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Valor Econômico

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(texto publicado originalmente no caderno Eu&Cultura, do jornal Valor Econômico, edição de 8 de outubro de 2012, p. D4)

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

Os primeiros vestígios brasileiros de manifestação teatral têm quase os 512 anos do país. Foi no Brasil Colônia que a Companhia de Jesus manipulou a arte de representar para catequizar índios. Entre os padres, o espanhol José de Anchieta (1534- 1597), que pisou na Terra de Santa Cruz em 1553 e contava 19 anos, foi o mais bem-sucedido na criação de breves autos em verso, conforme raros documentos remanescentes. Aprendeu a língua tupi e se deixou contaminar pela cultura indígena, sem jamais perder de vista a religião.

 

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Foi por meio desse “processo de substituição de cultura” que “emergiu penosamente o Brasil”, e com ele o aparecimento do teatro, anota o crítico e historiador Décio de Almeida Prado (1917- 2000) no primeiro capítulo do livro História do teatro brasileiro: volume I – Das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX (Vários autores. Ed. Perspectiva e Edições Sesc SP; 502 págs., R$ 95), ambicioso e rigoroso estudo de equipe planejado desde 2002 pelo professor emérito e editor J. Guinsburg e dirigido pelo professor de literatura brasileira João Roberto Faria, ambos da USP.

 

O Brasil ainda não dispunha de uma obra aprofundada que levasse em conta os múltiplos aspectos do fazer teatral ao mirar os cinco séculos no retrovisor. Estudos anteriores concentraram demasiadamente na produção literária do gênero dramático, reflexo dos laços intrínsecos com a literatura, cuja historiografia desponta anos-luz à frente em seus cânones delineados. Faltava englobar a evolução do espetáculo, da interpretação, das ideias críticas, das companhias dramáticas e de seus empresários, entre outras faces do ofício que culminam na cultura de teatro com a qual o espectador de hoje é familiarizado.

 

Uma das obras de referência é Panorama do teatro brasileiro (1962), do crítico e ensaísta Sábato Magaldi, no qual apenas três dos 21 capítulos originais vão além da importância da dramaturgia. Há 50 anos, ele mesmo tinha consciência de que faltava “um estudo satisfatório de todos os aspectos da vida cênica”. O próprio Magaldi inspirou o novo projeto e chegou a triangular com Guinsburg e Faria, mas não pôde manter sua participação.

 

Os 26 capítulos do primeiro volume cobrem desde a missão cristã dos jesuítas no século XVI até a modernidade artística florescida em meados do século XX. O livro compreende seis partes: raízes do teatro, teatro romântico, teatro realista, teatro de entretenimento e as tentativas naturalistas, teatro no pré-modernismo e teatro profissional dos anos de 1920 aos anos de 1950.

 

Todos os aspectos da vida cênica foram contemplados, diz Faria, pesquisador profícuo que foi aluno de Almeida Prado nos anos de 1970, no curso de letras, e dele herdou a interface da literatura com o teatro (o crítico o orientou no mestrado sobre José de Alencar). O livro tem o mérito de contar com a adesão empenhada dos departamentos de artes cênicas das principais universidades do país. Segundo Faria, é a primeira obra de fôlego escrita com base no espírito universitário de pesquisa. Um time de cerca de 40 colaboradores dá conta da abrangência e riqueza de informações, domina a bibliografia e é vertical em suas análises (Maria Thereza Vargas, Vilma Arêas, Flávio Aguiar, Tania Brandão, Fernando Mencarelli, Walter Lima Torres e Luiz Fernando Ramos, entre outros).

 

“Com o incremento da pesquisa em artes cênicas nos cursos de pós-graduação, conhecemos hoje o nosso passado teatral com detalhes que escaparam aos historiadores de 30 ou 40 anos atrás. Há muita gente estudando o teatro brasileiro. Dissertações e teses sobre os aspectos mais variados da nossa vida cênica tornaram possível preencher lacunas e construir a história do nosso teatro numa narrativa mais completa”, diz o professor que reivindica “uma nova história do teatro brasileiro” plural e abrangente.

 

O 12º parágrafo de um decreto que circulou quando a República Federativa do Brasil contava apenas oito anos exemplifica o quanto essa arte foi transformada no compasso da sociedade. “Os atores que alterarem o texto das peças acrescentando ou diminuindo palavra, que derem a estas sentido equívoco por meio de inflexão da voz e gestos, ou nas pantomimas e danças fizerem acenos e meneios indecentes, incorrerão na multa de 10$ a 20$ [réis], e em quatro a oito dias de prisão”.

 

Esse documento foi publicado em 21 de julho de 1897, sob o pretexto de regular a inspeção dos teatros e outras casas de espetáculo no Rio, então capital federal. Ao que o comediógrafo Artur Azevedo comentou à altura: “Se a polícia quiser dar inteiro cumprimento a essa disposição, não haverá espetáculos, porque os nossos artistas, salvo honrosas exceções, passarão na cadeia a maior parte da existência”.

 

O segundo volume da História do teatro brasileiro será lançado nas próximas semanas. Entre os temas abordados em 25 capítulos, estão o modernismo demarcado pela Semana de Arte Moderna de 1922, as primeiras tentativas de modernização, os grupos amadores, as companhias profissionais dos anos 1940-1960, o fortalecimento da dramaturgia, o surgimento dos grupos como Arena e Oficina, os efeitos da ditadura de 1964 sobre o teatro e as diversas manifestações da contemporaneidade.

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(texto publicado originalmente no caderno Eu&Cultura, do jornal Valor Econômico, edição de 3 de outubro de 2012, p. D4)

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

 

Numa carta datilografada de 22 de novembro de 1979, Nelson Rodrigues consentia a Antunes Filho “um mergulho no infinito” de sua produção teatral. “Espero que saia uma obra-prima irretocável”, escreveu o dramaturgo, que morreu no final do ano seguinte, cinco meses antes de Antunes estrear Nelson Rodrigues, o eterno retorno (1981), com o Grupo de Teatro Macunaíma.

 

Desde então, a justaposição do texto singular de Nelson Rodrigues com a cena metafísica de Antunes responde por alguns dos melhores momentos do teatro brasileiro. A dobradinha nos palcos começou em 1965, com A falecida. Depois veio Bonitinha, mas ordinária, em 1974. Mas foi a partir da década de 1980 que ela alcançou resultados formalmente mais ousados.

 

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Por isso a baita expectativa quanto à terceira montagem de Toda nudez será castigada, que Antunes mostra a partir de sexta, em São Paulo, a reboque do centenário de nascimento do escritor. “Nelson é o autor brasileiro que mais marcou minha carreira, fui ligado a ele desde que fazia teatro amador. Mexeu com a minha cabeça de encenador”, diz Antunes, de 82 anos.

 

O projeto é com o mesmo Macunaíma formado por atores majoritariamente vindos do curso do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, que Antunes coordena há 30 anos. Mas traz diferenças.

 

Nelson Rodrigues, o eterno retorno condensava Álbum de família e O beijo no asfalto, Os sete gatinhos, além de Toda nudez será castigada. A criação experimental mudou de vez o modo de encenar as peças do autor. Antunes descamou a superfície das comédia de costumes – rótulo facilmente colado às histórias de Nelson Rodrigues desde os anos de 1940, mesmo quando o próprio percebia suas 17 peças como psicológicas, trágicas ou míticas, conforme escrutinou o crítico Sábato Magaldi.

 

Antunes revolveu arquétipos daqueles personagens inspirados no cotidiano das ruas e lares do subúrbio carioca – seres cujas taras e obsessões migram do inconsciente coletivo. O processo artístico trazia como referência obras do filósofo romeno Mircea Eliade (1907-1986), pesquisador da história das religiões, e do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), discípulo e também dissidente de Freud, fundador da psicologia analítica na qual o sonho é depositário simbólico de complexos e de sentimentos e desejos reprimidos.

 

“Foi uma revolução essa colocação de Nelson Rodrigues como poeta, enquanto outros ainda o queriam apenas como o jornalista do dia a dia, o anedotário, o frasista”, diz Antunes.

Sua segunda incursão por Toda nudez será castigada ocorreu em 1984, quando o espetáculo Nelson 2 Rodrigues juntou essa peça com Álbum de família, seguindo as mesmas premissas da montagem anterior.

 

Agora, na terceira visita a Toda nudez será castigada, Antunes focaliza o que chama de inconsciente estrutural na dramaturgia de Nelson. Mais pragmático que nas montagens anteriores, ele diz buscar a essência da palavra, da mediação entre sujeito e discurso. Para mexer com essa matéria-prima da linguagem – o “corpo verbal” – Antunes se aproxima das teorias do francês Jacques Lacan (1901-1981), outro discípulo de Freud, para quem o ato da fala descortina aspectos da personalidade.

 

“Eu vou pra cima do Nelson, do ritmo como ele escreveu. Gosto da sintaxe. Nesse espetáculo, quero jogar ainda mais luz sobre a dramaturgia dele. Quero que fique claro. Enxugo o texto com muito cuidado. Não corto nenhuma coisa importante, às vezes uma certa prolixidade de época.”

 

Definida pelo autor como “obsessão em três atos”, a peça de 1965 mostra como o fato de um irmão não socorrer o outro na falência financeira incita ódio e vingança. Viúvo, pai de um rapaz de 18 anos, Herculano (papel vivido por Leonardo Ventura) é empurrado pelo ardiloso Patrício (Marcos de Andrade) para os braços da prostituta Geni (Ondina Clais Castilho), com quem se casa, para desespero das tias solteironas com as quais mora. A madrasta, por sua vez, se envolve com o enteado Serginho (Lucas Rodrigues), que se descobrirá gay.

 

Eis algumas das passagens da vertiginosa trama. As cenas transcorrem quase todas em flashback. Logo no início, escutamos a voz de Geni gravada em fita cassete. “Herculano, quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei.” E assim, em reviravoltas, se sucede a narrativa.

 

Os personagens revelam aos poucos sua verdadeira face. “É o ruído do indizível, do selvagem, do bárbaro na prosódia do Nelson, refletindo a prisão social em que estão metidos”, afirma o diretor, expondo como o foco na linguagem pode conferir novos sentidos ao texto.

 

Ele observa nos impulsos de Herculano, Geni, Patrício e Serginho marcas de sadomasoquismo e penitência sob a lente angular rodriguiana – algo que Antunes não percebia com clareza antes. É o inferno em detrimento do éden, sem espaço para a pureza que corresponderia à “nudez” do título.

Antunes quer manifestar em cena o que acredita ser uma visão não mecanicista do mundo, uma flutuação em que o tempo não está separado do espaço. O criador já havia demonstrado fixação pela síntese na relação com o público em A falecida vapt-vupt (2009), peça em que ele adotou um efeito de videoclipe – esse era, também, seu terceiro acesso à peça, em que a protagonista, Zulmira, sonha e conspira contar com um caixão de ouro em seu enterro.

 

Antunes prefere o palco nu à cenografia, com exceção de uma mesa e de poucas cadeiras. E a luz pouco varia do branco. As versões anteriores de Toda nudez será castigada eram menos austeras em termos visuais.

 

O diretor deseja priorizar o trabalho de ator, a autonomeada batalha quixotesca por uma voz que gera ressonância e não projeção na amplitude do humano.

 

Em relação ao fluxo que pretende imprimir no espetáculo, ele se deixa influenciar por romancistas e cita o irlandês James Joyce (1882-1941), de Ulysses.

 

Quando o personagem Leopold Bloom deixa sua casa na manhã de 16 de junho de 1904, depois de servir café na cama à mulher que o trai, e vai deambular por Dublin, “a ficção começa a mexer com a estrutura de tudo, do próprio teatro”, afirma o diretor, sobre Ulysses. O livro é uma adaptação da Odisseia, épico do poeta grego Homero, compactada na jornada de 18 horas do personagem de Joyce.

 

“A física quântica e a lei da relatividade surgem no início do século XX, em paralelo ao cinema, à visão de Stanislavski [teatrólogo russo que viveu de 1863 a 1938] para uma interpretação apoiada na memória. O Nelson é fruto de tudo isso. Mesmo que ele não tenha lido ‘Ulysses’, esta percepção mais aberta está no ar.”.

 

Toda nudez será castigada


De 5/10 a 16/12, no Teatro Sesc Anchieta – Sesc Consolação (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo). Ingressos: de R$ 8 a R$ 32. Informações:  (11) 3234-3000 , www.sescsp.org.br

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(texto publicado originalmente no caderno Eu&Cultura, do jornal Valor Econômico, edição de 10 de setembro de 2012, p. D4)

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

É hora de rever aquela leitura de que a praia das comédias e dos musicais está no Rio enquanto São Paulo é congestionada por experimentos dramáticos em espaços não teatrais. O bom teatro não tem fronteiras, e as temporadas paulistana e carioca evidenciam cada vez mais afinidades do que divergências no modo como os espetáculos são criados, produzidos e recebidos nas duas cidades.

Nos últimos dez anos, a combinação de editais públicos para grupos de pesquisa com o impulso dos investimentos privados por meio de leis de incentivo tornou o panorama do teatro mais complexo nas duas capitais. Instituído em 2002, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo destinou neste ano R$ 14,6 milhões para 30 grupos voltados ao teatro de pesquisa. É um valor próximo ao que a Prefeitura do Rio reservou para o Fundo de Apoio ao Teatro (Fate): R$ 14 milhões, distribuídos entre 64 produções teatrais ou circenses de todos os tipos. Para ter uma ideia do crescimento: em 2006, o Fate contou com R$ 850 mil para 11 projetos.

 

Em relação à captação de recursos, o cenário paulista apresenta números mais favoráveis. De acordo com o MinC, os produtores de São Paulo inscritos na Lei Rouanet foram autorizados a captar R$ 495,8 milhões em 2011, e obtiveram R$ 94,2 milhões com as empresas. No Rio, essa relação foi de R$ 377 milhões e R$ 58,9 milhões.

 

Mas um processo importante chama a atenção no contexto carioca. Durante muitos anos, a cidade perdeu vários teatros, como o Galeria, no Flamengo; o Delfin, no Humaitá; o teatro do Copacabana Palace, o Teatro de Arena, o da Praia e o Princesa Isabel – estes últimos em Copacabana.

 

“O público, por sua vez, foi ficando mais acomodado, dando preferência para espetáculos de humor”, afirma o produtor Fernando Libonati, desde 1990 à frente das empresas cariocas Pequena Central e Trupe Produções, em parceria com o ator Marco Nanini. Algumas produções que Libonati ergueu em São Paulo, como “O Médico e o Monstro” (1994), com Nanini e Ney Latorraca, e “Kean” (1995), com Nanini e Debora Bloch, não foram para o Rio simplesmente porque faltavam espaços adequados à época.

 

A boa notícia é que vários teatros têm surgido por meio da iniciativa privada, como o Teatro Poeira (2005), o Solar de Botafogo (2007) e o Galpão Gamboa (2010), que Libonati administra. Além disso, foram reabertos o Imperator, no Méier, o Teatro Ipanema e o Teatro NET (antigo Tereza Rachel), ambos em Copacabana, o Serrador, o Dulcina e o do Centro Cultural da Justiça, estes três na região central.

“Os centros culturais, como o dos Correios, o do Banco do Brasil e o Oi Futuro se impuseram pela qualidade da programação e política de preços”, afirma Libonati. “Com esse novo panorama, acho que o Rio de Janeiro tende a formar uma plateia mais diversificada, como acontece com São Paulo.”

 

Enquanto isso, as produções transitam entre as duas praças. Enquanto os palcos de São Paulo atualmente abrigam os espetáculos cariocas “Doroteia” (com Alinne Moraes e Gilberto Gawronski), “Bibi – Histórias e Canções” (com Bibi Ferreira) e “O Livro dos Itens do Paciente Estevão” (Sutil Companhia de Teatro), o Rio recebe a peça paulista “Seis Aulas de Dança em Seis Semanas” (com Suely Franco e Tuca Andrada).

 

Duas peças, especialmente, exemplificam bem essa simbiose entre a vida cênica do Rio e a de São Paulo. Uma é o drama “O Idiota – Uma Novela Teatral”, adaptação do romance de Dostoiévski pela mundana companhia de teatro, de berço paulistano. A outra, a comédia “Maria do Caritó”, protagonizada por Lilia Cabral, de berço carioca.

 

Ambas estrearam em 2010, receberam o Prêmio Shell de Teatro, considerado o mais importante do país (“O Idiota” pelos figurinos de Joana Porto; “Maria do Caritó” pela direção de João Fonseca) e foram levadas para as cidades vizinhas, além de circular por outras capitais.

 

A versão integral de “O Idiota” exige certa flexibilidade do público: dura cerca de sete horas, com dois intervalos, e conduz o espectador por um espaço não convencional (geralmente um galpão ou casarão com quintal) enquanto exibe a saga do príncipe Míchkin entre a epilepsia e as paixões. As sessões no Sesc Pompeia (São Paulo) tiveram ingressos esgotados. E as que ocorreram na Fábrica Bhering (Rio), também.

 

No público carioca, Aury Porto – que é cofundador da companhia, produtor e intérprete de Míchkin – encontrou “o frisson e a avidez de iniciante na fruição de uma obra teatral”.

 

É algo que a atriz Lilia Cabral também observa com “Maria do Caritó”. No Rio, o público tem “um espírito mais descontraído, justamente pela geografia, a praia, o sol, enquanto o paulistano é mais solene, não está acostumado a ver artista na rua o tempo todo”, compara Lilia, que interpreta na peça uma cinquentona virgem prometida pelo pai a um santo e empenhada em contrariar tal destino apelando ao circo e a Santo Antônio.

 

Em relação aos artistas, eles existem em quantidade e qualidade tanto em uma cidade quanto na outra, afirma Aury Porto, que é discípulo de José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina. Mas ele aponta uma dissonância: “O Rio produz a maioria dos programas de ficção da televisão brasileira, paga cachês superiores aos do teatro e pode dar enorme popularidade aos atores por ter presença e força indiscutíveis no dia a dia dos brasileiros. Isso leva os atores residentes na cidade a se dedicar mais a esse veículo do que à prática do teatro, arte na qual as exigências são maiores”.

 

Para Lilia, que entre a temporada carioca de “Maria do Caritó” e a que cumpre agora no Teatro Faap, em São Paulo, estrelou a novela “Fina Estampa”, no papel da popular Pereirão, o teatro é fundamental para a evolução do ator. “O teatro é sempre uma pós-graduação, sem ele a gente emburra”, diz Lilia, que não faz uma separação entre o teatro de São Paulo e o do Rio. “Acreditamos no teatro brasileiro com a verdade cênica que nos distingue das produções da Broadway, por exemplo.” “Maria do Caritó” aborda a cultura popular nordestina com sofisticação e foi escrito pelo pernambucano Newton Moreno, radicado em São Paulo e membro do grupo Os Fofos Encenam.

 

Por falar em Broadway, os musicais também merecem destaque nas duas cidades: é um setor que tem obtido grande repercussão de público, com qualidade ascendente e um profícuo sistema produtivo e pedagógico (um artista de musical precisa dominar o canto, a dança e o teatro).

 

Em São Paulo, esse fenômeno despontou em 2001 com “Les Misérables”, adaptação do romance de Victor Hugo que inaugurou o Teatro Abril, iniciativa da empresa mexicana CIE, atual Time for Fun. A agenda paulistana é pródiga em versões de clássicos da americana Broadway e do East End londrino. “Fantasma da Ópera”, “Miss Saigon”, “A Bela e a Fera” e o recente “Cabaret”, estrelado por Claudia Raia, são exemplos de espetáculos que têm atraído para São Paulo turistas de todo o país.

 

Já no Rio, de forte tradição no teatro de revista, destaca-se a parceria de Charles Möeller e Claudio Botelho, responsáveis por musicais como “Um Violinista no Telhado”, “7 – O Musical” e “Milton Nascimento – Nada Será Como Antes”, entre outros.

 

Sinal de que cada cidade tem, sim, suas características. Mas isso não significa antagonismo.

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(texto publicado originalmente no caderno Eu&Cultura, do jornal Valor Econômico, edição de 17 de setembro de 2012, p. D4)

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

 

O dramaturgo sueco Johan August Strindberg (1849-1912) fez da pulsão artística um modo de purgar a existência. No romance autobiográfico “Inferno”, por exemplo, ele liga o fio terra a um material pessoal – os surtos de esquizofrenia que o acompanharam em boa parte dos 63 anos de vida – para dilatar experimentos de linguagem que superpõem registros de diário, ensaio e ficção.

 

Imbricação exemplar de vida e arte, a prosa de “Inferno”, que penetra o mundo psíquico do autor e retrata a vontade individual submetida a forças inconscientes, é uma das criações que permeiam um evento de fôlego dedicado à obra do escritor, cujo centenário de morte se deu em 14 de maio.

 

Durante 40 dias, a partir de amanhã, quatro unidades paulistanas do Sesc abrigam atividades da “Mostra Strindberg”. Belenzinho, Bom Retiro, Ipiranga e Santo Amaro somam peças, leituras, debates, vídeos, uma exposição com escrivaninhas que evocam a vida do autor, uma demonstração de montagem teatral em criação e uma vivência com participação da encenadora sueca Bim de Verdier.

 

O programa inclui curtas temporadas de espetáculos do Grupo Tapa (“Credores” e “A Noite das Tríbades”), do diretor Nelson Baskerville (“Brincando com Fogo” e “Credores” – este um “work in progress”), de Christiane Jatahy (“Julia”) e de André Guerreiro Lopes (“O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência”).

 

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Filho de uma criada com um comerciante, dos quais herdou educação puritana – a mãe morreu quando ele tinha 13 anos -, Strindberg amargou três divórcios e conheceu a solidão e o abatimento espiritual entre as variantes autobiográficas devidamente sublinhadas nas invenções formais e temáticas de sua obra.

 

Precursor da literatura moderna na passagem do século XIX para o XX, rompendo com os moldes românticos burgueses da época (a começar pela quebra de tempo e espaço na narrativa), sua escrita visionária aporta na chamada era pós-dramática deste século com impacto e encanto permanentes.

 

“Vejo muita gente das novas gerações falando do pós-drama sem saber o que é drama”, afirma o diretor Eduardo Tolentino, do Tapa, disseminador do teatro de Strindberg no país. Para ele, a desestruturação das convenções do texto dramático aflora com muita propriedade. Strindberg subverte a linearidade, a relação de causa e efeito. “Um personagem de Strindberg pode sair de cena e voltar em outro tempo sem que se dê uma mudança radical de espaço, o que o [americano] Harold Pinter também fará anos depois.”

 

É um teatro inclinado aos experimentos com o naturalismo, o expressionismo e o surrealismo, sem que essas apropriações surjam inteiramente puras, observa o diretor. Um dos espetáculos do Tapa na mostra é uma estreia: “A Noite das Tríbades”, a partir de 26 de setembro no Sesc Bom Retiro, sob direção da atriz Malu Bazan. Não é uma peça de Strindberg, mas escrita em 1975 por um compatriota, Per Olov Enquist.

 

A ação se passa em 1889, na Dinamarca, reunindo como personagens o próprio Strindberg, sua primeira mulher, Siri von Essen, uma amiga dela, suposta amante de Siri, e um ator. O casal está prestes a se divorciar. Marginalizado em seu país, o dramaturgo abre um teatro experimental em Copenhague, onde tenta ensaiar “A Mais Forte”, um dos seus clássicos, em que duas mulheres lutam pelo amor de um homem ausente. Enquist projeta um Strindberg presunçoso, amedrontado, amoroso, contraditório e sensível. Um alquimista perplexo diante dos arquétipos do feminino e do masculino.

 

Isso reflete a pecha de misógino lançada sobre Strindberg, o que a cocuradora da mostra, a atriz e pesquisadora Nicole Cordery, relativiza. Ela observa que não é possível estigmatizar o autor pela aversão às mulheres, vide seu sofrimento amoroso nos três casamentos e a percepção do outro em seus textos, na dimensão humana da dor e da delícia dos relacionamentos. O retraimento se dava pela atormentação mental, a mesma que provavelmente o levou a ousar artisticamente para além dos limites.

 

Mostra Strindberg

De 18/9 a 27/10, nas unidades do Belenzinho, Bom Retiro, Ipiranga e Santo Amaro, em São Paulo. Ingressos para as peças de R$ 4 a R$ 24. As demais atividades são gratuitas. www.sescsp.org.br.

 

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(texto publicado originalmente no caderno Eu&Cultura, do jornal Valor Econômico, edição de 10 de setembro de 2012, p. D4)

 

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

 

É hora de rever aquela leitura de que a praia das comédias e dos musicais está no Rio enquanto São Paulo é congestionada por experimentos dramáticos em espaços não teatrais. O bom teatro não tem fronteiras, e as temporadas paulistana e carioca evidenciam cada vez mais afinidades do que divergências no modo como os espetáculos são criados, produzidos e recebidos nas duas cidades.

 

Nos últimos dez anos, a combinação de editais públicos para grupos de pesquisa com o impulso dos investimentos privados por meio de leis de incentivo tornou o panorama do teatro mais complexo nas duas capitais. Instituído em 2002, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo destinou neste ano R$ 14,6 milhões para 30 grupos voltados ao teatro de pesquisa. É um valor próximo ao que a Prefeitura do Rio reservou para o Fundo de Apoio ao Teatro (Fate): R$ 14 milhões, distribuídos entre 64 produções teatrais ou circenses de todos os tipos. Para ter uma ideia do crescimento: em 2006, o Fate contou com R$ 850 mil para 11 projetos.

 

Em relação à captação de recursos, o cenário paulista apresenta números mais favoráveis. De acordo com o MinC, os produtores de São Paulo inscritos na Lei Rouanet foram autorizados a captar R$ 495,8 milhões em 2011, e obtiveram R$ 94,2 milhões com as empresas. No Rio, essa relação foi de R$ 377 milhões e R$ 58,9 milhões.

 

Mas um processo importante chama a atenção no contexto carioca. Durante muitos anos, a cidade perdeu vários teatros, como o Galeria, no Flamengo; o Delfin, no Humaitá; o teatro do Copacabana Palace, o Teatro de Arena, o da Praia e o Princesa Isabel – estes últimos em Copacabana.

 

“O público, por sua vez, foi ficando mais acomodado, dando preferência para espetáculos de humor”, afirma o produtor Fernando Libonati, desde 1990 à frente das empresas cariocas Pequena Central e Trupe Produções, em parceria com o ator Marco Nanini. Algumas produções que Libonati ergueu em São Paulo, como O médico e o monstro (1994), com Nanini e Ney Latorraca, e Kean (1995), com Nanini e Debora Bloch, não foram para o Rio simplesmente porque faltavam espaços adequados à época.

A boa notícia é que vários teatros têm surgido por meio da iniciativa privada, como o Teatro Poeira (2005), o Solar de Botafogo (2007) e o Galpão Gamboa (2010), que Libonati administra. Além disso, foram reabertos o Imperator, no Méier, o Teatro Ipanema e o Teatro NET (antigo Tereza Rachel), ambos em Copacabana, o Serrador, o Dulcina e o do Centro Cultural da Justiça, estes três na região central.

 

“Os centros culturais, como o dos Correios, o do Banco do Brasil e o Oi Futuro se impuseram pela qualidade da programação e política de preços”, afirma Libonati. “Com esse novo panorama, acho que o Rio de Janeiro tende a formar uma plateia mais diversificada, como acontece com São Paulo.”

 

Enquanto isso, as produções transitam entre as duas praças. Enquanto os palcos de São Paulo atualmente abrigam os espetáculos cariocas Doroteia (com Alinne Moraes e Gilberto Gawronski), Bibi – histórias e canções (com Bibi Ferreira) e O livro dos Itens do paciente estevão (Sutil Companhia de Teatro), o Rio recebe a peça paulista “Seis Aulas de Dança em Seis Semanas” (com Suely Franco e Tuca Andrada).

 

Duas peças, especialmente, exemplificam bem essa simbiose entre a vida cênica do Rio e a de São Paulo. Uma é o drama O idiota – uma novela teatral, adaptação do romance de Dostoiévski pela mundana companhia de teatro, de berço paulistano. A outra, a comédia Maria do Caritó, protagonizada por Lilia Cabral, de berço carioca.

 

Ambas estrearam em 2010, receberam o Prêmio Shell de Teatro, considerado o mais importante do país (O idiota pelos figurinos de Joana Porto; Maria do Caritó pela direção de João Fonseca) e foram levadas para as cidades vizinhas, além de circular por outras capitais.

 

 

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A versão integral de O idiota exige certa flexibilidade do público: dura cerca de sete horas, com dois intervalos, e conduz o espectador por um espaço não convencional (geralmente um galpão ou casarão com quintal) enquanto exibe a saga do príncipe Míchkin entre a epilepsia e as paixões. As sessões no Sesc Pompeia (São Paulo) tiveram ingressos esgotados. E as que ocorreram na Fábrica Bhering (Rio), também.

 

No público carioca, Aury Porto – que é cofundador da companhia, produtor e intérprete de Míchkin – encontrou “o frisson e a avidez de iniciante na fruição de uma obra teatral”.

 

É algo que a atriz Lilia Cabral também observa com Maria do Caritó. No Rio, o público tem “um espírito mais descontraído, justamente pela geografia, a praia, o sol, enquanto o paulistano é mais solene, não está acostumado a ver artista na rua o tempo todo”, compara Lilia, que interpreta na peça uma cinquentona virgem prometida pelo pai a um santo e empenhada em contrariar tal destino apelando ao circo e a Santo Antônio.

 

Em relação aos artistas, eles existem em quantidade e qualidade tanto em uma cidade quanto na outra, afirma Aury Porto, que é discípulo de José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina. Mas ele aponta uma dissonância: “O Rio produz a maioria dos programas de ficção da televisão brasileira, paga cachês superiores aos do teatro e pode dar enorme popularidade aos atores por ter presença e força indiscutíveis no dia a dia dos brasileiros. Isso leva os atores residentes na cidade a se dedicar mais a esse veículo do que à prática do teatro, arte na qual as exigências são maiores”.

 

Para Lilia, que entre a temporada carioca de Maria do Caritó e a que cumpre agora no Teatro Faap, em São Paulo, estrelou a novela Fina estampa, no papel da popular Pereirão, o teatro é fundamental para a evolução do ator. “O teatro é sempre uma pós-graduação, sem ele a gente emburra”, diz Lilia, que não faz uma separação entre o teatro de São Paulo e o do Rio. “Acreditamos no teatro brasileiro com a verdade cênica que nos distingue das produções da Broadway, por exemplo.” Maria do Caritó aborda a cultura popular nordestina com sofisticação e foi escrito pelo pernambucano Newton Moreno, radicado em São Paulo e membro do grupo Os Fofos Encenam.

 

Por falar em Broadway, os musicais também merecem destaque nas duas cidades: é um setor que tem obtido grande repercussão de público, com qualidade ascendente e um profícuo sistema produtivo e pedagógico (um artista de musical precisa dominar o canto, a dança e o teatro).

 

Em São Paulo, esse fenômeno despontou em 2001 com Les misérables, adaptação do romance de Victor Hugo que inaugurou o Teatro Abril, iniciativa da empresa mexicana CIE, atual Time for Fun. A agenda paulistana é pródiga em versões de clássicos da americana Broadway e do East End londrino. Fantasma da ópera, Miss Saigon, A bela e a fera e o recente Cabaret, estrelado por Claudia Raia, são exemplos de espetáculos que têm atraído para São Paulo turistas de todo o país.

 

Já no Rio, de forte tradição no teatro de revista, destaca-se a parceria de Charles Möeller e Claudio Botelho, responsáveis por musicais como Um violinista no telhado, 7 – o musical e Milton Nascimento – nada será como antes, entre outros.

 

Sinal de que cada cidade tem, sim, suas características. Mas isso não significa antagonismo.

 

Valor Econômico

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Valor Econômico, 16/7/2012 (Caderno Eu & Cultura, p. D4)

 

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

 

Um grupo de teatro alcançar a casa dos 30 anos já não constitui novidade no Brasil. Seguem ativos no panorama atual núcleos balzaquianos como o sergipano Imbuaça, o gaúcho Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz e o paulista Tapa, para não dizer do quarentão mineiro Giramundo e do cinquentão paulista Oficina, entre outros.

 

Mas o prestígio que o Grupo Galpão conquistou nos cenários nacional e internacional o coloca em posição tão imponente quanto as montanhas da sua Belo Horizonte natal. E uma das razões para isso é a capacidade de gerir as demandas artísticas, administrativas e financeiras ao longo de três décadas de história, ou 20 espetáculos.

 

A rigor, foi assim desde novembro de 1982, quando Antonio Edson, Beto Franco, Eduardo Moreira e Teuda Bara, cofundadores remanescentes, juntaram-se a outros colegas. Empoleirados em pernas de pau, eles foram às praças apresentar a comédia “E a Noiva Não Quer Casar”. Perdura, portanto, a simbologia de um grupo de atores – os diretores geralmente são convidados – equilibrando-se na cultura popular, no aprimoramento técnico e na pesquisa permanentes; na busca de infraestrutura ideal e na sobrevivência de seus membros exclusivamente por meio da arte.

 

Quem assiste ao espetáculo de rua Romeu e Julieta (1992), obra-prima do Galpão e do diretor Gabriel Villela para a tragédia de Shakespeare, havia nove anos sem vir à luz, capta com precisão a importância do grupo na historiografia da cena nacional. A tragédia tingida pela tradição barroca é remontada na esteira das comemorações pelos 30 anos. A turnê estreou em maio, em Londres, no mesmo espaço onde fora vista em 2000: o Globe, o teatro recriado nos moldes daquele onde o dramaturgo inglês trabalhou entre os séculos XVI e XVII.

 

Já o reencontro com o público de Belo Horizonte aconteceu no mês passado, durante o 11º Festival Internacional de Teatro Palco & Rua, o FIT-BH. Foram cinco apresentações ao ar livre. A reportagem viu a primeira, na praça do Papa, aos pés da Serra do Curral. Impressiona o afeto da cidade para com o Galpão. Apinhados morro acima, cerca de 5 mil espectadores ecoavam o elenco no cancioneiro popular da peça. Conformavam uma espécie de estádio lotado em torno da perua Veraneio modelo 1974, de cor vinho, batizada Esmeralda e transformada em “palco” para as ações, entre elas a dos enamorado no balcão.

 

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O carro que virou suporte cênico transportou o elenco e a equipe técnica nos idos de 1980 e 1990. Essa disponibilidade de espírito para ir de encontro ao público permanece intacta mesmo com a escala empresarial moldada pelo tempo. Hoje, além dos 13 atores e sócios, o grupo responde por outros 45 profissionais com carteira assinada, incluída a folha de pagamento do centro cultural mantido a poucos quarteirões da sua sede, o Galpão Cine Horto.

 

Da popular passagem de chapéu ao final das apresentações de rua, gesto tributário da Commedia dell’Arte, na Itália do século XV, à obtenção de patrocínio de manutenção e circulação das peças junto à Petrobras, desde 2000 (R$ 1,5 milhão/ano), o grupo ambiciona um crescimento estrutural em curto, médio e longo prazos.

 

As próximas etapas estão ancoradas na construção de uma nova sede, integrada a um complexo artístico e cultural de 2.055 m2 a ser erguido na mesma zona leste onde aportou em 1989. O terreno foi cedido pelo governo estadual, em abril de 2011, em comodato por 25 anos. “Isso significa que a gente precisa captar recursos para construir um patrimônio que não será do Galpão, mas público”, diz o ator Chico Pelúcio.

 

Orçado em R$ 28 milhões e concebido pelos arquitetos Mariza Machado e Fernando Maculan, o espaço multimeios prevê teatro de 400 lugares, sala de cinema, praça de apresentação, alojamento e biblioteca, além de absorver o próprio centro cultural Galpão Cine Horto, com seus núcleos de pesquisa em figurinos, cenografia, comunicação, memória, etc. O futuro edifício, cuja primeira parte deve ficar pronta em 2014, será vizinho ao Centro Mineiro de Referência em Resíduos e terá “cortinas verdes” em sua fachada, arbustos de bambu que reduzem o uso de ar-condicionado.

 

Com formação em administração de empresas, Pelúcio ingressou no Galpão em 1984 e responde pelo coletivo quando o assunto é gestão. Ele defende o conceito de sustentabilidade na cultura com a mesma convicção das preocupações ambientalmente corretas. A premissa é de que sem educação e cultura, falar em sustentabilidade seria inócuo.

 

“O cidadão somente terá a arte e a cultura como fundamentais em sua vida se, desde criança, dentro e fora da escola, for incentivado a olhar o mundo de forma mais humana e sublime. O espírito da arte, o belo, não encontra espaço no vocabulário ‘político economês’ no qual só os índices e os números são relevantes”, diz.

 

No plano criativo, não é por acaso que o Galpão anda às voltas com o pensamento e a obra do escritor russo Anton Tchékhov (1860-1904). Fazem parte do repertório as peças Tio Vânia (Aos que vierem depois de nós, direção de Yara de Novaes, e Eclipse, encenação do também russo Jurij Alschitz. Ambas estrearam em 2011 e, ao lado de Romeu e Julieta e Till, a saga de um herói torto (2009), direção de Júlio Maciel, convidam a revistar as raízes e a instigar o porvir, como devem sublinhar as temporadas em São Paulo (agosto) e Rio (outubro e novembro).

 

 

O jornalista viajou a convite da organização do 11º FIT-BH.

Valor Econômico

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Valor Econômico, 28/06/2012, Caderno Eu & Cultura, p. D4)

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

 

Em criança, Vincent e o irmão quatro anos mais novo, Theodorus, costumavam brincar num moinho, passear à beira do rio, correr de mãos dadas no meio do trigal. A natureza os conciliou, a despeito da bifurcação na vida adulta desses holandeses do século XIX: o pintor invendável e o marchand bem-sucedido. É sob a perspectiva dessas existências imbricadas que Fernando Eiras incorpora as múltiplas vozes de O outro Van Gogh, primeiro monólogo em 36 anos de carreira, 55 primaveras.

 

A temporada no Teatro Poeira, no Rio, a partir de amanhã, mostra, de um lado, Vincent Van Gogh (1857-1891), o artista fracassado aos olhos da sociedade, incapaz de constituir família, ateu, para desespero do pai protestante, e enamorado de uma prostituta com a qual teve uma filha. A burguesia tampouco comprava seus quadros porque “escuros demais”, não combinavam com a mobília, como ironiza Theo Van Gogh (1853-1890) do outro lado gangorra.

 

O homem de negócios surge corroído pela culpa, um cavalheiro tombado pelo peso da hipocrisia, arrependido de não ter se engajado mais à sublimação artística do irmão que se deu um tiro no peito aos 37 anos, transitando de louco em vida a gênio na posteridade – mestre do pós-impressionismo em rejeição ao naturalismo.

 

A dramaturgia de Mauricio Arruda Mendonça usa como fonte o livro epistolar Cartas a Theo, além de três biografias de Vincent Van Gogh e de filmes inspirados na relação dos irmãos. “É um texto que fala ao coração do homem contemporâneo, marcado por indiscutível atualidade e compaixão”, diz Mendonça.

 

O espetáculo não chega a ser uma biografia do pintor porque entranhado pelo irmão feito luz e sombra. A peça abre justo com Theo narrando que Vincent certa vez lhe perguntara: “Qual é a cor da minha sombra?”. Ao que ele responde: “A sua sombra é verde e vermelha”. As cores do perigo, deduz.

 

O carioca Fernando Eiras define Vincent como um personagem de traços trágicos, de fazer par com a complexidade da trinca francesa formada pelos poetas Baudelaire, Rimbaud e Artaud, este o autor do breve ensaio Van Gogh, o suicida da sociedade (1947). O texto repudia o diagnóstico médico quanto à esquizofrenia “do tipo degenerado” que acometeria o pintor.

 

Após visitar uma exposição com as obras dele, Artaud arremata: “Não, Van Gogh não era louco; ou então ele o era no sentido desta autêntica alienação que a sociedade e os psiquiatras querem ignorar, sociedade que confunde escrita com texto, ela que tacha de loucura visões exorbitadas de seus artistas e sufoca seus gritos no papel impresso”. Artaud dizia escrever para analfabetos, enquanto Van Gogh pintava para os simples de espírito.

 

“Não me considero um ator propriamente virtuoso, pelo menos não é esse o objetivo. Escolhi o Theo porque ele não tem o refletor apontado para si. O refletor dele é voltado para o outro”, afirma Eiras. Nesse exercício de alteridade, o suposto protagonista, Vincent, não está propriamente em cena, mas é evocado a todo instante por aquele que lhe foi uma espécie de tutor.

 

A ação transcorre num sanatório, onde Theo está internado, diagnosticado com os mesmos sintomas da doença mental que perseguira o irmão, a necrosífilis, uma decorrência de casos mais avançados da sífilis não tratada após muito tempo de infecção. Como se não bastassem o abalo pela morte de Vincent, seis meses antes, e os encargos pelo sustento da família. Daí seu estado delirante.

 

Diretor conhecido pela poética visual e sonora de suas montagens, preocupado com o diálogo ator/ espaço, cofundador da premiada Armazém Companhia de Teatro, Paulo de Moraes também responde pela cenografia de O outro Van Gogh. E opta por recursos mínimos: uma tela branca banhada de quando em quando pela luz desenhada por Maneco Quinderé. “O teatro é o lugar do invisível. Vamos preenchendo-o com a nossa fé”, diz Eiras. Essa narrativa de memória é povoada ainda por um tio, uma prima, um pastor e a mulher Christine, de Vincent, que devotava um carinho rude ao pintor atormentado, acostumado a vestir macacão azul de operário, chapéu de palha, empunhando cachimbo na boca e carregando cavalete nas costas.

 

Vindo de elogiada atuação em In on It, direção de Enrique Diaz que lhe valeu o Prêmio Shell de Teatro fluminense de ator, em 2010, Eiras afirma não abdicar da centelha do humor mesmo quando imerso numa “sonata sobre um caso trágico”, como define a peça.

 

O outro Van Gokgh

No Teatro Poeira (rua São João Batista, 104, Botafogo, RJ, tel. 21/xx 2537- 8053). De quinta a sábado, às 21h30. Domingo, às 19h. R$ 40 e R$ 60. De 29/6 a 19/8

Valor Econômico

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Valor Econômico, 5/7/2012, Caderno Eu & Cultura

 

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

 

Dependente químico, rockstar de 27 anos se suicida com um tiro na cabeça e deixa um bilhete aos que ama. Pinçada do universo pop, uma história assim está condenada a lugares-comuns. E é deles que o monólogo Aberdeen – Um possível Kurt Cobain tenta escapar ao fixar-se na figura humana por trás do expoente grunge e vocalista da banda Nirvana.

 

O ator Nicolas Trevijano, o diretor José Roberto Jardim e o dramaturgo Sérgio Roveri evitam os bastidores da carreira, jogam para o rodapé da história a tumultuada vida pessoal e projetam na ficção a mente de um sujeito inquieto, melancólico, irônico e autoquestionador. Um rapaz ávido por interlocução sincera como a devotada na infância ao amigo imaginário Boddah. É essa intimidade que os criadores da peça também esperam alcançar com o público na temporada de estreia na Galeria Olido, em São Paulo, a partir de sábado.

 

A proximidade não se quer apenas física, com 50 cadeiras dispostas no palco em semiarena. Tem a ver com a opção minimalista na interpretação, no texto e na encenação. Estruturado como uma partitura, a narrativa flui em cinco movimentos que independem da cronologia dos fatos. Tudo se passa no post mortem, o hiato de cerca de 72 horas entre o disparo e o dia em que o corpo é encontrado na estufa do casarão onde Cobain morava, em Seattle, 8 de abril de 1994, quando a notícia da tragédia varreu o planeta.

 

O homem/personagem costura reminiscências da pequena Aberdeen, a fria cidade americana cravada entre montanhas, onde vive na infância e toma conhecimento do histórico de suicídios na família. Fala de desajustes da adolescência por quem é idealizado pela juventude mundo afora, no que desmitifica. As overdoses de heroína. Os conflitos com o pai e a mãe. O afeto pela filha Frances, então com quase 2 anos em sua morte, do casamento com Courtney Love. E a relação com o amigo imaginário a quem confessa suas culpas.

 

“O texto parte dessa condição de quem espera que o próprio corpo seja encontrado e, ao mesmo tempo, está se encontrando. A gente se interessou mais pelo lado humano dessa personalidade reclusa, solitária, que raramente tomava banho ou trocava de roupa e tinha o estranho hábito de criar ratos”, diz Roveri. Ele pesquisou biografias, documentários e discos do Nirvana.

 

Para interpretar Cobain à margem dos gêneros musical ou biográfico, Trevijano, idealizador do projeto, se despe da imagem planetária do cantor e guitarrista de camisa xadrez de flanela, cabelo loiro e desgrenhado, voz rouca. “Desde o início das nossas conversas, há dois anos, a ideia era trazer à cena um cara que não fosse necessariamente o Kurt Cobain, mas um ser à procura de respostas na vida”, diz Trevijano, que já atuou em outra peça de Roveri, A coleira de Bóris (2008).

 

A fragilidade de existir corresponde à precariedade do espaço cenográfico. Há um aparelho de som, um espelho, quatro abajures e um retroprojetor sem uso de slides, irradiando feixe de luz. O diretor delega ao ator não só a manipulação desses objetos, como a própria operação de luz.

 

“Não criamos um teatro ilusório. A mimese [imitar gesto, voz, estilo] poderia soar histriônica, um convite ao melodrama banal. Simplesmente centramos nas facetas desse polígono que é o ser humano, no caso, o Kurt Cobain, capaz de falar a qualquer um”, afirma Jardim. Esta é a primeira direção que assina, trabalho paralelo ao seu grupo Os Fofos Encenam. Amigo de Trevijano desde os 11 anos, também já interpretou uma peça de Roveri, O encontro das águas (2004).

 

Coerente com o campo da desilusão, o espetáculo abre poucas brechas sonoras para canções do compositor de Smells like teen spirit, com três a quatro faixas lado B. A direção cuida ainda em não moralizar a questão do suicídio. “A ironia é um tipo fecundo de humor inteligente diante das dificuldades. Nunca vi o suicídio como sinal de fraqueza atroz, de falta de coragem. Tampouco caímos no erro fácil da superioridade do sujeito que chegou ao cume da montanha e vem iluminar os pobres mortais. Seria arrogante.”

 

Nessa equalização de linguagem, como define Jardim, seu desejo é valorizar o ato presente, o instante da experiência compartilhada entre o artista e a plateia. “Aberdeen” busca a “presentificação” em vez da representação.


Aberdeen – Um possível Kurt Cobain

Galeria Olido – sala Olido (av. São João, 473, 2º andar, SP, tel. 11/xx 3397-0176); sáb., às 21h; dom., às 19h; grátis; de 7 a 29/7 (a partir do final de agosto, segunda temporada de cinco semanas no Teatro Cacilda Becker, Lapa)

Valor Econômico

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Valor Econômico, 12/6/2012, Caderno Eu & Cultura (p. D4)

 

Em “Bom Retiro 958 Metros” grupo questiona contradições socioeconômicas. Por Valmir Santos, para o Valor, de São Paulo

 

A rigor, as artes cênicas se ocupam do espaço público desde os povos primitivos, quando ainda nem havia essa definição moderna para elas. Saltando para os dias de hoje, com o verbo “ocupar” transformado em sinônimo planetário de indignação nas ruas devido às fraturas sociais, políticas e econômicas do capitalismo, esses sintomas também eclodem no campo artístico. Acostumado a levar suas peças a lugares não teatrais do Brasil e de outros países, o Grupo Teatro da Vertigem prepara em São Paulo uma intervenção urbana impregnada da urgência de sua época. Nesse novo projeto, marco dos 20 anos do núcleo, percebe-se que escuridão humana permanece alicerçando os materiais cênico e dramatúrgico que ganham vulto nas sombras da noite da cidade dilacerada pelo crack.

 

“Bom Retiro 958 Metros” religa o conceituado grupo de pesquisa à região central de São Paulo, onde “Paraíso Perdido” veio à luz em 1992, sob a arquitetura neogótica medieval da Igreja de Santa Ifigênia, vizinha ao largo do Paissandu. Após conceber espetáculos na área da avenida Paulista (ocupando uma ala hospitalar em “O Livro de Jó” e a fachada e o escritório de um prédio em “Kastelo”); na zona leste (um presídio desativado em “Apocalipse 1,11”); e na zona oeste (no leito, margens e pontes do rio Tietê em “BR 3”), os artistas adeptos da imersão em edifícios e espaços públicos voltam ao território expandido de origem.

 

Com estreia prevista para esta sexta-feira, “Bom Retiro 958 Metros” se propõe ao desafio de concatenar ações esparsas ao longo do percurso mensurado no título, revezando áreas cobertas e ao ar livre. O ponto de partida não deixa de ser outra modalidade de templo, o do consumo: uma galeria de lojas atacadistas no coração do bairro reduto da produção e comercialização de moda. Em seguida, as cenas deslizam para o asfalto, as calçadas e os cruzamentos, com o público compondo cortejo por cerca de duas horas. A peça culmina na ocupação de um edifício teatral hoje fantasmagórico, outrora palco da visão progressista de imigrantes convictos de que a cultura é um braço de justiça e cidadania.

 

A arte política do Vertigem não se quer monolítica. Ao circunscrever o Bom Retiro fashion, do frenético comércio popular, dos desvios trabalhistas na cadeia do setor de confecções, da babel étnica, enfim, o grupo incide sobre as feridas da cidade e as contradições do momento socioeconômico brasileiro.

 

O romancista e poeta cuiabano Joca Reiners Terron, radicado na capital paulista desde 1995, topou experimentar a dramaturgia pela primeira vez em fricção com o diretor Antônio Araújo e toda a equipe de criação que já investigavam a memória do bairro desde 2010. O autor de “Eletroencefalodrama” (1998) e de “Guia de Ruas Sem Saída” (2011), entre outros livros, conheceu o mesmo processo de escrita em colaboração vivido pelo colega e outrora neófito em teatro Bernardo Carvalho, que assinou “BR-3”.

 

Foram pelo menos três meses de convivência diária com 15 atores em sala de ensaio levantando subsídios a partir de improvisações. O texto funde personagens e espectros que vagueiam insones na madrugada. A esmo ou no batente em oficinas de costura, na limpeza do “doping center” (expressão pichada na rua) ou no manejo de mercadorias para os estoques da liquidação planejada para o dia seguinte.

 

Mas antes da queima total, outras chamas vão pontuar os fragmentos e microconflitos que têm proximidade ainda com a formação histórica do Bom Retiro desde o início do século XX, suas gerações de judeus, italianos, gregos, sul-coreanos, bolivianos e outras ascendências.

 

O fim de noite cessa o burburinho dos compradores e impõe o silêncio de ouvir os passos, cortado de vez em quando pela locutora da rádio a modular a longa jornada. Alguns carregadores realizam entregas ou retiradas. Há uma consumidora desesperada em busca do vestido vermelho que paquera na vitrine e reclama das lojas fechadas a essa hora. Interpretada por Luciana Schwinden, ela é uma das vozes condutoras dessa fábula em retalhos.

 

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Outra presença decisiva é a da faxineira filósofa vivida pela atriz Mawusi Tulani. Graciosa e sagaz, ela diagnostica o quanto os desejos alucinam as pessoas convertidas em manequins de fibra, o cúmulo da “coisificação” da vida.

 

E há ainda o “cracômano”, alcunha que parece triturar na boca de quem a pronuncia e diz respeito ao dependente químico. Roberto Audio responde pela performance dessa figura presa à pedra tal qual um Sísifo, vagando em pensamentos sobre o não lugar dos becos, muros e grades, enxotado pelo vigilante do shopping, agonizando com espantoso senso de realidade.

 

A ambientação de desfecho é um teatro privado histórico e há anos abandonado, tristemente apartado da sociedade. Revelar seu nome prejudicaria o hipertexto das cenas finais. Em suas dependências, o espectador é estimulado a montar as linhas de força costuradas até então. Ficam mais claros os contornos trágicos da ruína humana/urbana. Afinal, o que se vê no palco é o coro de uma superprodução musical ou a horda de homens e mulheres a pipar o crack? Sucedem imagens que remetem à decrepitude, ao higienismo, à especulação imobiliária. Mais uma vez o Teatro da Vertigem escancara janelas aos citadinos esquivos em ver, ouvir, tocar essas zonas mortas-vivas.

 

“Bom Retiro 958 Metros” aporta o movimento sincrônico deste início de década em que coletivos teatrais operam temas e formas a partir de bairros centrais de uma São Paulo convulsionada pela questão da sociabilidade. Essa consciência crítica é provocada por grupos como Teatro de Narradores, com o espetáculo “Cidade Fim – Cidade Coro – Cidade Reverso”, na Bela Vista; Companhia Pessoal do Faroeste, com “Cine Camaleão – A Boca do Lixo”, na Luz; da Companhia São Jorge de Variedades, com “Barafonda”, na Barra Funda; e do Folias d’Arte, com “A Saga Musical de Cecília desde Priscas Eras Até os Dias de Hoje no Pedaço de Terra Dividida que Carrega o seu Santo Nome”, em Santa Cecília.

 

No encontro do teatro com a cidade, o espectador e morador depara com esse espaço comum multiforme e precário a ser reinventado e reimaginado.

 

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Ponto de encontro: Oficina Cultural Oswald de Andrade – r. Três Rios, 363, SP, tel. para informações:  (11) 3255-2713 ; de qui. a sáb., às 21h; dom., às 19h. R$ 30. De 15/6 a 30/9. A produção recomenda ir com sapatos confortáveis e sem bolsa ou sacola; em dias de frio, ir agasalhado; em caso de chuva, a intervenção é cancelada.

Valor Econômico

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Valor Econômico, 21/05/2012, Caderno Eu & Cultura

 

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

Em meio ao turbilhão do centenário de nascimento de Nelson Rodrigues (1912-1980), o Teatro da Universidade de São Paulo (Tusp) demarca a efeméride de outro importante nome da dramaturgia brasileira moderna. Jorge Andrade nasceu em Barretos (SP) em 21 de maio de 1922, ou seja, se vivo, completaria hoje 90 anos.

 

Jorge Andrade – 90 anos – (re)leituras oferece uma série de encontros gratuitos que combinam apresentações de núcleos artísticos e reflexão teórica do legado do autor. Para o dramaturgo, o teatro deve apresentar o homem através da história, registrá-lo no seu tempo e no seu espaço, sem maniqueísmo. Suas peças investigam o passado para compreender e explicar o presente, como mostram A moratória, Vereda da salvação, Os ossos do barão e Rasto atrás, entre outras escritas durante as décadas de 1950 e 1970.

 

A decadência das elites rurais e urbanas e a formação de uma nova sociedade, protagonizada pelo imigrante e pelo ciclo industrial, estão nessa dramaturgia. O professor de literatura e historiador João Roberto Faria afirma que Andrade aborda a constituição da estrutura social do que ele chama de “civilização paulista”, nascida da ligação do campo e da cidade, alicerçada sobre o dinheiro do café, “numa mesma expressão econômica e política”.

 

“No passado remoto, essa ‘civilização paulista’ originou-se com os bandeirantes que procuraram as minas de ouro e pedras preciosas. O tema está em O sumidouro, que gira em torno de Fernão Dias e seu filho mameluco, peça que mostra ‘o começo da formação das elites paulistas’. Depois, com ‘Pedreira das Almas’, chega-se ao esgotamento do ciclo do ouro, início do ciclo do café com a ida do personagem Gabriel para São Paulo, onde serão formadas as grandes fazendas. O fim desse ciclo está em A moratória, que anuncia, por outro lado, o início do ciclo da máquina”, diz Faria.

 

Quanto às peças rurais, Escada expõe a decadência da elite paulista, ao passo que Os ossos do Barão diverte com seu efeito cômico e ensina com o seu registro histórico da ascensão do imigrante, da formação de uma nova elite econômica industrial.

 

O fluxo consciente dessa abrangência é elaborado pelo próprio Andrade no volume Marta, a árvore e o relógio (1970), no qual reúne dez dos seus textos mais expressivos e faz pequenas modificações a fim de compor um conjunto épico – a saga vivida por famílias que se relacionam desde o século XVII, época dos bandeirantes, até o final do séc. XX. Trata-se de “uma epopeia dramática monumental”, nas palavras do ensaísta e crítico alemão Anatol Rosenfeld (1912 – 1973), para quem o autor “acrescenta à visão épica da saga nordestina a voz mais dramática do mundo bandeirante”. Uma construção feita com “o desenho dos monumentos pacientemente elaborados”, diz o crítico Sábato Magaldi. Ou ainda o “mais orgânico e talvez único ciclo dramático, na acepção do termo, que o teatro brasileiro produziu até agora”, diz o professor e editor Jacó Guinsburg.

 

Para Rosenfeld, a simbologia do título do catatau está na imagem do relógio parado em alusão ao tempo estagnado da decadência, à indolência e incapacidade de ação, a uma relação distorcida da realidade. A árvore sugere as raízes, a visão orgânico-histórica que associa o crescimento e o futuro às origens enquanto evoca o movimento cíclico das estações, além de representar o peso do passado e das gerações de ancestrais das quais tantos personagens procuram se libertar. Marta, por sua vez, é a protagonista de As confrarias, no passado colonial, convertida em empregada em O sumidouro, no passado remoto.

 

Andrade chegou a dizer que tinha escrito não dez, mas uma só grande peça em dez partes. E que elas deveriam ser encenadas em dez dias seguidos. Isso nunca aconteceu. O evento no Tusp lê o ciclo completo, debate peças fora dele e mira outras dimensões da obra. “Tanto as palestras como as leituras dramatizadas retomam sempre a ideia de uma organicidade inalienável da obra como um todo. Os ecos mútuos entre dramaturgia, jornalismo e teledramaturgia são importantes”, afirma a professora e pesquisadora de artes cênicas Elizabeth Azevedo, uma das organizadoras do evento.

“Jorge sempre foi reconhecido pela crítica como um dos mais importantes autores do teatro brasileiro, mesmo que seus textos não frequentem os palcos com maior assiduidade, como merecem. Por outro lado, sua obra tem sido objeto constante de análises acadêmicas, gerando inúmeras dissertações e teses.”

 

Uma passagem biográfica do início dos anos 1950 dá notícias de como o teatro atravessou a vida de Andrade, morto em 1984 aos 61 anos. Aos 28 anos, saiu da fazendo do pai, na região de Barretos, desgostoso com o trabalho de fiscal de plantação de café. Rumou para Santos disposto a sumir no mundo em algum navio, uma vez que desistira do curso de direito e descartara a carreira militar. No caminho, parou em São Paulo, assistiu a um espetáculo com Cacilda Becker, conseguiu conversar com a atriz e disse que queria ser ator. Percebendo seu potencial para dramaturgo, aconselhou Andrade a entrar na Escola de Arte Dramática. Eis o ponto de mutação. Descendente dos fazendeiros estabelecidos em São Paulo com o fim do ciclo do ouro em Minas, tendo presenciado a derrocada de sua classe social, casado mais tarde com uma legítima paulista quatrocentona, coube ao dramaturgo articular a memória pessoal e a memória familiar para semear o seu diálogo forte e incisivo.

 

Jorge Andrade – 90 anos – (re)leituras

Tusp – rua Maria Antônia, 294, Consolação, SP, tel.  (11) 3123-5233 ; leituras: ter. e qua., às 19h30; palestras: qua., às 16h. Grátis. Até 6/6. Info: www.usp.br/tusp