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O Diário de Mogi

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O Diário de Mogi

Entrevistado

21.11.2010  |  por Valmir Santos

 

 

GAZETA DO POVO – CADERNO G, 30.out.2010

 

CÊNICAS
O teatro curitibano sob olhar dos críticos

 

Valmir Santos, de São Paulo, e Daniel Schenker, do Rio de Janeiro, estão na cidade para refletir sobre a cena local

 

Esta semana, a cena teatral curitibana está sob o olhar de dois críticos de atuação nacional. Daniel Schenker, carioca, veio à cidade como convidado para assistir à 6.ª Mostra Cena Breve e publicar no blog do evento suas reflexões. Valmir Santos, paulista que há dois anos cumpriu a mesma tarefa do colega, retorna para debater os espetáculos do 2.º Pequeno En contro de Teatro para Crianças de Todas as Idades.

 

Foi o primeiro contato mais intenso de Santos com o teatro infantil feito na cidade. Bonecos e objetos animados dominaram a cena nas primeiras apresentações. “As duas primeiras semanas do Pequeno Encontro foram tomadas por temas da memória e dos jogos e brincadeiras abordados com inteligência, combinando conteúdos mirins ou de ‘gente grande’ com investimento no apuro de linguagem”, avalia o crítico.

 

Ele destaca a surpresa que teve ao conhecer a história de mais de duas décadas da Companhia Filhos da Lua com o teatro de mamulengo, “à altura do que se vê no Nordeste”, e reconhece a clareza da pesquisa de linguagem feita pela Cia. do Abração rumo a uma dramaturgia “de traços existencialistas”, que fala de velhice e ancestralidade.

Se identificou “deslizes menores”, caso de problemas em um ou outro texto, intérpretes desnivelados ou “resquícios de entretenimento caricatural”, Santos os credita ao modo de produção volátil das companhias, que não permite o tempo de dedicação exclusiva necessário à lapidação das criações.

 

Adultos

 

Entre as atrações para crianças, o crítico pôde assistir a um espetáculo tramado para o público adulto que lhe causou excelente impressão: Os Invisíveis, da Armadilha, cuja temporada se encerrou há uma semana no Novelas Curitibanas. “Saí admirado pela inventividade na dramaturgia e direção de Diego Fortes, pela forte presença do elenco com Maureen Miranda, Ludmila Nascarella e Alan Raffo. É montagem para figurar nos melhores festivais do país.”

 

Unindo os dois cenários, o adulto e o infantil, Santos considera o mais instigante na cidade essa “vocação para o teatro de pesquisa”, além da dramaturgia que se lança além das palavras, para narrar também pelo corpo, objetos, luz e espaço. “A cena expandida é perceptível em Olga Nenevê, Paulo Biscaia, Marcio Abreu, Sueli Araujo, Marcos Damasceno, Cia. Silenciosa”, cita.

Recém-chegado para a Cena Breve, Daniel Schenker admite ter uma “visão bastante parcial” do teatro local, construída durante a cobertura anual do Festival de Curitiba.

 

“Em todo caso, considerando os espetáculos que vejo e também os que desembarcam no Rio de Janeiro, não há como deixar de destacar o trabalho continuado da Cia. Brasileira de Teatro. Fiquei particularmente impressionado com a montagem para Apenas o Fim do Mundo, de Jean-Luc Lagarce. Felipe Hirsch também vem desenvolvendo trabalho sólido com a Sutil Cia., particularmente, Por um Novo Incêndio Romântico, A Memória da Água e Thom Payne/Lady Grey”, diz.

Em contrapartida, nas visitas ao Fringe, Schenker nota uma tendência a investimentos em espetáculos comerciais, “flagrantemente televisivos”.

 

Sem concessões

 

O papel do crítico deve ser o de “colocar-se como mediador entre o público e o criador, sem fazer concessões para nenhum dos lados”, acredita Valmir Santos. Para tanto, julga ser fundamental, ao formular uma reflexão, ter a consciência de para quem se escreve.

Shenker acrescenta que ideal seria o crítico de teatro de algum modo integrar o processo criativo, em vez de apenas dar um juízo de valor diante de uma obra fechada. “Afinal, o espetáculo teatral, diferentemente de um filme, é um organismo vivo, que sofre mudanças a cada apresentação”, argumenta.

 

Para o carioca, não se pode comparar a crítica praticada na atualidade à feita por Decio Almeida Prado “no formato de capítulos” ou mesmo ao espaço ocupado nos anos 80. No Rio de Janeiro, ele destaca o trabalho cumprido por Macksen Luiz no Jornal do Brasil e por Daniele Ávila e Dinah Cesare na revista eletrônica Questão de Crítica.

 

A transição para a crítica on-line é a tendência identificada por Santos, que a exerce no site Teatro Jornal. Mas a atividade crítica ainda se sustenta nos veículos impressos, diz. “É auspicioso, por exemplo, ver dois críticos escalados para a cobertura teatral na Folha de São Paulo, quando seu concorrente local, O Estado de S.Paulo, já vinha de revezar dois ou três profissionais. Na im prensa paulista, os críticos mais influentes são Mariangela Alves de Lima (O Estado de S.Paulo) e Luiz Fernando Ramos (Folha de S.Paulo).”

 

O paulista levanta um porém. “Ainda fico com a sensação de que a recepção crítica, em geral, não consegue dar conta das mudanças que estão acontecendo no mapa do teatro brasileiro, com avanços dramatúrgicos e estéticos para além do chamado eixo Rio-São Paulo. Falta-nos uma crítica que redimensione esse caráter nacional do teatro contemporâneo.”

 

Serviço:

6ª Mostra Cena Breve. Teatro Novelas Curitibanas (Rua Carlos Cavalcanti, 1.222), (41) 3222-0355. Hoje: 1999=10 – com Quem Somos Nós?; Calçolas – com o Núcleo Vagapara; Prólogos – com a Cia. Subjétil. Amanhã: Se Conselho Fosse Bom Seria Ação de Classificados – com os Cães Lacrimosos; RG – 38 e Mais Nada – com a Cia. As Medéias; O Treinador – com a Pausa Cia. Às 19 e 21 horas. R$ 10 e R $5 (meia).

2º Pequeno Grande Encontro de Teatro para Crianças de Todas as Idades. Teatro José Maria Santos (R. Treze de Maio, 655), (41) 3322-7150. Hoje: Surpresa – com a Cia. Manoel Kobachuk. Amanhã: Sobrevoar – com a Cia. do Abração. Às 16h. R$ 10.

 

 

 

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 11 de novembro de 1990. Local – Página 8

 

Valmir Santos

 

O grupo Teatro Experimental Mogiano (TEM), um dos expoentes da arte cênica na história da cidade, está completando 25 anos de atividade. Para comemorar as bodas de prata, uma troupe de ex-atores que participaram da criação do TEM, em 1965, apresenta amanhã e terça-feira, às 20h30, no Teatro Municipal “Paschoal Carlos Magno” – com entrada franca – a peça “Ainda Tem,” retrospectiva das montagens do grupo até o início da década de 70.

Segundo Regina Lúcia Moreira Gomes, 42, e João Antônio Dias, 47, ex-atores que integram a equipe responsável pelo espetáculo, “Ainda Tem” marca o encontro de todo o elenco que atuou entre 1965 e 1972, um dos períodos mais férteis do grupo que ainda está em atividade (leia texto nesta página). “É a forma que encontramos para mostrar que o sonho, o ideal do teatro, ainda não acabou”, afirmam. “Nós, os mais velhos, passamos nossa experiência à geração que está aí e tem tudo para dar certo também”.

Hoje, boa parte dos ex-integrantes do TEM desenvolvem atividades em outras áreas. São advogados, professores, administradores, artistas plásticos, escritores, poetas. Alguns ainda moram em Mogi das Cruzes; outros se mudaram, mas não perderam contato com o grupo.

O embrião do TEM foi o Grêmio Estudantil Ubaldo Pereira (Geup) do Instituto Washington Luís, o pólo político-cultural-esportivo dos estudantes mogianos em meados da década de 60. Ali, percorreram o caminho das artes. Música, poesia e teatro eram o carro-chefe. Semanalmente acontecia o show de auditório “Escola de Grupo”, ao vivo, onde apresentavam poemas, canções e esquetes teatrais.

A primeira apresentação do  grupo  aconteceu em agosto de 1965, com a leitura  radiofônica  da peça “Em Tempos de Inconfidência”, escrita por Milton Feliciano de Oliveira, no salão da antiga Rádio Marabá (hoje Rádio Diário de Mogi), que funcionava no prédio onde está localizado hoje o Cine Avenida.

“Em Tempos de inconfidência” antecedeu o espetáculo “Noite de Poesia e Bossa”, censurada pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão do governo federal, devido à analogia política que fazia ‘ com a situação do País, no pós-golpe militar. Era dezembro de 1965. No mesmo mês acontecia outro espetáculo, “Tem Noite Feliz”, um auto de Natal.

Depois de alegres intervenções radiofônicas e dos lamentáveis dribles sobre a marcação cerrada da censura do governo Castelo Branco, finalmente o TEM subiu ao palco para apresentar a primeira montagem efetiva: “A Exceção e a Regra”, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, com direção de Armando Sérgio da Silva. Foi encenada no Liceu Braz Cubas, em agosto de 1966 (um ano depois da criação do grupo). Participando do 4º Festival do Teatro Amador do Estado de São Paulo, realizado naquele ano, a peça obteve prêmios de melhor espetáculo, direção, sonoplastia, maquilagem e iluminação.

No ano seguinte, 1967, foi a vez de “Canudos”, histórico brasileiro sobre a vida de António Conselheiro; em 1968, ‘Yerma”, do escritor espanhol Federico Garcia Lorca, e “Aquele Que Diz Sim, Aquele Que Diz Não”, de Milton Feliciano (parte do elenco chegou a ser detida certa vez quando distribuía panfletos da peça, tida como “subversiva”); e, finalmente, “E a Sua Família Continua Unida?”, também escrita por Feliciano. Nesse período, realizaram ainda montagens infantis (“Pluft, o Fantasminha”, “A Bruxinha Que Era Boa”, “A Árvore Que Andava” c “Tio Platão”).

 

Box

Ex-secretário de Cultura foi um dos idealizadores

 

Armando Sérgio da Silva, 44, ex-secretário municipal de Cultura, na gestão do prefeito António Carlos Machado Teixeira, foi um dos fundadores do TEM. Lembra com saudades das suas participações nos shows que aconteceram no “palquinho” do Instituto Washington Luís. Havia um quadro semelhante à “Escolinha do Professor Raimundo”, da Rede Globo, no qual, aos 14 anos, ele interpretava um dos alunos pentelhos da classe. Também foi um inveterado dublador das canções de Elvis Presley e do conjunto The Platters.

Na Rádio Marabá, Armando realizou vários esquetes. Os programas eram escritos por Antônio Benetazzo, desaparecido durante a ditadura (de acordo com Armando, sua ossada foi encontrada há poucos meses numa vala clandestina do cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus). A locução ficava por conta de Sérgio Corrêa.

Segundo Armando, o TEM surgiu da necessidade de se fazer um teatro voltado para a pesquisa, desvinculado da prática convencional. Identifica o grupo com o movimento Oficina, emergente nos anos 60, pelo trabalho mais espontâneo, não levando tanto em consideração a apuração técnica e formação do ator, a exemplo do que acontecia no Teatro de Arena.

Armando Sérgio dirigiu “A Exceção e a Regra”, de Brecht, uma das peças mais premiadas do TEM. Permaneceu no grupo até 1967, quando foi estudar na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), onde atualmente leciona pós-graduação na disciplina Interpretação do Ator, tendo estrelas globais entre os alunos, como Irene Ravache e Regina Braga. Também dá aulas no curso de Comunicação Social da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC).

Na sua opinião, o movimento teatral em Mogi “sempre foi forte”. Cita, como exemplo, os 23 grupos que existiam na cidade durante sua gestão na Prefeitura (1982-1988). Armando, no entanto, se esquiva de avaliar a arte cênica mogiana na atualidade, alegando estar “afastado” das atividades locais em função das aulas na USP. Dos 23 grupos que citou, hoje, pelo menos 80% se dissolveram. (V.S.)

 

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Diretora diz que montagem ignora nomes fundamentais

 

Na opinião da diretora do TEM, Clarice Jorge, 53, há 20 anos no grupo, o espetáculo preparado para homenagear os 25 anos deixou nomes importantes  de  fora.   “Os  ex-atores  se detiveram apenas aos primeiros cinco anos do TEM e se esqueceram dos outros 20 anos”, disse. “Eles não foram leais e, para o homem, lealdade é fundamental, sob risco de se tornar tão somente um bicho a mais na natureza”.

Entre os integrantes que passaram pelo grupo, Clarice cita Mário e Marco Aurélio Namura, Paulo Fernandes, Levi Quintas Oliveira, Mário e Márcia Clacenko, Carlos Leonel Pastos, Aírton Durval da Mota, Marina Nogueira, Gina Muffo e José Miguel de Matos.

Clarice afirmou que foi convidada a participar da montagem de “Ainda Tem”, mas achou por bem não entrar na peça porque ainda atua no TEM. “Não sou ex”, disse. “Continuo no exercício da atividade teatral, o que na minha opinião é mais importante que comemorar os 25 anos”.

O TEM dos anos 90 se resume a seis atores. O grupo é presidido pelo escritor Nelson Albissú. Atualmente ensaiam “Os Cantores do Rádio”, de Albissú, cuja estréia está programada para janeiro do próximo ano — em dezembro serão feitas apresentações em creches e entidades carentes de Mogi, em caráter beneficente.

A diretora lembra/emocionada da peça “Ultima Estação”, também escrita por Albissú, que percorreu mais de 120 cidades entre 1985 e 1988. A montagem mais recente do grupo foi “O Aniversário de Mamãe Júlia”, do mesmo autor, realizada no ano passado. (V.S.)

 

 

Box

Feliciano escreveu “Ainda Tem”, uma retrô das peças

 

Principal autor das peças montadas pelo TEM durante os primeiros seis anos de vida do grupo, o escritor e poeta Milton Feliciano de Oliveira, 47, preparou “Ainda Tem” para o reencontro dos amigos. “Nossa aventura teatral foi importante”, conta. “Retratamos um período em que Mogi teve uma forte resistência político-cultural e, por isso, não poderíamos deixar os 25 anos passarem em branco.”

Feliciano integrou o TEM de 1965 a 1971. Entre as principais montagens de sua autoria, estão “Tiradentes”, “Canudos”, “Aquele Que Diz Sim, Aquele Que Diz Não”, “E a Sua Família Continua Unida?” e “Leone e Lena”. Foi um dos idealizadores do show “Escola de Grupo”, no Instituto Washington Luís, a gênese do grupo.

Em “Tiradentes”, censurada pelo Dops, Feliciano fez um paralelo com o sufoco do regime militar vigente. “Através da história de Joaquim José da Silva Xavier, que curiosamente não se auto-intitulava doutor, tampouco era alienado, mostramos a batuta dos militares sobre nossas cabeças”, explica. Na oportunidade, ficou detido no Dops, em São Paulo, durante quatro horas tentando convencer “Dona Solange” – a mulher da tesoura – a liberar a peça. Nada conseguiu.

O escritor se afastou do TEM em 1971, quando se mudou para Porto Alegre (RS). Em 1977, voltou para Mogi com “Bandeirinha ou Boné, Cavalheiro?”, com o grupo Teatro Sérgio Corrêa. Foi uma passagem rápida. No ano de 1980 trouxe ao público mogiano “Amor (te) Natal”, uma versão diferente sobre a vida de Jesus Cristo. Esta peça também foi censurada em 1970 e liberada uma década depois.

Hoje, à frente da Distribuidora Porto Alegre, Milton Feliciano continua escrevendo. Na última quinta-feira lançou o livro “Olhei Minha Vida” – uma retro do seu fazer teatral. Em “Ainda Tem”, que será apresentado amanhã e terça no Municipal, traz fragmentos das peças que montou no grupo, além da leitura de poesias e trechos de músicas da época. “Teatro se comemora com teatro”, afirma. (V.S)

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 15 de dezembro de 1991 – Local – Página 6

 

Valmir Santos

 

Um cavalo provido de cabeça humana casou-se ontem com uma moça acometida pela doença do coqueiro — mais para girafa —, filha do cangaceiro António das Almas. O enlace aconteceu em frente à Igreja Matriz. Antes das pazes, porém, houve muita confusão. Quem passou pela praça Coronel Almeida a partir das 12 horas viu de perto as armações de uma bruxa escatológica tentando azucrinar o pacato cotidiano de uma cidade de Pernambuco. Eram os 18 integrantes do grupo Teatro da Universidade de Mogi das Cruzes, o Tumc, encenando “O Capeta de Caruaru”, de Aldomar Conrado.

Sob a direção de Adamilton Andreucci Torres, 38 anos, o Tumc optou por levar o teatro às ruas e praças públicas na passagem dos seus dez anos de existência (veja o box). “O Capeta de Caruaru” encerra a trilogia iniciada em 89 com “A Cara Nossa de Cada Dia”, seguida por “Cenas em Cena”, apresentada na UMC no final do ano passado, com participação especial do grupo folclórico Meninos da Porteira, de Sabaúna.

Por l hora e 20 minutos a praça Coronel Almeida serviu de território-limite de Caruaru.   O   cenário, resumido num painel de pano de cerca de oito metros de largura, lembrando o formato de uma casa, traz os indícios da caatinga nordestina: o sol abrasador, o cacto ressecado, a mula esquelética e a pequena igreja, símbolo da fé daqueles que só deixam   o cariri no último pau-de-arara.

O prefeito António Cipriano e o padre Damião — que também passam, respectivamente, pelo beberrão Chico e o caipira Piu — são o pivô da história. A troca de personagens confunde os moradores. Dona Cosma está preocupada com o marido que transou com uma égua, dando origem ao cavalo de cabeça de gente. Este se apaixona pela moça que não pára de crescer e já está com a cabeça ao nível das telhas da casa. O pai, António das Almas, reivindica fervorosamente, junto à prefeitura local, um guindaste para que a filha possa se locomover. Eis os fenômenos absurdos que indicam a presença do capeta em Caruaru. Tudo, é claro, pincelado pelo humor escrachado dos nordestinos, profundos amantes da superstição.

 

 

Box

Muitos assistiram teatro pela primeira vez na vida

 

A apresentação do Tumc foi marcada pela descontração. Meia hora antes do início do espetáculo, as pessoas olhavam curiosas o elenco que se maquiava e vestia a roupa de cena. Com o cenário colorido, de autoria do artista plástico Ulisses Torraga Miranda Bruno, tudo exalava teatro. Aos poucos, o público se acomodou e estava formada a roda — o palco da rua ou, no caso, da praça.

Muitos assistiam a uma peça pela primeira vez na vida. “Estava passando por aqui e resolvi apreciar. É tudo muito bonito”, disse o ajudante-geral João de Assis Siqueira, 52 anos, emocionado com a arte cênica que nunca assistiu “por falta de tempo e muito trabalho”.

A escriturária Luciana de Moraes, 21 anos, chegou na metade de “O Capeta de Caruaru” e diz que foi “pega” pela energia transmitida pelos atores do Tumc. “É difícil acompanhar teatro em Mogi”, lamenta. “Felizmente, ainda temos o Tumc por aqui.”

Crianças, acompanhada pelos pais assistiam à apresentação, sorridentes. A Bruxa horrorosa, por incrível que pareça, era o personagem que mais provocava risos. “Esse pessoal é muito divertido. Tem tudo para fazer sucesso”, comenta o garoto Ricardo Vieira dos Santos, 16 anos, que já havia conferido a peça na praça João Pessoa, no sábado passado.

“E o primeiro espetáculo que assisto. É um barato”, elogia.

 

 

Box

Tumc faz público soltar risos e cumpre seu papel

 

De antemão, o teatro é das manifestações culturais que mais interfere nas transformações sociais. Quando ele é levado às ruas, às praças públicas — chega às pessoas que por “n” motivos jamais pisaram nos acarpetados teatros tradicionais— então ele assume proporções ainda maiores.

O Tumc fecha os seus dez anos de vida com chave de ouro. “O Capeta de Caruaru” disse a que veio. O público riu o tempo todo. A peça de Aldomar Conrado foi feita para isso. Mas o escracho recheado com pitadas de LBA e crise econômica fica ainda mais interessante.

Sob um sol comportado, comparando-se com a temperatura dos últimos dias, o elenco suou a camisa mais uma vez. Com idades que variam de 19 a 30 anos, são todos estudantes ou ex da UMC. Compartilham os estudos com os ensaios. Adamilton os preparou muito bem. Na verdade, o Tumc tem uma característica que o difere de um grupo de teatro convencional: é um conjunto de pessoas umbilicadas pelo coleguismo de escola. Mas a amizade transcende e faz com que continue entre aqueles que já concluíram os estudos.

 

Box

Uma década em cena

 

1981  – “O Planeta dos Palhaços”, de Pascoal Lourenço Teudesch, e “Pluft, o Fantasminha”,  de Maria Clara Machado.

1982  – “A   Bruxinha Que   Era   Boa”,   de   Maria Clara   Machado,    e “Uma Chama de Luz”, de Botira Camorin.

1983   –   “Uma Luz no Céu”, de Jane Gatt.

1984   –   “Pluft, o Fantasminha   de   Maria   Clara Machado no Século da Te-le-Visão    do  Pessoal do Tumc”,  uma  adaptação anarquista de  Ademilton Andreucci Torres.

1985   – “A Vida Escrachada de Joana Martins e Baby Stompanato”, de Bráulio Pedroso.

1986/87 – “Uma Eleição em Bruxópolis”, do mogiano Denerjânio Tavares de Lyra.

1989   –  “A Cara Nossa de   Cada   Dia”,   montagem coletiva do Tumc,  a partir da    poética    dos    próprios atores.

1990  –  “Cenas em Cena”, montagem coletiva do grupo, com colagem de textos de  Brecht,  Peter Weiss, Oswald de Andrade e Nelson Rodrigues. Participação especial do grupo folclórico Meninos da Porteira, de Sabaúna.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi, sem data. Caderno A – capa

 

VALMIR SANTOS

 

O espírito da brincadeira em “Nas Trilhas da Transilvânia”, o esboço, um ano atrás, está presente no primeiro ato de “Drácula e Outros Vampiros”, título da montagem agora em cartaz em São Paulo. Antunes Filho, aos 67 anos, libera sua verve juvenil no novo espetáculo.

Com um elenco repleto de adolescentes, a sensação é de que estamos acompanhando um bando de estudantes aprontando das suas num playground de horror e riso.

De fato, na primeira parte, com exceção do transe efêmero provocado pela vibração dos movimentos dos atores, adaptado de uma dança de Bali (kecak), não há indícios de um trabalho do qual o público assimile imediatamente se tratar da assinatura do diretor, um mestre da cena brasileira.

Um Antunes surpreendente e aventureiro é o que desponta nesta montagem do Centro de Pesquisa Teatral (CPT). A começar pelo peso do tratamento visual em cena. Parênteses para a equipe de J.C. Serroni, com um cenário entranhado no mito do vampiro, sobretudo nas texturas. Idem para o tratamento de sombra na iluminação de Davi de Brito.

No início, muito gelo seco ao som de Black Sabbath. A competente trilha sonora de Raul Teixeira é crucial nas passagens em que a atmosfera, a instalação do clima (gótico ou passional, com direito a tango), importa mais do que propriamente o jogo interpretativo.

Sim, o ator que Antunes sempre colocou em primeiro plano, surge aqui diluído. O álibi talvez fique por conta da safra de novatos, a maioria com “bagagem” de apenas quatro meses de CPT.

Resta a investida no coletivo, na “coreografia” de palco que o diretor domina muito bem. O deslocamento dos coros (Mortos-Vivos, Comitê de Recepção e Dracula’s Club, por exemplo) se dá harmoniosamente no espaço cênico.

Antunes inverte a expectativa para trazer à tona o “trash” que assume em sua formação. Permite-se revelar um outro lado criador – mais anárquico, por que não? É escancarado o ar patético com o qual constrói o Drácula interpretado por Eduardo Cordobhess. Um Drácula palhaço.

No segundo ato, volta o encenador-cabeça. E “Drácula e Outros Vampiros” diz a que veio. Entra em cena a metáfora da burguesia sanguessuga e da direita extremista que avança à beira do próximo milênio. A síntese do espetáculo demora, mas aparece: a cena em que Drácula é convertido em Hitler, emoldurado no esquife, discursando raivosamente. A intolerância está na ordem do dia.

Mas não é o arremate antuniano que se esperava. Apesar das várias citações (o coreógrafo Kurt Jooss, a cineasta Leni Riefenstahl, o escritor Baudelaire), a peça resulta uma metáfora pálida. Nem Sepultura, ao final, dissimula a frustração. A concepção da montagem que fruía na cabeça de Antunes quando da conversa com os jornalistas, na véspera da estréia, prometia mais encantamento e fúria.

 

DRÁCULA E OUTROS VAMPIROS – Concepção e direção: Antunes Filho. Com Grupo Macunaíma (Lulu Pavarin, Geraldo Mário. Ludmila Rosa e outros). Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. TEATRO SESC ANCHIETA  (rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 16,00 e R$ 20,00 (sábado). 75 minutos

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

O Diário de Mogi

São Paulo, quinta-feira, 07 de junho de 2005

TEATRO

Companhias de Argentina, Bolívia e Chile circulam por festivais em Londrina, Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro

Companhias de Argentina, Bolívia e Chile circulam por festivais em Londrina, Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro

VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local 

 

Temporada de teatro sul-americano no Brasil. Isso é raro. Historicamente dedicado ao segmento, o Festival Internacional de Londrina (Filo 2005) irradia projetos como Corredores Culturais do Mercosul (que também vai a Curitiba e a outras cidades do interior paranaense) e a Mostra Internacional de Teatro (MIT), que percorre os centros culturais do Banco do Brasil em Brasília e Rio.

A programação conjunta envolve pelo menos três projetos emblemáticos. É o caso de “Gemelos” (gêmeos), espetáculo com ex-integrantes da Cia. La Troppa, do Chile, dissolvida em março passado após 18 anos de atividades.

Os atores assumem o lugar dos bonecos para dar vida aos personagens adaptados da história da escritora húngara Agota Kristof (“O Grande Caderno”). Trata-se da infância de dois irmãos gêmeos numa cidade européia durante a Segunda Guerra Mundial.
Da Bolívia, o grupo Los Andes traz “En un Sol Amarillo” (sob um sol amarelo). Retrata a corrupção na seqüência do terremoto de 1998 que abalou cidades camponesas daquele país.

A jogatina financeira que rege as vidas pública e privada também se reflete na montagem do grupo argentino El Patrón Vazquez para “La Estupidez”, de Rafael Spregelburd. Em chave cômica, três policiais em serviço, um grupo de amigos em férias, dois contrabandistas de obras de arte, um cientista que mantém uma relação problemática com o filho e uma jovem em cadeira de rodas se desdobram em “papéis” como jogadores compulsivos, investigadores e mafiosos italianos. 



Festival Internacional de Londrina
Quando:
 3 a 19/6 (R$ 10; tel. 0/xx/43/ 3324 9202; www.filo.art.br)

Corredores Culturais do Mercosul e Mostra em Língua Espanhola
Quando:
 6 a 26/6 (R$ 6 a R$ 10; tel. 0/xx/ 41/3304-7953;www.pr.gov.br/guaira)

Mostra Internacional de Teatro – CCBB Brasília
Quando: 10 a 26/6 (ter. a sáb., às 21h, e dom., às 20h; R$ 15; tel. 0/xx/61/310- 7087) e CCBB Rio, de 16 a 26/6 (ter. a sáb., às 19h ou 21h; dom., às 20h; preço a definir; tel. 0/xx/21/3808-2020;www.bb.com.br/cultura) 

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 25 de outubro de 1998.   Caderno A – 4

Montagem da Cia. Folias D’Arte aposta na transformação pela ética

VALMIR SANTOS

São Paulo – De Fellini, o espírito libertário. Do brasileiro anônimo, a so­brevivênCia. Em ambos, enfim, a resistência. “Folias Fellinia­nas” chacoalha as bases do país, expõe suas chagas e imediata­mente celebra a ética, em todas as suas instâncias, como única possibilidade criativa e transfor­madora para os tempos que cor­rem.

Quem, afinal, em sã consci­ência, pode compartilhar da pre­gação rasteira de que “ética demais atrapalha”? Como exercer a cidadania com a bandeira do “rouba, mas faz”? “Folias Felli­nianas” questiona tudo isso sem xenofobismo de araque. Faz um grito de alerta para esse Brasil neoliberal e globalizado que vem invertendo absurdamente os mínimos valores. A fala de um dos personagens é suprassumo: “Integridade, em tempos de crise, é crime”.

A montagem da Cia. Folias D’Arte atualiza o engajamento do teatro brasileiro nos anos 70, quando o “inimigo”, o regime militar, era mais visível. O su­porte agora está fundado não exatamente na política, mas no ser humano, na figura dos mi­lhões marginalizados socialmente e, ainda assim, depositári­os de esperanças a perder de vis­ta.

Tampouco se prega o discur­so direcionado dos Centros Po­pulares de Cultura (CPCs), no auge da União Nacional dos Estudante (UNE). Os tempos são outros. No espetáculo, o conteúdo político-ideológico é emoldurado pela alegoria, pelo vôo dos artistas.

Evoca-se o espírito mambembe, a comédia de arte, o musical, a festa popular, a poesia cantada, o painel suspenso que retrata a história do povo como nos murais de Torres García, enfim, a maté­ria-prima é toda ela composta do ato de criar, de transcender para derrubar os “muros”, para “salvar o sonho”.

“Folias Fellinianas” cita Euclydes da Cunha, Castro Al­ves, Joãosinho Trinta, entre ou­tros, para reciclar as memórias vivas. Aqui, os personagens não têm identidade. O Diretor (Gui­lherme Sant’anna), a Produtora (Nani de Oliveira), a Jornalista (Patrícia Barros), o Brasil (Ro­gério Bandeira), o Velho (Valdir Rivaben), a Mãe (Saryda Anda­ra), o Rapper (Edgar Bustaman­te) e o Anjo Branco (Fernando Correa) patinam em suas pers­pectivas a curto, médio ou longo prazo.

Reunidos por acaso em tor­no da gravação de um filme, eles serão mobilizados pela pre­sença de Ninguém (Renata Zhaneta), um mensageiro incumbido de entregar cartas, a pedalar por aí em sua bicicleta.

O texto de Reinaldo Maia, gestado em processo com o elenco, concede a Ninguém o tesouro a ser cobiçado: a plenitude de uma ética pessoal coeren­te com o mundo que o cerca; uma fluência de viver em con­traste com o final de século acelerado. A saída está no indivíduo e não na nação.

Esclarecidas as partes, tem início a canibalização de Ninguém, alçado à condição de “santo” graças às visões que têm por conta de uma dor de cabeça intermitente, pela qual roga apenas uma aspirina – mas lhe receitam a “canonização”.

O circo de horrores, com tintas neo-realistas, apresenta desde números sensacionalistas, como as irmãs siamesas (na sugestão para acabar com a fome, uma come o que a outra defeca, ciclo da miséria), até culminar com a morte de Ninguém, queimado vivo tal qual o índio Galdino Jesus dos San­tos.

É um espetáculo que não dá um soco no estômago e nem rouba o chão do espectador. Simplesmente não ignora a história que passa diante dos olhos de quem está disposto a ver. Ao peneirar o passado para constituir seu presente com verdade, “Folias Fellinianas” estabelece uma ponte contundente, porque embalada com o talento dos seus artistas.

Renata Zhaneta está à von­tade no papel masculino de Ninguém. Arma a voz e o corpo com desenvoltura, é tranqüila na passagem interativa com a platéia. Extrai magia na relação com a bicicleta, curiosamente o veículo que equilibra o personagem no chão da razão ética.

Guilherme Sant’anna não fica atrás com seu Diretor histérico, ganhando a empatia instan­tânea do público. As demais atuações também envolvem com criatividade. Uma ressalva para Rogério Bandeira (Brasil), com matizes remanescentes de “Cantos Peregrinos”, o que limita as possibilidades mil do personagem.

Na estréia, quarta-feira passada, “Folias Fellinianas” ressentia-se ainda, aqui e ali, de um excesso de retórica no texto. São algumas reiterações, dico  tomias (bem x mal, solidários x mercadores da alma) que terminam por dispersar a atenção do espectador.

O que fica, porém, é a coerência estética e ideológica da Cia. Folias D’Arte e do seu diretor, Marco Antonio Rodri   gues. Como em “Verás Que Tudo É Mentira” (1994), depois em “Cantos Peregrinos” (1997), trata-se de um projeto que elege a arte popular, em sua excelência, como veículo de formação de um público de teatro mais crítico e, por extensão, de seres humanos mais dignos com seus papéis na sociedade.

 

“Sonhar, viver, criar”, esse é o espírito. Pode haver engajamento mais honesto?

Folias Fellinianas – De Reinaldo Maia. Direção: Marco Antonio Rodrigues. Direção Musical: Sérgio Villafranca. Cenografia: Fernando Monteiro de Barros. Figurino: Atílio Belline Vaz. Preparação corporal e circense: Mariana Maia. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Aliança Francesa (rua General Jardim, 182, Vila Buarque, tel. 259-0086). R$ 10,00 (quinta) e R$ 20,00. Duração: 120 minutos. Até final de novembro. Apoio: Fundação Conrado Wessel.

Rodrigues dirige 4 peças

São Paulo – Com “Folias Fellinianas”, Marco Antonio Rodrigues soma quatro peças na atual temporada paulistana. Andrade (leia crítica abaixo)

O musical “Cantos Peregrinos”, de José Antônio de Souza, está em cartaz há um ano e meio, agora no Teatro Ruth Escobar, com a Cia. Folias D’Arte.

A comédia “O Assassinato do Anão do Caralho Grande”, de Plínio Marcos, que estreou há um ano, fica até hoje no Sérgio Cardoso, interpretada por 35 atores oriundos da Oficina Cultural Oswaldo de Andrade (leia crítica abaixo).

E a tragédia “Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues é encenada por alunos recém-formados no Teatro-Escola Célia Helena, onde, permanece em cartaz.

“É uma coincidência feliz poder trabalhar com essa gente que praticamente forma uma família, no bom sentido”, diz Rodrigues. “Para nós o teatro nunca deixou de ser engajado”

 

A Cia. Folias D’Arte tem cinco anos. Entre as montagens anteriores destaca-se “Verás que Tudo é Mentira” (1994), de autoria de Maia. 


Senhora dos Afogados –
Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Escola Célia Helena (rua Barão de Iguape, Liberdade, tel. 279-0470). R$ 10,00. Até dia 15.

 

Cantos Peregrinos – Sexta e sábado, meia-noite. Teatro Ruth Escobar (rua dos  Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). R$ 3,00 (consumação mínima).

 

“Assassinato…” traz atores sem vícios

São Paulo – O circo fala alto no peito do dramaturgo Plí­nio Marcos, 61 anos. Ele que já foi palhaço e tem no pica­deiro a base para o fazer artísti­co. “Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que é por eles que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha que se valer da técnica mecânica”, encerrou assim o seu célebre manifesto “O Ator”.

Em “O Assassinato do Anão do Caralho Grande”, dos textos mais recentes (1996), o autor de “Dois Perdidos Numa Noite Su­ja” (1965) retoma a defesa orgâni­ca do artista como ser em constante conflito com a sociedade em que vive.

Plínio sabe esquadrinhar o Brasil em que vive, O poder, em sua constatação mais medíocre, é representado pela prefeitura, pela justiça, pela mídia, na base da velha e viciada estrutura.

 

Do outro lado, a resistência humanista dos artistas. Aqui, re­presentados pelos ciganos do Gran Circus Atlas. São trapezis­tas, acrobatas, enfim, gente que trabalha sob lona e sobrevive da magia de encantar o público.

Essa dualidade na forma de olhar a vida ganha relevo na montagem do diretor Marco Antonio Rodrigues, com jovens das Oficinas Culturais Oswaldo de Andrade. O espetáculo estre­ou em janeiro e encerra tempo­rada hoje no Sérgio Cardoso.

 

Pelo caráter alegórico de “O Assassinato do Anão…”, um li­belo à arte do circo, Rodrigues tem a seu favor a energia com a qual o grupo de 35 atores pisa no palco.

São interpretações despoja­das e fundamentadas em pes­quisa cênica que leva em consi­deração o corpo como instru­mento crucial para desenhar personagens tão arraigados na cultura brasileira.

 

Fábio Ferretti (Dona Ciloca), Ireny Silva (Mãe Di), Nani de Souza (Zolá Manuche), Paulo Henrique (Macaco) e Denis Go­yos (Bicha Lili), para citar al­guns, têm seus personagens nas mãos. E são papéis no limite do estereótipo, felizmente recriados de acordo com o talento de cada um. (É louvável, por exemplo, a forma como Henrique coloca seu corpo e alma à disposição do seu Macaco, sem superficialidade).

 

O diretor costura a montagem com mão barroca. É minucioso na expressão dos atores, na ocupação harmônica do espaço, in­clusive no plano aéreo. A ceno­grafia (Atílio Beline Vaz) catalisa a cena com tranquilidade, transitando da periferia para o centro do palco sem prejuízo dos territórios dedicados ora ao “co­ro”, ora à atuação solo.

 

“O Assassinato do Anão…” consagra a força do ator jovem, despido de vícios, aberto para um novo com o qual dialoga de igual para igual, sem se apeque­nar. Isso quando o diretor – caso de Rodrigues – deixa.

 

O Assassinato do Anão do Caralho Grande – De Plínio Marcos. Direção: Marco Antonio Rodrigues. Cleber Toline, José Paulo Dantas, Ibrahim Lyra, Rodolfo Falcão, Mariana Maia, Natasha Rodrigues, Nei Gomes, Allan Benatti etc. Última sessão hoje, 20h. Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 196, Bela Vista, tel. 288-0136). R$ 10,00. Duração: 100 minutos.

 

Em comédia, Dip inspira reflexão

São Paulo – “Eu não quero mudar de computador, de você, de milênio!”, protes­ta a personagem de “Por Água Abaixo”, uma “comédia filosó­fica” escrita e interpretada por Angela Dip. Esta comediante de mão cheia condensa maturidade nesta que é das suas melhores aventuras pelo teatro, escrevendo e atuando com esmerado senso de inventividade e leveza.

 

A começar pela gênese do texto. Dip se inspira na história da professora de etiqueta e dan­ça Annie Taylor. Em 1901, esta doidivanas desceu as Cataratas do Niágara (EUA), protegendo seu corvo com apenas um barril. Resultado: esconações, aqui e ali, e muita fama à custa da co­ragem.

 

Pois a atriz surge com um barril-cenário-figurino e, em torno desse objeto esférico, ela convida o público a embarcar nas desventuras de uma mulher desesperada à beira do milênio, em crise como todos, mas a ape­nas alguns minutos de se atirar da catarata.

 

Os queixumes vão desde a pêndega com Deus sobre a ve­lhice, passam pela implicância com as regras gramaticais (no­tadamente os coletivos de “chi­nelos”, “cupins”, espelhando a busca da própria individualidade), enfim, e chegam aos pro­testos pela modernidade que impõe mais do que interage.

 

É com esse espírito desbra­vador que a mulher não se atri­bui um nome à personagem, conferindo-lhe um caráter uni­versal pela média acaba rom­pendo totalmente com as noçõ­es de espaço, explorando todas as direções. “O chão não é o li­mite, é o teto”, filosofa.

 

Nesse movimento centrífu­go, a mulher transforma-se em furacão de si. De outra forma, não conseguiria sair do maras­mo, ir adiante para “viver, dorrmir, sonhar, quem sabe?”, como deixa claro o bordão da anti-he­roína politicamente incorreta, chata e encantadora em sua transparência.

 

Angela Dip esbanja a segu­rança de uma Denise Stoklos em monólogo, corroborada pela direção de Vivien Buckup (“Pa­ra Sempre”, “Cenas de Um Ca­samento”), que a cada espetácu­lo afina sua relação com o traba­lho de ator e, como conseqüên­cia, o privilegia com equilíbrio. (Aliás, ressalta-se aqui o femi­nismo subliminar do texto).

 

A exigência corporal de Dip é atendida com muita técnica. “Por Água Abaixo” é uma montagem enxuta. Na sua brevidade de 50 minutos, estimula a refle­xão com recursos iminentemen­te artísticos (a extremidade o­posta da solidão) e, cereja no bolo, traz uma Angela Dip em estado de graça.

 

Por Água Abaixo – Texto e atuação: Angela Dip. Direção: Vivien Buckup. Sexta e sábado, meia-noite. Teatro Crowne Plaza (rua Frei Caneca, 1.360, Cerqueira César, tel. 289-0985). R$ 15,00. Duração: 50 minutos.

 

 

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 24 de outubro de 1998.   Caderno A – 2


Antonio Fagundes volta ao cartaz como professor aposentado em “Últimas Luas”

VALMIR SANTOS


São Paulo – Antonio Fa­gundes, 50 anos, é das raras estrelas da televi­são que enveredam pe­lo teatro com intimidade e respeito que o ofício pede. Para ele, um galã de novela, seria fácil arrebanhar o públi­co. Mas quando esse ator en­cabeça a produção e o elenco de uma montagem, não se es­pere o riso fácil das comédias de sala-de-estar. O Fagundes do palco é, antes de tudo, um vigia de si mesmo. Diante da construção de um personagem, ele parece exigir um ri­gor correspondente ao cum­primento do horário dos es­petáculos (um relógio ajusta­do com Brasília está postado sobre a bilheteria, para que o espectador não tenha dúvida da pontualidade).


Soa exagero para o “jeiti­nho brasileiro”, mas é apenas o exercício milimétrico da plenitude ética que deveria pautar as relações humanas nessa virada de século, quan­do os valores remam contra a maré. “Últimas Luas”, o texto que Fagundes escolheu para retornar aos palco, quatro anos depois, foi escrito pelo i­taliano Furio Bordon, um dos mais elogiados dramaturgos da nova safra italiana.

 

A peça aprofunda a questão do abandono da terceira idade, um fenômeno verificado em vários países, e a trata com fí­ligramas de protesto engajado. O mérito de Bordon, que faturou vários prêmios na Europa com sua primeira peça, escrita em 1993, é sondar o problema social acrescentando-o a potência do ser humano em superar os desafios.

 

Conta a história de um ex-professor de literatura apo­sentado, por volta dos seus 70 anos, em meio a uma crise de relacionamento com o filho e, ao cabo, consigo mesmo. Vi­úvo, independente e bem su­cedido na vida profissional, ele decide abandonar a casa onde mora com o filho e a mulher deste. Muda-se para uma casa de repouso, eufe­mismo para asilo.

 

Entre o conflito pai e filho – o orgulho é o principal estor­vo ao diálogo – e a reclusão do professor, desenvolve-se um painel ora delicado, ora muito cruel da incomunicabilidade e seus efeitos colaterais em vida. Para um papel de contornos tão difíceis, que passa a segunda parte da peça na vertigem de um solilóquio  interior, Fagundes agarra-se com determinação. A peça é dele, e sua escolha faz jus ao talen­to e ao carisma (como em “Fragmentos de Um Discurso Amoroso” ou mesmo no pro­fessor de “Oleanna”).

 

Quando caminha arrastan­do os pés; feito “velho engo­mando o chão, como formi­gas de chinelo”; quando ouve os “sons líquidos” dos “mor­tos cantando nos canos d’á­gua”; ou quando devota seu amor à plantinha, enfim, não são poucas as imagens de for­te expressão poética, bem ex­ploradas com aquela aura e­mocional que o ator emprega em seus papéis – uma carga e­mocional não exagerada, mas equilibrada.

 

Na medida em que condiciona o protagonista de “Últimas Luas” nessa perspectiva pessoal, numa espécie de papel-espelho, Fagundes ainda tateia para costurar os tempos da fala e da ação, o que prejudica certas passagens, como se viu na primeira semana da temporada. Talvez seja uma equação em mãos do diretor Jorge Takla, um encenador na acepção maior do termo, com um cenário de sua autoria que poderia ser resumido assim, e aliás o é: a profundidade vazia de uma tempestade de neve…

 

Takla soube transpor as contradições que Bordon im­prime em sua tragicomédia. A densidade flui como um sorri­so maroto no canto da boca de Fagundes, ainda que imerso na solidão, exemplo dos tipos criados pelo dramaturgo ir­landês Samuel Beckett.

No papel da esposa que morreu faz 30 anos, mas com quem o professor aposentado conversa no presente – a atemporalidade é outra característica marcante da peça, fundindo vários planos -, a atriz Mara Carvalho cumpre com elegância a brevidade que o papel lhe confere. Petrônio Gontijo, como o filho, é um contraponto um tanto melodramático, se comparado à performance suave de Fagundes – já se escreveu que o espetáculo é dele, pois não?

 

Últimas Luas – De Furio Bordon. Direção: Jorge Takla. Com Antonio Fagundes, Mara Carvalho e Petrônio Gontijo. Teatro Cultura Artística/Sala Esther Mesquita (rua Nestor Pestana, 196, Consolação, tel. 258-3616). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. R$ 20,00 a R$ 40,00. Duração: 90 minutos. Até 28 de novembro.

Homenagem a João Pacífico em CD

São Paulo – Nesses quatro anos afastado do teatro, Antonio Fagundes dedicou-se a “n” projetos – foram duas novelas vive atualmente Gumercindo em “Terra Nostra”) e quatro filmes (está em cartaz com “O Tronco”, de João Batista de Andrade). Porém um dos projetos mais inusitados foi a gravação do recém-lançado “Tributo a João Pacífico”, um CD em homenagem o compositor de “Cabocla Tereza” morto no ano passado, aos 89 anos.

 

São 12 sucessos de Pacífico, onde Fagundes empresta sua voz num exercício mais solidário do que propriamente profissional. Afinal, o ator não possui voz de chegada para levar a música dolente do autor cujas interpretações de Adauto Santos, Rolando Boldrin e Pena Branca e Xavantinho, para citar alguns, são memoráveis e sedimentaram a música raiz do homem sertanejo.

 

As participações especiais de Oswaldinho do Acordeon, Joao Mulato e Duo Fel, mais a direção de arranjos de Luiz Schiavon chancelam o acabamento nusical, capricham na melodia, mas a voz não reverbera com tamanha empreitada.

 

Fagundes topou o projeto sugerido por um filho do novelista Benedito Ruy Barbosa, na época de “O Rei do Gado”. Lamenta não ter conhecido Pacífico pessoalmente – que viveu seus últimos três anos de vida em Guararema, na casa do músico Freddy-, o que confere um tom de celebração póstuma ao “Tributo”.

 

Não há dúvida de que o CD dá – e daria, se vivo – maior visibilidade ao compositor João Pacífico, tão destratado pela mídia e pelo esquema da indústria fonográfica que não lhe surrupiou pouco. Mas ninguém ouve “Pingo D’Água” ou “Chico Mulato” indiferente, ainda mais com esforço sincero de um Fagundes. Uma ressalva: pena que a capa trai a própria idéia do projeto ao privilegiar somente a imagem e o nome do artista famoso sem qualquer referência àquele que, afinal, é alvo do tributo.

Amor filial às últimas consequências

 

São Paulo – Incensado co­mo um dos bambas da dramaturgia britânica no fim de milênio, Maartin McDonagh, 29 anos, chega ao Brasil por conta da atriz e pro­dutora Xuxa Lopes. Ela assis­tiu à peça “A Rainha da Bele­za de Leenane” e comprou os direitos do texto para montá­-lo em primeira mão.

E uma história corrosiva sobre a relação filial. Se em “Últimas Luas”, de Furio Bordon [leia crítica acima] a ponte pai e filho servia de pa­no de fundo, aqui ela é via única para a depauperação hu­mana levada às últimas conse­quências.
 
Xuxa Lopes está no papel da incandescente Maureen, filha insatisfeita com a vida por causa da “missão” de sub­meter-se aos ditames da mãe, Mag, a megera fanfarrona nu­ma das interpretações mais felizes de Walderez de Barros nos últimos tempos.

 

Ainda que a filha capitali­ze até o título da peça – “a rai­nha da beleza de Leenane”, a cidade onde moram, confor­me elogio descarado de Pato Dooley (Chico Diaz), homem com quem a quarentona perde a virgindidade, ainda assim é a supermãe Mag quem enfei­xa os contrastes da tragédia e da comédia que vão pontuan­do uma história difícil de ser imaginada numa casinha lo­calizada no topo de uma mon­tanha.

 

Pois é lá, entre as quatro paredes rarefeitas de uma co­zinha, sob testemunha de talheres, panelas e fogão – espaço iminentemente das mulhe­res -, que mãe e filha vão ca­librando o embate ensaiado em anos de convivência. Intri­gas e rancores são passados à limpo assim que as figuras masculinas penetram o terri­tório da normalidade aparen­te.

 

Antes de Pato, o galantea­dor, é seu irmão quem vai ba­ter à porta. Ray Dooley (Marcelo Médici) sintetiza arro­gância juvenil, gratuidade e desprezo por tudo (inclusive pessoas) que não digam res­peito ao umbigo.

 

Para uma platéia tipica­mente classe média alta, em sua maioria composta de se­nhoras mamães, “A Rainha da Beleza de Leenane” desfere um golpe certeiro na hipocri­sia dos lares, colhendo e des­pejando seus frutos sem pie­dade ou senões.

 

E aí entra o texto e a dispo­sição de McDonagh, impetuoso e afetivo. Realista, numa só palavra, mas costurando com a matéria-prima de que é composta o ser humano quando se arroga o direito de de­pender e fazer-se dependente do outro. O autor britânico tem o mérito de promover es­se debate sem lançar julga­mento.

 

Dando seus primeiros pas­sos na direção teatral, Cana Camurati surpreende pela amarração das cenas e pelo dedo na interpretação de grandes intérpretes. Xuxa Lopes e Walderez de Barros, cada uma a seu modo, estão entra­nhadas em seus papéis mas nunca “domadas”, voláteis. São visíveis os recursos técni­cos que manejam, quer na postura corporal, quer no an­dar displicente ou no venenoso desdém mútuo das perso­nagens.

 

Nessa história, os homens entram como meros figurantes. Até quando deveriam ser determinantes – Pato é um ga­lã de meia tigela e seu irmão não passa de um poço de abobrinhas -, quem dita as regras são as mulheres, mãe e filha. Pelo menos elas pensam as­sim, umbilicais, e imaginam matar a fome (de amor) com bolachas, como quer a pobre Maureen. E como quer o escárnio do autor.

A Rainha da Beleza de Leenane – De Martin McDonagh. Tradução: Adriana Falcão e Tatiana Maciel. Com Xuxa Lopes, Walderez de Barros, Chico Diaz e Marcelo Médici. Direção: Carla Camurati. Teatro Alfa/Sala B (rua Bento Branco de Andrade Filho, 722, Santo Amaro, tel. 5693-4000). Sexta, 21h; sábado, 19h e 21h30; domingo, 19h. R$ 30,00 e R$ 35 (sábado). Duração: 95 minutos. Até 19 de dezembro.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 11 de outubro de 1998.   Caderno A – 4

Inspirada na mitologia indígena, peça surpreende pelo despojamento e interpretações

VALMIR SANTOS

São Paulo – O chamado te­atro regional conquista cada vez mais espaço na cena brasileira. Desde os tempos de Ariano Suassuna (“Auto da Compadecida”), nos anos 60, até os dias que correm, ele vem descentralizando o foco do sotaque e dos cacoetes para alcançar um caráter mais universal, sem prejuízo das suas raízes.

Pode-se citar alguns encena­dores que contribuíram, em mai­or ou menor grau, com leituras inovadoras: Antunes Filho (“Ma­cunaíma”), Antonio Nóbrega (“Brincante”), Romero de An­drade Lima (“Auto da Paixão”), Carmem Paternostro (“Mer­lim”), Luiz Carlos Vasconcelos(“Vau da Sarapalha”), Nehle Frank (“Divinas Palavras”) etc.

Cada um em seu pedaço de chão (São Paulo, Salvador, João Pessoa, Recife, enfim) conceberam pesquisas de linguagem cênica que abriram flancos para o Brasil de dentro e, ao mesmo tempo, conectaram com o de fora, por obra e graça da sua eminência humana.

O espetáculo “Honorato”, em cartaz no Teatro Brasileiro de Comédia, filia-se a essa categoria de teatro regional que foge de facilidades como o diabo da cruz. Não foi à toa que seu diretor Paulo Ribeiro, sediado em São Paulo, levou pelo menos oito anos para chegar ao formato atual.

Ele também é autor do texto. Escreveu-o tomando como ponto de partida a lenda da Cobra Norato, garimpada pelo folclorista Luís Câmara Cascudo e vertida para o romance por Raul Bopp, dando origem à principal montagem do grupo mineiro Giramundo, comandado por Álvaro Apocalypse, outro pesquisador contumaz.

Ribeiro, ex-assistente de Vladimir Capella (“Píramo e Tisbe”), agregou outros elementos à história. O autor amplia a carga simbólica da mi­tologia indígena (Boto, Iara e Co    bra Grande) criando elementos que têm o impac­to das tragédias gregas.

Em “Honora­to”, Joana Candi­ru (Selma Luche­si) é amante de  Jaguarari (Eldo Mendes), um relacionamento que equivale à lenda amazônica do Boto, o homem misterioso que surge do nada, na calada da noite, e atrai as moças com seu olhar sedutor. Eles têm dois filhos, Honorato (Sandro Alvares) e Maria Caninana (Verônica Me­nezes). Como Ja­guarari pertence a outra instância, coube a Joana Candiru dar conta da criação de sua prole.

São informações que chegam ao espectador num pêndulo sutil de flash backs. No presente, Honorato é um jovem encruzado com a maldição da Cobra Grande, o que lhe impede de vi­ver como um ser humano co­mum. Na ânsia de libertar-se do estigma, ele conhece seu pai, Jaguarari, que lhe revela a fór­mula para afastar a Cobra Gran­de.

Se Honorato enxerga no pai redivivo a chance de uma guina­da, sua irmã tem uma posição o-posta. E ela, Maria Caninana, a propulsora de toda a tragédia.

Primeiro, esfaqueia a mãe. Depois, mata o, pai. Ao cabo de tanto sangue, é assassinada pelo irmão. Toda essa violência é deflagrada sem se apelar à visceralidade. Caminha-se pelo fio da fábula, do fantástico, sempre com precisão visual e interpre­tativa.

Como encenador, Ribeiro é econômico na medida em que a simplicidade torna-se um tesou­ro. Seus atores, jovens em mai­oria, são bem preparados. En­tregam-se por inteiro a persona­gens difíceis, porque entranha­dos de uma cultura autóctone, distante das grandes cidades.

Selma Luchesi faz uma interpretação apaixonada de Joa­na Candiru. Aos 30 anos de car­reira, a atriz domina as nuanças da mãe com parcimônia. Crista­liza a dor com controle absolu­to, sem exagero.

Eldo Mendes também se destaca como Jaguarari, perso­nagem calcado na imagem indí­gena. Nota-se a riqueza dos de­talhes, da postura de um ser que brota da natureza e desconhece condicionamentos. Mendes, co­mo Selma, como Ribeiro e co­mo toda a equipe de “Honora­to”, rezam a cartilha do instinto que a tudo move e a tudo pode – tal qual os personagens da histó­na.

É um espetáculo que emoci­ona pelo brilho ingênuo e since­ro, pela energia de atores como Renata Quintela (Joana jovem) e Daniel Alvim (Soldado de Ca­metá). Sem contar a encarnação primitiva do Pajé de Hizidio Carrigo.

Sandro Alvares, no papel-tí­tulo, não chega a arrebatar, visi­velmente pela pouca experiên­cia de palco, jovem que é. Seu Honorato pode não envolver na medida dos demais persona­gens, mas demonstra fôlego, so­bretudo nas passagens mais dra­máticas.

Rogério Moura, autor da música original do espetáculo, também entra em cena como Jo­ão, mas serve melhor ao músico do que ao ator.

(Inclusive, é um elenco que também canta letras de Geraldo Azevedo e Chiquinha Gonzaga, entre outros.)

Aliados aos intérpretes, es­tão Telumi Helen (figurinos) e J. C. Serroni (consultor visual) emoldurando uma atmosfera per­feita para uma peça que destrói completamente as noções de tempo e espaço. E sem a caricatura da floresta (o cenário des­materializa-se e fica por conta da imaginação do espectador). Mais a iluminação de Giggio Deliberato, e a suspensão está completa.

“Honorato” dá visibilidade ao trabalho de Paulo Ribeiro, tim diretor que coloca o teatro em uma escala maior, reco­lhendo-se muito aquém do tom personalista cooptado por boa parte dos colegas. Afinal, quando um jovem diretor pesquisa durante oito anos para montar uma peça – descontados problemas estruturais -, é por­que possui timing suficiente para penetrar o indevassável território do palco.

Honorato – Texto e direção:  Paulo Ribeiro. Assistente de direção: Paulo Capovilla. Assistente de iluminação: Vanderlei Conte. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Brasileiro de Comédia (rua Major Diogo, 315, Bela Vista, tel. 3104-5523). R$ 10,00. Até 20 de dezembro.

 

‘Química’ de atrizes sustenta montagem

São Paulo – Não é a mesma coisa. Um, dois anos atrás, Rosi Campos dividia a ce­na com Zezeh Barbosa em “As Sereias da Zona Sul”. Era uma dobradinha afiada. Agora, a a­triz volta ao cartaz com nova parceira, Cláudia Borioni. E a química se renova para melhor.

Na montagem anterior, a pe­ça de Vicente Pereira e Miguel Falabella, também agora sob direção do último, promovia um encontro de duas atrizes de es­tilos se não parecidos, no míni­mo próximos.

Era um embate que as nive­lava e, de certa maneira, as con­tinha em cena – uma em função de não ofuscar a outra, tamanho o poder de cena, e vice versa.

Com Cláudia, a mudança é significativa. Sua verve é mais sutil, de gestos pequenos, de olhares capciosos. Esse desequi­líbrio sustenta o espetáculo, a­qui numa versão visualmente mais “pobre”, comparada à an­terior (no Teatro Hilton), ocu­pando aqui um teatro de poucos recursos, o Cacilda Becker, no bairro da Lapa, zona oeste pau­lista.

Até essa pressuposta pobre­za é alçada ao mote de piada para “madames” Rosi e Cláu­dia deitarem e rolarem, a la Hebe e Ana Maria Braga. A química é perfeita. Nos qua­dros, num total de quatro, as diferenças físicas (uma é alta, outra baixa), bem como os es­tilos de interpretação, constitu­em combustão para deslanchar o humor.

“O Gabinete da Dra. Hully Gully”, o segundo quadro, cris­taliza as “especialidades” de ca­da uma. Rosi, na pele da médi­ca-monstro. Cláudia, como a pobre velhinha que tem dores no rim e vê seu órgão sendo co­tado para venda.

São momentos hilários, onde a médica usa de todas as artima­nhas – incluindo um gorila – para tentar convencer a velhinha da “venda”. Mas esta não se faz de rogada e quer saber tim-tim-por-tim-tim, num confronto surrealista.

À comédia ligeira de Pereira e Falabella, ainda que pesem seus escorregões racistas, sexistas – depois instituídos de vez no programa dominical “Sai de Baixo” -, Rossi e Cláudia acrescentam seus estilos marcantes. Soltas, à vontade, despachadas, elas convertem “As Sereias da Zona Sul” em entretenimento de alta voltagem cômica.

 

As Sereias da Zona Sul – De Vicente Pereira e Miguel Falabella. Com Rosi Campos e Cláudia Borioni. Elenco de apoio: Isabela Chiapetta e Carlos Pereira. Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Cacilda Becker (rua Tito, 295, Lapa, tel. 864-4512). R$ 10,00. Duração: 80 minutos.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 11 de outubro de 1998.   Caderno A – 4

Antunes Filho celebra humildade e sensibiliza em mais um exercício de palco com o CPT

VALMIR SANTOS

São Paulo – A espectadora questiona o elenco após a apresentação: “Qual foi meu papel nesta noite?” O que vim fazer aqui?”. A pergunta, perturbadora, sintetiza a experiência de “Prét-à-Porter 2”, mais uma empreitada de Antunes Filho à frente do seu Centro de Pesquisa Teatral (CPT/Sesc).

Como na versão primeira, que veio a público em março passado, não se trata de espetáculo, mas de “trabalho”, de “apresentação”. Tampouco corresponde a moldes como “happening”, “performance” ou “work in progress”. A melhor forma de compreender o novo Antunes Filho é, tal como ele, desarmar-se das verdades estabelecidas; é arriscar-se em busca da simplicidade, o que é extremamente complexo em se tratando da natureza humana.

Foram deixados de lado os “truques”, “macetes”, tudo a favor da essência da interpretação, da dramaturgia, da concepção estética, enfim.

Em sua franqueza e despojamento, “Prét-à-Porter 2” desconstrói para reerguer a poesia cênica desbotada no balaio pós-pós.

Sob o primado absoluto do ator, a quem delega o poder da criação em instância maior – e advogando para si a capa de coordenador, não mais diretor -, Antunes vive um hiato dos mais produtivos.

Ele está nu, cercado por jovens em seus primeiros passos no teatro e com toda a energia redobrada para erguer e destruir coisas belas. É sob essa condição transitória que se deve ir ao Sesc Consolação. O encenador escolheu um caminho radical e horizontal que vai de encontro ao público pela via do avesso.

É como se estivéssemos detrás da coxia, contemplando as tentativas, os erros, os acertos. Tal procedimento não constitui propriamente novidade no teatro, mas surpreende por causa do quilate de um Antunes. Aqui, a ruptura é total.

Antes de cada cena – sempre interpretadas por duplas -, os atores fazem a chamada “gênese” do personagem, espécie de resumo biográfico que situa o espectador na ação que virá a seguir.

A eliminação simbólica do vão entre palco e platéia, por conta da proximidade da semi-arena montada no hall do Sesc Consolação, transcende ao espaço e é refletida na atuação, no texto, na cena como um todo. Daí o impacto do público diante da experimentanção, do não-espetáculo que instiga tanto quanto.

“Prét-à-Porter” sustenta-se sobretudo pelo modo como sua dramaturgia é levada à cena. Fica claro que a construção do texto e o trabalho de voz (ainda incipiente, mas há anos-luz da realidade dos intérpretes brasileiros) ganharam status de bola da vez no CPT.

São histórias curtas, não necessariamente interligadas. Desesperados, angustiados, presos no porão da consciência, perambulando alhures, seus personagens se (des)equilibram no limite da existência.

Há o tempo interior, o silêncio, a palavra introjetada e depois reverberada com peso beckttiano. Como no excerto de um diálogo em “Horas de Castigo”.

ELE – Onde é que a gente está quando não está dentro da nossa cabeça?

ELA – Fora da cabeça…

ELE – Não, a gente não está.

ELA – É.

O diacho é que, amiúde distanciamento, naturalismo, enfim, há momentos em que a emoção nos captura a lembrar que, na essência humana como ela é, ou no teatro sem filtro, nada subverte a condição de seres vivos no contato olho a olho, corpo a corpo.

Lianna Matheus, Sílvia Lourenço, Emerson Danesi, Luiz Pãetow e Sabrina Greeve exercitam seus textos com segurança. São atores, são autores, são personagens, são discípulos-teen do “mestre” Antunes e, no entanto, não esmorecem diante de tanta responsabilidade. Ao contrário, levam a caravana com coragem.

Incomoda, porém, um certo ar etéreo nas interpretações, uma frieza atribuída ao tratamento naturalista que está em xeque. (Mas lembre-se: não estamos diante de um espetáculo).

E ainda que a razão nos guie pelo “contrário” do projeto – o público é instado,  desde o início, a cumprir seu papel de coadjuvante, inclusive retirando-se da sala a cada intervalo -, ainda assim, não há como se esquivar do envolvimento.

Somos cúmplices incondicionais dessa cruzada anti-naturalismo que faz justamente uso do seu duplo. É a contramão do entretenimento comezinho, da expiação midiática que bloqueia os sentidos e dessensibiliza a todos.

Antunes Filho está decantando os jovens atores perante os olhos de um espectador acuado pela desaceleração cometida em cerca de três horas. Com voz para opinar/desabafar ao final, o público é assim demovido da violenta passividade desse final de milênio. E aí, é amar ou odiar – jamais a indiferença.

São privilegiados  aqueles que perscrutam o exercício de palco “Prét-à-Porter 2” e sentem seu pulso. É o chamado geral de quem há pouco girou em torno de si em “Gilgamesh”, mas não atingiu o eixo; pôs os bichos para fora em “Drácula”, mas não seduziu; e agora, em mais um zero a zero, celebra a humildade para encarar a tragédia grega (“Fragmentos Troianos”?) que vem por aí.

Prét-à-Porter – Criação coletiva dos atores do CPT. Coordenação: Antunes Filho. Sábado, 19h50. Sesc Consolação/Hall de Convivência (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 234-3077, após 13h). R$ 10,00 e R$ 5,00 (comerciários e estudantes). Duração: 180 minutos. Até dezembro.

 

“Giramundo” homenageia Myrian Muniz

São Paulo – O colega Marcos Caruso (“Porca Miséria”) lhe atribui, apropriadamente, um “humor  paulista de sotaque italiano”. De fato, é a veia da comediante que ganha relevo nos 40 anos de carreira da atriz Myrian Muniz, celbrandos agora com o lançamento de uma espécie de “biografia associada”.

Organizado por Maria Thereza Vargas, o livro “Giramundo – Myrian Muniz, o Percurso de Uma Atriz” percorre os seus melhores momentos no palco, na TV, no cinema e na sala de aula, sob a ótica dos amigos que somou ao longo do caminho. Claro, também foi recolhido um rico depoimento da própria.

Apesar da relutar inicialmente à homenagem, recolhendo-se à sombra das aulas do curso que ministra na Capital, Myrian, 66 anos, acabou cedendo ao projeto de Maria Thereza (também autora da biografia de Cacilda Becker, em parceria com Nanci Fernandes, e no momento preparando uma retrospectiva dos últimos 20 anos do Oficina, hoje Uzyna Uzona, de Zé Celso.

“Giramundo” reúne artigos de diretores, atores e ex-alunos de Myrian Muniz. A arte de ensinar interpretação continua rendendo bons momentos para a atriz. Ela já deu aulas na Escola de Artes Dramáticas (EAD), onde também formou-se sob a batuta do lendário Alfredo Mesquita; foi uma das fundadoras da Escola Macunaíma; e há 15 anos inspira atores nas salas da Funarte, no Santa Cecília.

Passaram pelas suas mãos, por exemplo, Paulo Betti, Eliane Giardini e Cristina Pereira. Os três têm seus depoimentos registrados no livro. Também estão lá os diretores Gianni Ratto, Gianfrancesco Guarnieri, Fauzi Arap, Marcos Caruso, Augusto Boal, Carlos Alberto Soffredini, mais a cineasta Ana Carolina, que, por assim dizer, “monopolizou” o talento de Myrian na tela grande (“Mar de Rosas”, “Das Tripas Coração”, sendo que o próximo, “Páscoa em Março”, estréia ano que vem).

Na TV, o colega Juca de Oliveira lembra sua presença no seriado “Nino, o Italianinho” (1969), onde Myrian roubava  a cena na pele de Dona Benta.

Da Bruxa Caolha de “A Bruxinha que Era Boa” (1962), de Maria Clara Machado, até a Michelina de “Porca Miséria” (1993), é no teatro que Myrian fez as pazes com a vida. É a paixão maior, que aprendeu a cultivar nas suas passagens pelo Oficina, TBC e Arena – e continua disseminando no coração dos jovens aspirantes do palco, a despeito de todas as dificuldades de ontem e de hoje.

A organizadora Maria Thereza Vargas escalou um time coeso, dando um tratamento confessional e ao mesmo tempo longe da reverência óbvia.

Com uma diagramação arejada, corroborada por um excelente álbum fotográfico (são 52 imagens), que pontua os artigos do início ao fim, “Giramundo” testemunha o que Myrian Muniz faz e continua fazendo pelo teatro brasileiro. Felizmente, sublima mais a vida que está aí, em curso, do que a efeméride, regra editorial (quiçá, cultural) no País.

Giramundo – Myrian Muniz, O Percurso de Uma Atriz – Organização de Maria Thereza Vargas. Lançamento da Editora Hucitec (tel. 240-9318 ou 543-0653). 198 páginas. R$ 30,00.

Atriz ensina jovens há 25 anos

São Paulo – O curso de interpretação teatral com a atriz Myrian Muniz já tem uma tradição de 25 anos. Depois de passar pela EAD, Sesc, Macunaíma, ela agora dá aulas na Funarte.

Além de dotar os alunos com as ferramentas básicas do teatro, o curso trabalha passo a passo a montagem de um espetáculo através de improvisações, jogos dramáticos, pesquisas de textos, palestras sobre temas específicos, leituras de mesa, desenhos, figurinos, cenários, iluminação etc.

Curso de Interpretação Teatral Myrian Muniz – Segundas e terças, das 20h às 23h. Funarte (Alameda Nothman, 1.058, tel. 3662-5177). Matrícula. R$ 50,00; mensalidade, R$ 150,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 13 de setembro de 1998.   Caderno A – 4

Montagem de Beth Lopes, com Regina Braga, traduz força e lirismo do drama de Tennessee

VALMIR SANTOS

São Paulo – Há Tennessee Williams (1911-83) para todos os gostos. Pode-se encarar seus textos a partir da bruma indelével da superfície. Pode-se mergulhar mais fundo e deparar com seres atordoados pela existência. E neste patamar, ora rastejando, ora reunindo for­ça para dobrar o destino, que se vai enxergar nos olhos e tocar na alma dos seus personagens.

Em cartaz no Teatro Faap, a história de “À Margem da Vida” (44) se passa no plano baixo, o subsolo, espaço imaginário compreendido entre o asfalto e o teto de uma ponte. Para vir à público, no palco, a família Wingfield precisa descer as es­cadas de um cenário cinza e im­pessoal, como as paredes de concreto dos túneis do metrô.

Frieza e distanciamento vi­sual conferem com o enredo. Estamos diante de um núcleo humano em dissolução. Aman­da (ReginaBraga), a célula-mater, tenta a todo custo sustentar as aparências se agarrando aos fiapos do cotidiano comezinho.

Laura (Luah Guimarãez), a filha envolta em “bolha” de ti­midez gestada pela perna ligeiramente maior que a outra, pre­fere se abster de tanta hipocrisia e cria seu mundo paralelo, habi­tado pelos bichinhos de vidro que coleciona desde criança. E um esforço inglório, pois a freu­diana castração materna, aqui, é elevada à potência de morte, simbólica e gradativa.

Recai sobre Tom (Gabriel Nunes Braga), o varão dos Wing­field, a atitude dissonante. Não se trata de escape machista do autor. Ao contrário, o corte um­bilical do filho é questão de sobrevivência. Romper com o de­terminismo do lar constitui etapa das mais dificeis para jovens in­quietos diante das possibilidades da vida descortinada pelo tempo.

Tom foi submisso até o limi­te em que já não pertencia a si, mas à mãe e, por extensão, à ir­mã. Como o pai, que abandonou o barco no passado – mas é um personagem que flutua nas entrelinhas do texto com peso de­terminante -, ele também deixa o “bunker”.

“O homem é por instinto guerreiro, vai à guerra”, afirma Tom na vã ilusão de convencer Amanda do comichão poético que lhe invade e impede de ver o cor-de-rosa da realidade pintada pela mãe.

Tennessee Williams escreveu um drama que explicita o processo de crescimento pela via da dor. Em verdade, as op­ções de Laura e Tom são iguais. As escolhas, porque inerentes ao âmago de cada um, elas sim são diferentes.

Toda essa pungência de “À Margem da Vida” desponta com equilíbrio na montagem dirigida por Beth Lopes. Equilíbrio não propriamente de espírito, mas de estado. Há um domínio preciso da diretora na reorganização do espaço e da atuação que traduz a essência do dramaturgo norte-americano, sem verter tanta den­sidade para melodrama ou em­polação – um risco eminente.

Lopes conta com uma equipe dos sonhos de qualquer diretor. Daniela Thomas fez a direção de arte, com cenário de Felipe Tas­sara, iluminaação de Wagner Pin­to e música composta por Marcelo Pellegrini. Luz e trilha, em particular, harmonizam a delica­deza interior dos personagens com a tempestade por que pas­sam – cuja melhor metáfora é a britadeira cortando o concreto…

Na base da interpretação, o e­lenco passou pelas mãos de Re­nata Meio (“Domésticas”). Ao que parece, a coreógrafa traba­lhou mais no sentido de conten­ção do que propriamente expan­são, como requer um Tennessee Williams, contrastando com a fisicalidade recorrente dos espetá­culos anteriores de Beth Lopes.

Luah Guimarãez é quem des­pende maior esforço para levar sua Laura adiante. Há um tênue fio a separá-la da loucura, mas a consciência não lhe escapa por completo (“O que vamos fazer do resto de nossas vidas”, per­gunta) – o que também tem lá o seu custo.

Regina Braga consegue ex­trair humor do histerismo da Amanda. Como recomenda o au­tor, a mãe não deve ser interpre­tada sob o signo fácil do exage­ro, do estereótipo. A atriz não só segue à risca, como amplia as possibilidades da personagem, conferindo-lhe uma estatura mais demasiadamente humana na insegurança e na insensatez.

A revelação fica por conta de Gabriel Nunes Braga, filho de Regina. Seu Tom transita entre ação e narração com naturalidade. É encantador acompanhar o per­sonagem no desprendimento da família, na disposição em sair para a vida – ou “para o cinema”, como insiste no álibi de boêmio e poeta que é. Enfim, uma inter­pretação segura.

O ator André Boll surge sem comprometimento na segunda metade da peça no papel de Jim, Amigo de serviço de Tom, que a mãe tenta empurrar para Lau­ra sem sucesso.

Com esse Teneessee Willi­ams, Beth Lopes dá por encer­rada, definitivamente, a fase “O Cobrador” com a qual ficou estigmatizada nos últimos anos, à frente da Cia. de Teatro em Quadrinhos – sem desmerecer aquela montagem marcante no início da década, mas o tea­tro, como a vida, é ciclo. “À Margem da Vida”, superprodu­zida esteticamente simples, co­roa a maturidade e o talento de uma grande diretora parcimo­niosa na arte de tocar o público.

À Margem da Vida – De Teneessee Williams. Tradução: Marta Góes. Figurino: Verônica Julian e Flávia Ribeiro. Programação visual: Gringo Cardia. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Faap (rua Alagoas, 903, Higienópolis, tel. 3662-1992). R$ 25 e R$ 30,00.

 

“Doce Lembrança” reinventa saudade

São Paulo A delica­deza que Beth Lopes pers­cruta em “À Mar­gem da Vida” sur­ge em estado bru­to em “Doce Lembrança”, a montagem que di­rigiu com seus a­lunos de interpre­tação na EAD/USP. A pe­ça permaneceu dois meses em cartaz, até final de agosto, e tem perspectiva de reestrear em breve.

Adaptação da obra fundamental de Ecléa Bosi – “Memória e Soci­edade: Lembran­ças de Velhos” -, o espetáculo expõe uma diretora que já se sabia aliada à exigência física dos atores, mas não se vislumbra­va, até aqui, uma diluição mais ver­tical de tempo e espaço, liberando-os, ao menos de vez em quando, da ação em si.

De cunho experimental, o trabalho resultou extremamente rico em signos, a começar pela ocupação inventiva do porão do Centro Cultural São Paulo. O público era recebido com bolos e pãezinhos, acompanhados de chá e café, bem ao estilo dos nossos avós.

Conquistado pela boca – a gastronomia como poderosa a­liada da memória -, sentamos na platéia semi-arena para acom­panhar a aventura de seis perso­nagens pelo túnel do tempo de suas vidas.

E tudo começa pelo extre­mo, lá na outra ponta, na infân­cia. “Pirulito que bate bate/ Pi­rulito que já bateu…”, entoam. A memória, essa instância sublime que conjuga tristeza e alegria, é recomposta aos poucos, em in­sights mútuos.

Da mesma forma, e paralelamente, vai-se dando a recons­trução – ou “reinvenção” – dos móveis e adereços. Aos poucos, eles ganham forma em cena.

Um amálgama de corpos ar­queados, cacarejos e cacoetes; mais panos, rendas, flores, fo­tos, cartas, documentos, sapa­tos, enfim, desenham um es­forço tremendo diante do senti­mento da saudade, tão peculiar à alma brasileira.

As principais passagens polí­ticas do País, como o auge da Era Vargas, são pincelados aqui e ali. Num Brasil que não leva a sério os dois extremos da vida, o velho e a criança, o entrelaçamento do privado e do público é alentador.

Quando se fala em terceira i­dade, esse “palavrão”, remete-se logo aos eternos problemas da Previdência Social. “Doce Lembrança” não passa ao largo disso, mas valoriza mais o indivíduo -ou a amizade e sua celebração em grupo.

A via aqui é a da felicidade possível e, porém, esmaecida num passado não muito distante e pouco distinto dos nossos au­cestrais. A cena final, em que cada personagem retorna ao cai­xote que lhe cabe nesta reta final da vida, é memorável.

Trata-se, sobretudo, do resul­tado de um elenco esforçado, dis­posto a empreender a gana da sua juventude, sem sobressaltos, em projeto tão comovente.


Doce Lembrança –
Direção: Beth Lopes. Com Ana Gallotti, Eduardo de Paula, Fabiana Barbosa, Guadalupe Vivanco, Mara Leal e Vera Canolli. Cenografia: André Moia. Figurinos: Luciana Pareja. Iluminação: João Donda.

Eterno retorno de “Noturno”

São Paulo – Não é dificil ex­plicar o “eterno retorno” de “Noturno”. O musical de Oswaldo Montenegro, de volta ao cartaz, tem ingredientes na medida para seu público alvo: jovens munidos de adrenalina para se aventurar por aí, atrás de utopias d’antes não conquista­das – algo como a dupla paz-a­mor ou o triô liberdade-igualda­de-fraternidade.

Aquele espírito libertador e datado de “Hair”, nos anos 60, pouco legou à geração dos 90. Embaçados pelas perspectivas esotéricas – um tal ex-parceiro de Raul Seixas só corrobora o caldo retrô -, os “teens”, como querem, divagam na poesia do “chato” Oswaldo Montenegro.

“Chato” porque assim auto-denominou-se em uma das suas canções. Mas é assim, sincero em seu canto – como o sabem milhares de fãs bem crescidi­nhos – que Oswaldo Montenegro chega junto da moçada sem me­do de pisar na bola.

O musical, em seis anos de estrada, um CD, junta um bando de 60 atores, jovens em sua maioria oriundos da Oficina dos Menestréis, curso ministrado por Deto Montenegro e Candé Brandão, sempre no temporão Teatro Dias Gomes, onde a montagem segue em cartaz nas segundas e terças, alternativas e de casa invariavelmente cheia.

A trilha vai de Prince a Peter Gabriel. Destaque para as belas vozes de Tânia Maya e Débora Reis.

“Noturno” utiliza todo o es­paço do teatro (em uma pers­pectiva de 360 graus), conju­gando coreografias em massa e jogos de sombra de luz. A pla­téia é literalmente envolvida pela ação dos atores, ora no pal­co, ora dependurados em cor­das, ora ziguezagueando pelos corredores. Maiores detalhes sobre a empatia dos estudantes para com um espetáculo que prega a utopia como condição sine qua non, só conferindo. Poesia pouca é bobagem.

Noturno – Direção: Oswaldo Montenegro. Com Estela Cassilatti, Tânia Maya, Débora Reis, Gordo Marques, Marcelo Palma, Marco de Vita e outros. Segunda e terça, 21h. Teatro Dias Gomes (rua Domingos de Moraes, 348, metrô Ana Rosa, tel. 571-6177). R$ 15,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.