O Diário de Mogi
13.9.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 13 de setembro de 1998. Caderno A – 4
Montagem de Beth Lopes, com Regina Braga, traduz força e lirismo do drama de Tennessee
VALMIR SANTOS
São Paulo – Há Tennessee Williams (1911-83) para todos os gostos. Pode-se encarar seus textos a partir da bruma indelével da superfície. Pode-se mergulhar mais fundo e deparar com seres atordoados pela existência. E neste patamar, ora rastejando, ora reunindo força para dobrar o destino, que se vai enxergar nos olhos e tocar na alma dos seus personagens.
Em cartaz no Teatro Faap, a história de “À Margem da Vida” (44) se passa no plano baixo, o subsolo, espaço imaginário compreendido entre o asfalto e o teto de uma ponte. Para vir à público, no palco, a família Wingfield precisa descer as escadas de um cenário cinza e impessoal, como as paredes de concreto dos túneis do metrô.
Frieza e distanciamento visual conferem com o enredo. Estamos diante de um núcleo humano em dissolução. Amanda (ReginaBraga), a célula-mater, tenta a todo custo sustentar as aparências se agarrando aos fiapos do cotidiano comezinho.
Laura (Luah Guimarãez), a filha envolta em “bolha” de timidez gestada pela perna ligeiramente maior que a outra, prefere se abster de tanta hipocrisia e cria seu mundo paralelo, habitado pelos bichinhos de vidro que coleciona desde criança. E um esforço inglório, pois a freudiana castração materna, aqui, é elevada à potência de morte, simbólica e gradativa.
Recai sobre Tom (Gabriel Nunes Braga), o varão dos Wingfield, a atitude dissonante. Não se trata de escape machista do autor. Ao contrário, o corte umbilical do filho é questão de sobrevivência. Romper com o determinismo do lar constitui etapa das mais dificeis para jovens inquietos diante das possibilidades da vida descortinada pelo tempo.
Tom foi submisso até o limite em que já não pertencia a si, mas à mãe e, por extensão, à irmã. Como o pai, que abandonou o barco no passado – mas é um personagem que flutua nas entrelinhas do texto com peso determinante -, ele também deixa o “bunker”.
“O homem é por instinto guerreiro, vai à guerra”, afirma Tom na vã ilusão de convencer Amanda do comichão poético que lhe invade e impede de ver o cor-de-rosa da realidade pintada pela mãe.
Tennessee Williams escreveu um drama que explicita o processo de crescimento pela via da dor. Em verdade, as opções de Laura e Tom são iguais. As escolhas, porque inerentes ao âmago de cada um, elas sim são diferentes.
Toda essa pungência de “À Margem da Vida” desponta com equilíbrio na montagem dirigida por Beth Lopes. Equilíbrio não propriamente de espírito, mas de estado. Há um domínio preciso da diretora na reorganização do espaço e da atuação que traduz a essência do dramaturgo norte-americano, sem verter tanta densidade para melodrama ou empolação – um risco eminente.
Lopes conta com uma equipe dos sonhos de qualquer diretor. Daniela Thomas fez a direção de arte, com cenário de Felipe Tassara, iluminaação de Wagner Pinto e música composta por Marcelo Pellegrini. Luz e trilha, em particular, harmonizam a delicadeza interior dos personagens com a tempestade por que passam – cuja melhor metáfora é a britadeira cortando o concreto…
Na base da interpretação, o elenco passou pelas mãos de Renata Meio (“Domésticas”). Ao que parece, a coreógrafa trabalhou mais no sentido de contenção do que propriamente expansão, como requer um Tennessee Williams, contrastando com a fisicalidade recorrente dos espetáculos anteriores de Beth Lopes.
Luah Guimarãez é quem despende maior esforço para levar sua Laura adiante. Há um tênue fio a separá-la da loucura, mas a consciência não lhe escapa por completo (“O que vamos fazer do resto de nossas vidas”, pergunta) – o que também tem lá o seu custo.
Regina Braga consegue extrair humor do histerismo da Amanda. Como recomenda o autor, a mãe não deve ser interpretada sob o signo fácil do exagero, do estereótipo. A atriz não só segue à risca, como amplia as possibilidades da personagem, conferindo-lhe uma estatura mais demasiadamente humana na insegurança e na insensatez.
A revelação fica por conta de Gabriel Nunes Braga, filho de Regina. Seu Tom transita entre ação e narração com naturalidade. É encantador acompanhar o personagem no desprendimento da família, na disposição em sair para a vida – ou “para o cinema”, como insiste no álibi de boêmio e poeta que é. Enfim, uma interpretação segura.
O ator André Boll surge sem comprometimento na segunda metade da peça no papel de Jim, Amigo de serviço de Tom, que a mãe tenta empurrar para Laura sem sucesso.
Com esse Teneessee Williams, Beth Lopes dá por encerrada, definitivamente, a fase “O Cobrador” com a qual ficou estigmatizada nos últimos anos, à frente da Cia. de Teatro em Quadrinhos – sem desmerecer aquela montagem marcante no início da década, mas o teatro, como a vida, é ciclo. “À Margem da Vida”, superproduzida esteticamente simples, coroa a maturidade e o talento de uma grande diretora parcimoniosa na arte de tocar o público.
À Margem da Vida – De Teneessee Williams. Tradução: Marta Góes. Figurino: Verônica Julian e Flávia Ribeiro. Programação visual: Gringo Cardia. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Faap (rua Alagoas, 903, Higienópolis, tel. 3662-1992). R$ 25 e R$ 30,00.
“Doce Lembrança” reinventa saudade
São Paulo – A delicadeza que Beth Lopes perscruta em “À Margem da Vida” surge em estado bruto em “Doce Lembrança”, a montagem que dirigiu com seus alunos de interpretação na EAD/USP. A peça permaneceu dois meses em cartaz, até final de agosto, e tem perspectiva de reestrear em breve.
Adaptação da obra fundamental de Ecléa Bosi – “Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos” -, o espetáculo expõe uma diretora que já se sabia aliada à exigência física dos atores, mas não se vislumbrava, até aqui, uma diluição mais vertical de tempo e espaço, liberando-os, ao menos de vez em quando, da ação em si.
De cunho experimental, o trabalho resultou extremamente rico em signos, a começar pela ocupação inventiva do porão do Centro Cultural São Paulo. O público era recebido com bolos e pãezinhos, acompanhados de chá e café, bem ao estilo dos nossos avós.
Conquistado pela boca – a gastronomia como poderosa aliada da memória -, sentamos na platéia semi-arena para acompanhar a aventura de seis personagens pelo túnel do tempo de suas vidas.
E tudo começa pelo extremo, lá na outra ponta, na infância. “Pirulito que bate bate/ Pirulito que já bateu…”, entoam. A memória, essa instância sublime que conjuga tristeza e alegria, é recomposta aos poucos, em insights mútuos.
Da mesma forma, e paralelamente, vai-se dando a reconstrução – ou “reinvenção” – dos móveis e adereços. Aos poucos, eles ganham forma em cena.
Um amálgama de corpos arqueados, cacarejos e cacoetes; mais panos, rendas, flores, fotos, cartas, documentos, sapatos, enfim, desenham um esforço tremendo diante do sentimento da saudade, tão peculiar à alma brasileira.
As principais passagens políticas do País, como o auge da Era Vargas, são pincelados aqui e ali. Num Brasil que não leva a sério os dois extremos da vida, o velho e a criança, o entrelaçamento do privado e do público é alentador.
Quando se fala em terceira idade, esse “palavrão”, remete-se logo aos eternos problemas da Previdência Social. “Doce Lembrança” não passa ao largo disso, mas valoriza mais o indivíduo -ou a amizade e sua celebração em grupo.
A via aqui é a da felicidade possível e, porém, esmaecida num passado não muito distante e pouco distinto dos nossos aucestrais. A cena final, em que cada personagem retorna ao caixote que lhe cabe nesta reta final da vida, é memorável.
Trata-se, sobretudo, do resultado de um elenco esforçado, disposto a empreender a gana da sua juventude, sem sobressaltos, em projeto tão comovente.
Doce Lembrança – Direção: Beth Lopes. Com Ana Gallotti, Eduardo de Paula, Fabiana Barbosa, Guadalupe Vivanco, Mara Leal e Vera Canolli. Cenografia: André Moia. Figurinos: Luciana Pareja. Iluminação: João Donda.
Eterno retorno de “Noturno”
São Paulo – Não é dificil explicar o “eterno retorno” de “Noturno”. O musical de Oswaldo Montenegro, de volta ao cartaz, tem ingredientes na medida para seu público alvo: jovens munidos de adrenalina para se aventurar por aí, atrás de utopias d’antes não conquistadas – algo como a dupla paz-amor ou o triô liberdade-igualdade-fraternidade.
Aquele espírito libertador e datado de “Hair”, nos anos 60, pouco legou à geração dos 90. Embaçados pelas perspectivas esotéricas – um tal ex-parceiro de Raul Seixas só corrobora o caldo retrô -, os “teens”, como querem, divagam na poesia do “chato” Oswaldo Montenegro.
“Chato” porque assim auto-denominou-se em uma das suas canções. Mas é assim, sincero em seu canto – como o sabem milhares de fãs bem crescidinhos – que Oswaldo Montenegro chega junto da moçada sem medo de pisar na bola.
O musical, em seis anos de estrada, um CD, junta um bando de 60 atores, jovens em sua maioria oriundos da Oficina dos Menestréis, curso ministrado por Deto Montenegro e Candé Brandão, sempre no temporão Teatro Dias Gomes, onde a montagem segue em cartaz nas segundas e terças, alternativas e de casa invariavelmente cheia.
A trilha vai de Prince a Peter Gabriel. Destaque para as belas vozes de Tânia Maya e Débora Reis.
“Noturno” utiliza todo o espaço do teatro (em uma perspectiva de 360 graus), conjugando coreografias em massa e jogos de sombra de luz. A platéia é literalmente envolvida pela ação dos atores, ora no palco, ora dependurados em cordas, ora ziguezagueando pelos corredores. Maiores detalhes sobre a empatia dos estudantes para com um espetáculo que prega a utopia como condição sine qua non, só conferindo. Poesia pouca é bobagem.
Noturno – Direção: Oswaldo Montenegro. Com Estela Cassilatti, Tânia Maya, Débora Reis, Gordo Marques, Marcelo Palma, Marco de Vita e outros. Segunda e terça, 21h. Teatro Dias Gomes (rua Domingos de Moraes, 348, metrô Ana Rosa, tel. 571-6177). R$ 15,00.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.