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Crítica

‘Aurora boreal’ inclina à autoajuda na interação

7.12.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: David Cadeira

A forte identificação que o monólogo Aurora boreal estabelece com o espectador constitui seu paradoxo. O autor, diretor e ator Dionízio do Apodi, do grupo potiguar O Pessoal do Tarará, sediado em Mossoró há 11 anos, amarra de tal forma a empatia em torno do relato que chega a abri-lo à intervenção do público, instado a assumir em cena algum testemunho de coragem como aquele empreendido até ali pelo artista (colocando-se sob holofotes) e do personagem (narrando a superação de um dilema existencial). A interação é movediça. As concessões, idem.

Ao optar por esse mecanismo na reta final, Do Apodi tira dos trilhos o espetáculo concebido pela iminência do íntimo, do confessional. Trata-se de um intérprete e uma cadeira sob reduzida variação de luz e envoltos pela audiência em semicírculo. O despojamento e a delicadeza servem ao relato do sujeito que é fisgado pela paixão quando prestes a se tornar padre. Às voltas com a angústia da escolha entre a fé e o prazer, ou de como conciliá-los.

A dramaturgia fia-se no processo de encantamento por uma mulher, como a bifurcar o sagrado e o desejo. Terremoto interior, o texto carrega uma mística do sentimento amoroso afeita às Cartas portuguesas da freira Mariana Alcoforado, apaixonada por um militar francês no século 17 e padecida da dor da separação. O desfecho, aqui, também atrai o trágico.

Dionízio do Apodi, presença com mínimos recursos

Em Aurora boreal, o passo a passo da experiência narrada é registrado em tons lacrimosos ou extasiados. O modo de contar soa penitencial. Do Apodi conduz o personagem à ascese, ou será o contrário? Criador e criatura fundem-se, não deixam frestas. Entre si ou diante do espectador. Tanta intimidade borra a zona de distanciamento para o interlocutor encontrar sua leitura, adentrar o solo, se este assim lhe toca ou não. A intersubjetividade é absoluta, estendida ao abraço que o atuador pede e recebe feito terapia de grupo, arriscando-se à comiseração.

Desnecessário dizer que não lhe falta carisma. Ele segura o olhar, constrói presença com recursos mínimos. Dosa sutileza e intensidade na expressão corporal. Características opostas ao trabalho de voz apoiado em convenções dramatúrgicas e espaciais que inclinam o espetáculo, perigosamente, à seara da autoajuda. Quando Dionízio do Apodi fecha o parênteses da participação direta, fica impossível reatar o vínculo com a história que já escorria pelas mãos, seduzida pela catarse.

>> O jornalista viajou a convite da organização do 9º Festival de Teatro de Fortaleza.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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