15.2.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 15 de fevereiro de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Além do ataque veemente ao regime nazista alemão, o dramaturgo norte-americano Arthur Miller, 82 anos, transforma “Vidros Partidos” em um divã para a psicanálise. Situando a história da peça na Nova York de 1938, um ano antes da morte de Sigmund Freud, o autor deu contornos psicológicos tão fortes aos personagens do triângulo principal da história, que é impossível sair do teatro sem compartilhar de tanta angústia.
A relação do casal Philip Gellburg (Francarlos Reis) e Sylvia (Minam Mehler) é pura neurose. Ela está acomodada numa cadeira de rodas, vítima de uma “paralisia histérica”, como diagnostica o médico e dublê de psicólogo Herry Hyman (Luiz Serra).
Num primeiro momento, Sylvia atribui seu transtorno pessoal às notícias de guerra que chegam do outro lado do oceano. Como ela e o marido são judeus, se condói pelo massacre da etnia pelos carrascos de Hitler. Aos poucos, porém, o que se descortina são as mazelas de um casamento que agoniza há mais de 20 anos, desde o nascimento do único filho, hoje capitão das forças armadas dos Estados Unidos e atuando no front.
Enfim, são personagens de perfis desafiadores. Felizmente, a montagem de “Vidros Partidos”, em cena no Teatro Cultura Inglesa desde a semana passada, conta com a presença tocante de dois grandes atores em cena.
Francarlos Reis catalisa atenção com seu Philip turrão, obsessivo com os negócios, corpo sempre tenso, arqueado, dono de um olhar que é esbugalhado, de vigília, mas também é de peixe morto. O martírio de dar expediente como judeu 24 horas por dia, a âncora da culpa, o desconcerto da impotência sexual – Francarlos transmite a essência desse personagem que carrega sobre as costas todo o peso das obrigações que o mundo ocidental impõe sobre a masculinidade
– o mito do herói faz-tudo, pronto para embarcar para a guerra.
Contundente é também a interpretação de Miriam Mehler. Sylvia é uma mulher de brio, mas que abdicou da vida e se anulou bastante em função do casamento. Ao sublimar o genocídio dos judeus, se apegando ao fio universal da história viva da humanidade, ela acaba somatizando seu inferno na paralisia.
Nas cenas em que é impingida a voltar a andar, seja no acolhimento (leia-se calor humano) do médico, seja no embate com o marido, Miriam Mehler é puro arrebatamento. Ao exteriorizar a raiva de Sylvia, ao mesmo tempo em que a personagem reencontra sua força interior, a atriz vai ao limite do drama e expõe ali, atirada ao chão ou fragilizada na cadeira de rodas, o talento que cristaliza os 40 anos de carreira.
O diretor Iacov Hillel (“Angels in America”), de descendência judia, soube equilibrar aqui as duas vertentes temáticas de Arthur Miller (anti-nazismo, pró-psicologia). Para tanto, contou com um elenco que é a substância da montagem.
Soma-se ao brilho de Francarlos Reis e Miriam Mehler a entrega de Luiz Serra em cena, como o médico e vértice do triângulo, responsável pelos lampejos que iluminam a consciência do casal – ainda que Miller não seja nenhum pouco concessivo no desfecho da peça. Miriam Lins e Tuna Dwek cumprem bem as funções de válvula de escape para o quinhão de humor num drama psicológico que pede o envolvimento do espectador a todo instante. Denis Victorazo, por fim, completa o elenco com tranquilidade.
Com “Vidros Partidos”, sua peça mais recente, Arthur Miller estilhaça as histórias universal e pessoal, refletindo até que ponto este cruzamento afeta a todos. Para o bem e para o mal.
Vidros Partidos – De Arthur Miller. Direção: Iacov Hillel. Quinta e sexta, 29h30; sábado, 19h30; domingo, 19h. Teatro Cultural Inglesa (rua Deputado Lacerda Franco, 333, Pinheiros, tel. 814-0100). R$ 10,00. Até dia 28 de fevereiro.
“Entrevista” tem síntese de texto e interpretação
São Paulo – Foram apenas sete sessões no Sesc Pompéia, no período de 4 a 8 deste mês. Mas “Entrevista” merece uma longa temporada. O texto de Fernando Moreira Salles é uma instigante discussão sobre dois aspectos antigos e, ao mesmo tempo, extremamente atuais da humanidade: o amor e a criação. |
Contextualizando para a nossa época, a peça enfoca o encontro de um homem e uma mulher separados dois anos atrás, sabe-se lá porquê. É a chance de Paulo, dramaturgo, e Marta, jornalista e crítica teatral, colocarem os pontos nos “is”.
A formalidade de uma entrevista, onde se extrai informações da fonte, descamba para a pessoalidade das lembranças. O passado ainda fresco no olhar, no toque, no desdém de um pelo outro.
Paulo estava pronto para o ataque. Afinal, a despedida foi tão banal. Estavam em Veneza, cobrindo o festival internacional de teatro, quando ela simplesmente escreveu um bilhete sucinto, dizendo que partiria assim, de chofre, para nunca mais dar o ar da graça.
As explicações passionais, recheadas de ironia, são intercaladas por um exercício de metalinguagem que coloca em cheque sobretudo o teatro. Crítica e dramaturgo vão desde a busca do outro em Beckett, passando por “esse teatrinho feito de anabolizantes” até a franca retaliação com a cultura da TV e seu nivelamento por baixo.
Finalmente, no seu depoimento abertamente sentimental, Marta explica as razões do coração que a levaram a deixar o companheiro. A bucólica imagem dele tomando banho de mar em Veneza serviu-lhe de mola propulsora. Todo aquele desalento demonstrou, enfim, que a incomunicabilidade do casal era inevitável. Esta consciência, ainda que subjetiva, motivou sua partida.
Dirigidos por Maria Lúcia Pereira, profunda conhecedora da arte do ator, Sérgio Mastropasqua (Paulo) e Élida Marques (Marta) têm uma atuação concisa, econômica nos gestos, movimentos. Há uma nítida valorização do verbo na montagem, como requer o texto e a curta duração do espetáculo (menos de uma hora). Warde Marx, como o amigo comum do casal (Mário), testemunha ocular e silenciosa, cumpre seu papel sem comprometimento.
“Entrevista” tem, ainda, o mérito de trazer o diretor da Companhia das Letras, em seus primeiros passos, para o circuito da dramaturgia brasileira. Salles demonstra conhecimento do ofício e não se aventura por causa pequena.
“Irmãs do Tempo” tira bruxas do estereótipo
São Paulo – Como o dramaturgo inglês Tom Stoppard, 60 anos, que pinçou os traiçoeiros de Hamlet da condição de personagens coadjuvantes para lhes dar vida em “Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos” (1966), a peça “Irmãs do Tempo” reporta às bruxas não menos shakespearianas que previram a ascensão e queda de Macbeth.
Os autores Cláudia Vasconcellos e Marco Aurélio Pais escreveram o texto mergulhando nos arquétipos das bruxas, para depois liberá-las dos estereótipos e desaguar numa pesquisa cênica de fôlego das intérpretes Raquel Ornellas e Neca Zaryos.
Tomando como base as irmãs Weird de “Macbeth”, as atrizes desenvolveram uma atuação que prioriza o trabalho corporal. Dos gestos aos movimentos, passando pela extensão da voz e suas variantes onomatopaicas, ambas reinventam as noções de tempo, espaço e ação, transformando o palco em território livre para a imersão imaginária da caixa preta.
Com recursos que se aproximam da linguagem do clown e passam necessariamente pela contato-improvisação, elemento recorrente da dança-teatro contemporânea, Raquel e Neca se entregam à atuação prestando atenção aos mínimos detalhes. Apesar da formação acadêmica inerente das duas atrizes – a montagem é fruto de pesquisa de mestrado no Departamento de Artes Cênicas da USP -, felizmente “Irmãs do Tempo” é despida de hermetismos afins.
Aqui, importa o jogo cênico entre Raquel e Neca, as nuanças que estabelecem a cada momento do espetáculo. Elas estão em cena por completo, interagem com os objetos cênicos, com os figurinos, adereços, de modo que “recriar” e o verbo que melhor define suas performances.
É engenhosa e instigante a forma como a interpretação e o texto se equilibram entre o horror sangüinárío da história de Macbeth e a dimensão lúdica das histórias infantis. Assim, Rapunzel e Lady Macbeth surgem com o assombro e o onírico que lhes cabem – fio às vezes imperceptível.
Da temporada de estréia, no ano passado, para a reestréia agora, com sessões no Teatro Brincante, “Irmãs do Tempo” avançou bastante na sua comunicação com o público. Alcança síntese até quando cruza as barbaridades da Inquisição com o episódio do índio pataxó queimado em Brasília.
O ex-secretário de Cultura em Mogi, Armando Sérgio da Silva, que dirigiu a peça na primeira fase, desta vez divide a direção com Regina Mendes, professora, dona de formação sobretudo na dança. Daí a influência na afinidade corporal.
A cenografia de Renato Cymbalista e Eduardo Canella corresponde à atmosfera sugerida pelo texto – os galhos suspensos contrastam com a modernidade high-tech. Também os figurinos assinados por Christiane Gauche emprestam atemporalidade às personagens ora capetas, ora anjos de ocasião. Bem e mal, outro diapasão para a montagem.
Nesta viagem – simbolicamente, o espetáculo abre e fecha com um belo “barco” sugerido pelos corpos e vozes de Neca e Raquel -, o espectador tem a chance de penetrar o universo da bruxaria com introspecção e entretenimento garantidos. “Irmãs do Tempo” consegue ser experimental e acessível na medida certa. Sem concessão, sem redoma. Mas com leveza e muita inventividade.
Irmãs do Tempo – De Cláudia Vasconcellos e Marco Aurélio Pais. Direção: Armando Sérgio da Silva e Regina Mendes. Com Raquel Ornellas e Neca Zarvos. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, Vila Madalena, tel. 816-0575). R$ 10,00. Duração: 70 minutos. Até 1º de março.