), por Ivan Andrade.
É de “Entreatos” que jorram mais três peças curtas de Camilo: “Cleide Eló e as Pêras” estão umbilicadas pelo título, sem vírgula, no espetáculo que entra em cartaz hoje no Sesc Avenida Paulista. Camilo contracena com Paula Cohen em sua trilogia, um pequeno e pungente tratado “dos arquétipos da paixão”, os pontos de vista do amado e do amante, por acaso “nem longe nem perto, ao alcance”.
“Cleide” e “Eló” são depoimentos de quem ama os respectivos personagens-título. Na primeira peça, um homem deita seu amor por ela, pleno em lirismo. Na segunda, uma mulher rasga-se por ele com entrecho mais trágico.
Segundo Camilo, são textos que tratam das variantes da paixão, a que arrebata pela poesia e a incontrolável, que não cabe no espaço da vida a dois.
“São intensidades e projeções que a paixão provoca no coração de quem sente, nem sempre no de quem recebe”, diz o ator.
Em “As Pêras”, por fim, dá-se o encontro de Cleide e Eló, os seres amados que transitam pela consciência e também se vêem insatisfeitos. “Alguém sempre está amando e alguém sempre recebe tal afeto. Claro que a troca é fundamental, mas ela não acontece na mesma intensidade.”
Quem assina a direção é o também ator Gustavo Machado, da mesma turma que Camilo e Cohen nos tempos de formação na USP.
25.7.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 25 de julho de 2006
TEATRO
Com montagens de “Mozart e Salieri” e “A Ilíada – Canto 23”, Anatoli Vassiliev reafirma busca por teatro espiritual
Seguidor dos princípios de Stanislavski e Dantchenko, encenador russo mostra em festival francês peça cuja concepção levou sete anos
VALMIR SANTOS
Enviado especial a Avignon
Localizada na Europa Oriental, a Rússia é a nascente do teatro psicológico disseminado no lado ocidental daquele continente e no restante do planeta. Os responsáveis por isso foram os mestres do Teatro de Arte de Moscou (1898), Constantin Stanislavski e Vladimir Nemirovitch-Dantchenko -e depois Meyerhold. Eles legaram estudos fundamentais sobre a arte do ator.
Na Moscou de hoje, mais afeita ao capitalismo, um dos artistas que mais dialogam com aquela tradição é Anatoli Vassiliev, cuja vitalidade está na dimensão espiritual (e ritual) com que trata a cena, em chave metafísica.
Seus espetáculos são impregnados de conteúdos sobre religião (não o dogma, mas a liturgia) e filosofia (Platão), transmutáveis pela ação física e pelo canto, invariavelmente na forma de coros. Foi o que se viu nos dois trabalhos que apresentou no 60º Festival de Avignon, principal evento mundial das artes cênicas, que segue até quinta-feira, no sul da França.
“Mozart e Salieri” (2004) e “A Ilíada – Canto 23” (2003) foram levadas ao ar livre, numa pedreira desativada a 20 minutos do centro da cidade, a Carrière de Boulbon, mítico espaço onde o inglês Peter Brook mostrou sua versão para o poema épico indiano “Mahabharata”.
A peça “Mozart e Salieri” (1826), de Aleksander Pushkin, versa sobre o embate entre os dois gênios -na ficção, o último teria envenenado o primeiro. Na “Ilíada” (século 8 a.C.), épico de Homero considerado fundador da civilização e do “espírito” gregos, o recorte é pelo canto (ou capítulo) em que acontecem os funerais de Pátroclo e os jogos militares.
Ambos os textos são em versos, sobre os quais Vassiliev trabalha ritmo e entonação. Notam-se ainda os fios da ortodoxia como dado cultural da Rússia -não rechaçado, mas relido. Também estão presentes os movimentos corais, com direito a técnicas de lutas marciais em “A Ilíada” -a diretora Maria Thaís, da cia. Teatro Balagan (SP), trabalhou com Vassiliev e co-assina a coreografia.
No espaço cênico em que as paredes de pedra direcionam o olhar para o céu, sob o som noturno das cigarras, despontam os cerca de 40 intérpretes em cada um dos espetáculos, entre atores, cantores e músicos. “O trabalho não é fruto de experiências casuais, mas direcionado por teorias e práticas anteriores do teatro psicológico russo. Eu saí dessa base. O período de pesquisa da prática espiritual levou anos, até que uma metodologia exata foi formada”, afirma Vassiliev, 64.
As primeiras experiências para uma prática espiritual no teatro datam dos anos 90, com o drama litúrgico “A Lamentação de Jeremias” (1995). Um ano antes, aconteciam os primeiros estudos para “A Ilíada”.
A versão mostrada em Avignon foi finalizada em 2003: um processo de quase dez anos. “Eu simplesmente ocupei uma lacuna que foi deixada no teatro russo, que começou a partir do drama secular. O drama litúrgico existia somente junto aos monastérios, o chamado drama escolar. Restaurei esse período que foi deixado em branco, quase uma reconstrução. Havia resistência quanto ao drama metafísico, o realismo cênico era mais forte”, explica Vassiliev, em russo, traduzido pela atriz brasileira Marina Tenorio, integrante da Escola de Arte Dramática que ele coordena em Moscou desde 1987.
Ao sintetizar passado e presente, Vassiliev abriu novas portas para o teatro contemporâneo nas últimas duas décadas. Herdou e recriou a figura do encenador-pedagogo da escola russa. “O diretor e o pedagogo são a mesma coisa, porque a encenação não é entendida sem a pedagogia. Diferente da escola européia, que se relaciona com o ator como um objeto. O encenador-pedagogo lida com o ser humano e é a partir desse ponto que é desenvolvida toda a terminologia.” Um teatro da utopia, como ele diz.
24.7.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 2006
TEATRO
O diretor Bernard Kudlak fala sobre o espetáculo e comenta as propostas adotadas há 22 anos pela companhia
Grupo circense francês traz 13 esquetes em que predominam movimentos acrobáticos (solos e aéreos), a maioria “sob chuva”
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
“O circo é a nostalgia do Paraíso”, eis o lema do palhaço e malabarista Bernard Kudlak, do Cirque Plume. Ele não está em cena, mas dirige o espetáculo “Plic Ploc”. São 13 esquetes em que predominam movimentos acrobáticos (solos e aéreos), a maioria “sob chuva”. Segundo Kudlak, “os homens voam, suas sombras são vivas e os guarda-chuvas também são seres vivos”. Leia trechos da entrevista.
FOLHA – Quando o Plume surgiu, há 22 anos, quais eram as motivações artísticas?
BERNARD KUDLAK – Queríamos encontrar uma linguagem que fosse a mais universal possível. Um espetáculo rigoroso, mas que fosse capaz de se comunicar com todo tipo de público. Ao estilo do que dizia [o diretor francês] Jean Vilar: a idéia de um teatro popular e, ao mesmo tempo, elitista. Abrimos os baús do circo e ali dentro havia um tesouro. Essa arte nos permite encenar um universo de poeta. Por outro lado, nos obriga a ter uma prática física cotidiana, o que põe em equilíbrio o sonho e a realidade. O circo era uma arte à margem do espetáculo vivo, não tinha conhecido as mudanças que o teatro conheceu, assim como a dança. Era de certo modo marginal essa idéia de praticar uma arte popular. Marginal mas fascinante, e que tanto influenciou os poetas, os escritores, os cineastas e os pintores.
FOLHA – Como a metáfora da água é usada em “Plic Ploc”?
KUDLAK – “Plic Ploc” coloca os atores em cena lidando com um elemento desagradável. Esse tipo de elemento pode se transformar em catástrofe. A questão da água é colocada de modo poético. Aciona entre os seres humanos a possibilidade de abordar os transtornos, coletivamente e recorrendo ao riso, transformando por meio do imaginário e da inventividade o tal elemento desagradável em questão. Não proferimos um discurso ideológico. O circo é um poema encenado, escreveu Henry Miller.
Essa é a nossa filosofia.
FOLHA – O aspecto visual parece ter um poder decisivo no Plume. Como o circo pode enfrentar a ditadura da imagem no mundo contemporâneo?
KUDLAK – O mundo contemporâneo coloca telas em tudo. Procuramos a poesia das trocas simples. Não vamos além com as tecnologias sofisticadas utilizadas em outros lugares. Não procuramos mais cor, mais sons, mais efeitos, mais, mais… Procuramos o gesto exato.
FOLHA – A temporada do Plume em São Paulo antecede a do Soleil. A comparação é inevitável…
KUDLAK – A comparação entre as duas companhias sempre vem à tona. Elas têm em comum o fato de terem sido criadas na mesma época, em 1984, a partir de um projeto de renovação do circo. Os fundadores tiveram uma trajetória de artistas de rua antes de criar seu próprio circo. Sem fazer comparações, privilegiamos o encontro poético com o público.
24.7.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, segunda-feira, 24 de julho de 2006
TEATRO
Cirque du Soleil e Plume, que vêm ao Brasil pela primeira vez, pregam a fusão com dança e outras artes
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O ano de 2006 vai se revelando um dos mais movimentados em temporadas internacionais de circo. Depois da tradição do Circo Nacional da China, até ontem em São Paulo, chegam pela primeira vez ao país duas companhias alinhadas ao chamado “novo circo”: o francês Cirque Plume, a partir da próxima sexta-feira, no teatro Alfa, e o canadense Cirque du Soleil, no início de agosto, em lona montada na Vila Olímpia.
Novo circo? A expressão desponta na França entre os anos 70 e 80 e prega a fusão com outras artes, como dança, teatro, artes visuais, vídeo e arquitetura. São incorporados modernos efeitos tecnológicos em luz, som e imagem. E raramente há animais em cena.
Entre os precursores, estão o Soleil e o Plume, ambos criados em 1984, e o também francês Archaos (1986). “Há muito tempo que os cães andam de bicicleta e os cavalos sabem contar. É a mais forte mitologia do circo. O “cirque nouveau” continua essa mitologia, mas cada companhia pode fazer isso com uma linguagem própria”, afirma Bernard Kudlak, 51, diretor artístico e fundador do Plume.
“É assim desde sempre, as artes do circo utilizam as outras artes do espetáculo enquanto técnica. Mas o novo é utilizá-las enquanto forma”, diz Kudlak.
Para o ator e diretor Rodrigo Matheus, da cia. Circo Mínimo (SP), é da natureza do circo renovar-se. “Desde seu surgimento (tanto na visão de que surgiu na China, 5.000 anos antes de Cristo, quanto na leitura mais simplista de que surgiu ao final do século 18, com Philip Astley, na Inglaterra), o circo sempre buscou influências em todas as linguagens e nos avanços tecnológicos”, escreve Matheus, em artigo que está no site pindoramacircus.com.br, referência na área no Brasil.