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Crítica Militante

Motosserra e Pomba Gira nas encruzilhadas

7.6.2016  |  por Mateus Araújo

Foto de capa: Hélio Beltrânio

Em oposição à inflamada onda de discursos fundamentalistas e conservadores incoerentes com a modernidade professada nos tempos atuais, pululam nas artes cênicas contemporâneas, cada vez mais, os debates amplos e heterogêneos acerca das questões de gênero e sexualidade. Não sendo o sexo, entretanto, novidade nas temáticas do teatro nacional, ganham agora relevo nessa abordagem as estéticas e os discursos reforçados por uma ideia de crise de identidade e questionamento das normatividades que transpassam o homem moderno.

Atentas a uma pesquisa sobre as tensões de masculinidade e feminilidade presentes no teatro, duas montagens atuais chamam a uma análise comparativa sobre suas abordagens, desde as propostas até as execuções em cena. Anatomia do Fauno e Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou, apresentadas recentemente em São Paulo, embora sejam resultados artísticos distintos, se encontram nas encruzilhadas da discussão de gênero, usando os submundos do urbano como contexto e cenário.

Os espetáculos ‘Anatomia do Fauno’ e ‘Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou’ confrontam as estruturas políticas e religiosas que inflamam discursos repressores, sobretudo à sexualidade

Anatomia, uma criação do Laboratório de Práticas Performativas da USP e do Teatro da Pomba Gira Coletivo de Criadores, estreou em 2015 e encerrou sua mais recente temporada na SP Escola de Teatro no dia 15 de maio. A peça dirigida por Marcelo Denny e Marcelo D’Ávilla parte da poesia do francês Arthur Rimbaud (1854-1891) para suscitar as angústias que permeiam o cotidiano de uma metrópole e respigam na sexualidade.

Mais de 20 atores, apenas uma mulher, compõem o elenco da peça. O start da montagem é a chegada do mito Fauno à cidade grande. Jogado ao caos dessa metrópole, essa criatura vai se “humanizando” e descobrindo através do corpo as suas potências e fragilidades.

Anatomia transita por um universo anônimo, múltiplo. Os muitos rostos sem nome – em alguns casos com máscara – que figuram nessa história fazem com que a peça abdique de uma identidade só e escancare uma análise sobre o coletivo. Criada em grupo, a partir de referências imagéticas e de relatos pessoais dos próprios artistas, a colagem de cenas resulta em uma narrativa formada por quadros. São situações em que esses homens expõem suas (e nossas) humanidades através do que está escrito ou perfomatizado no corpo.

Após sair do seu habitat – que é a natureza – e chegar à metrópole, o primeiro contato que o Fauno tem com o “mundo real” é imergir numa frenética caminhada de homens que desfilam (literalmente) seus egoísmos, suas vaidades e incoerências. Centrada num olhar homoerótico sobre as relações no urbano, o espetáculo coloca na passarela/palco críticas e provocações ao comportamento moderno – dos preconceitos entre os próprios gays às compulsões e manias sexuais e sociais da sociedade. Aí a poesia de Rimbaud já inexiste, ficando apenas no impulso inicial.

Desse desfile, os atores partem para outros quadros. Entre eles há um que trata da virtualização do sexo, no que se refere ao uso de aplicativos de paquera e flerte tão comuns atualmente. Os personagens se comportam como animais que gritam e se “mutilam” em frente aos celulares, sem suportarem as tantas normas e cobranças a que estão sujeitos. Noutra situação, a perseguição religiosa à sexualidade se personifica na figura de uma santa, cuja imagem (a estátua de gesso) chega a ser usada como um objeto sexual, sugerindo um pênis ou vibrador que é enfiado na boca de um homem. Sobre quem assiste a tudo isso paira uma angústia, pois o discurso de solidão e autoflagelação permeia os registros performáticos da peça – o que sugere uma excessiva culpabilidade cristã e um recorrente sentimento de melancolia.

Anatomia do Fauno é um espetáculo que vai para a podridão, pro sujo, para dizer o que se deseja. Em secreções, vômito, urina, tinta e suor se lambuzam os atores para performatizarem suas pulsações. Estão presentes nessas referências, perceptivelmente, as saunas, os clubes de sexo e os banheiros públicos, onde habitam os principais fetiches; o que também reforça estereótipos sobre a homossexualidade.

Nessa imersão, no entanto, a peça deixa muitas informações esfareladas justamente pelos excessos visuais e cênicos a que recorre. Há cenas muito longas e outras cujas simbologias não são bem potencializadas ou teatralizadas demais. O sexo se apresenta muito mais ensaiado, criado e preocupante do que deveria, enfraquecendo o sentido da própria performance, do aqui e agora. Percepção complementar a essa teve a crítica Daniele Ávila Small, em texto publicado no Teatrojornal, ao pontuar uma supervalorização da vaidade artística que prejudica o todo.

Anatomia do Fauno conjuga desejo e sujeiraHélio Beltrânio

Anatomia do Fauno destila desejo e sujeira

Se em Anatomia do Fauno a reflexão da sexualidade se debruça sobre um olhar macro, sem personificação, em Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou a história é criada através dos cacos de um homem fragmentado, chamado Mateus. O personagem central da narrativa refaz uma via-crúcis em busca dos membros de seu corpo espalhados pelos tantos esbarros da vida e das relações pelas quais ele passou. O trabalho que marca a estreia do grupo A Motosserra Perfumada fez sua última apresentação em 18 de maio, na Estação Satyros, também em São Paulo.

Aquilo… vai ao submundo da metrópole, semelhante a Anatomia do Fauno. Desta vez o sujo não é líquido ou viscoso, mas feito de poeira, drogas, fumaça, pó e metralha. Na peça, o discurso da sexualidade sai de um contexto exclusivamente gay para enveredar por um questionamento mais incisivo acerca da construção do masculino. O homem e sua virilidade estão a todo instante sendo postos em xeque, numa sociedade para a qual o amor não se conjuga com o macho – o homem é vazio, não chora, não tem coração.

O espetáculo utiliza imagens polarizadas, inúmeros símbolos que reiteram constantemente um duelo: a mulher que impunha a motosserra; o som de um rock pesado executado ao vivo por uma banda em contraponto a elementos queers que vão tomando o corpo dos atores; os facões, representação do falocentrismo, enfiados no chão do palco e pisoteados constantemente pelos personagens; e os dois homens que enfrentam e hostilizam pela brutalidade, enquanto estão nus.

O risco latente na peça do coletivo A Motosserra PerfurmadaLeandro Pena

O risco latente na peça do coletivo A Motosserra Perfurmada

No discurso da dramaturgia do trabalho existe um caráter autobiográfico do próprio diretor e autor da peça, Biagio Pecorelli, que se pulveriza nessas cenas e nesses relatos. Pecorelli não se poupa de intervir na cena – o que deixa em evidência o caráter épico que a rege. Além disso, o Mateus – que é também o autor – é revezado pelos quatro atores homens que estão em cena e, dessa maneira, ganham voz heterogênea – dos tons estridentes de Bruno Caetano à calmaria de Jonnata Doll, passando pela perfomatividade queer de Felipe Vasconcellos e a emotividade contida de Alex Bartelli.

Os pedaços procurados pelo personagem e recolhidos a cada encontro com seu passado nos levam ao sentido de desconstrução do mito do “homem de verdade” – aquele que, segundo João Silvério Trevisan em seu livro Seis balas num buraco só: a crise do masculino, tem “a obrigação de ter coragem sempre, mostrar-se durão, enfrentar o mundo através da força e crueldade”. Um homem que está ligado ao arquétipo paterno, apontado pela atriz e pesquisadora do mito e o feminino, Luciana Lyra, como uma figura que guarda qualidades como aceleração e agressividade (2011).

Aquilo… é, na verdade, o cortejo ao enterro do patriarcado – a cena mais emblemática e a que melhor resume todo o traçado do personagem. Sendo assim, o fim nada mais é do que início de tudo. Diante do pai, com quem não se encontra há muito tempo, Mateus clama pelos seus olhos, e os recebe como duas cebolas. Ao chorar – coisa que homem não faz – o filho deixa cair sobre seu pai a terra que soterra a macheza e, junto com ela, as tantas imposições sobre a sexualidade.

Em uma das apresentações do espetáculo, viu-se Pecorelli, no papel do Pai, se desprender da maca na qual seu personagem morrera para ressuscitar e caminhar sôfrego e bêbado (ele toma uma garrafa inteira de uísque) por poucos metros e cair. Cair deitado nos pés de uma mulher que cantava verborragicamente com a voz, com o corpo e com o olhar. Essa mulher, a atriz e cantora transexual, nordestina e punk Verônica Valenttino, representava ali um ato político: por estar naquele lugar, diante do microfone e sobre a cabeça do patriarca – agora desfalecido aos seus pés. Esta cena se vale como um símbolo sintomático. Numa associação direta aos questionamentos atuais sobre machismo e cultura de estupro, a queda do Pai diante da trans aponta para que um dia esse patriarcado sôfrego e bêbado cairá morto diante dos pés da subversão.

Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou Leandro Pena

Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou

Embora caminhem por perspectivas cênicas diferentes, Anatomia do Fauno e Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou dizem muito sobre o que pulsa nesses tempos de perseguições. Os espetáculos confrontam as estruturas políticas e religiosas que inflamam discursos repressores, sobretudo à sexualidade. Enfrentam-nos potencializando a crise de identidade moderna de uma sociedade que caminha para um olhar anárquico sobre gênero, questionando padrões e preconceitos.

São espetáculos despreocupados com formalidades, a todo tempo chamando a plateia a adentrar nas provocações. Convite forçado em Anatonia pelo sexo próximo aos olhos de quem assiste e pelos respingos de secreções; e convite vertiginoso pela iminência do perigo aparente em Aquilo… Neste caso, situações que cobram dos atores força, exaustão e ações arriscadas – desde as facas sendo enfiadas a golpe no chão da cena às pauladas em tijolos amarrados ao corpo do artista.

Entretanto, ao falarem do sexo, à sua maneira, os dois espetáculos tencionam o que foi dito por Michel Foucault em entrevista à revista francesa Gai Pied, em 1981: que “o problema não é descobrir em si a verdade sobre seu sexo, mas, para além disso, usar de sua sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações”.

E – vale ressaltar – a problematização trazida pelas duas peças não só enfrenta estruturas repressoras como também vai de encontro às fragilidades e incoerências políticas que o Brasil vive hoje – do patriarcado, da misoginia e do machismo institucionalizado em um governo interino e de legitimidade questionável que ignora mulheres, negros, índios e pessoas LGBT, por exemplo.

No caso de Anatomia do Fauno, essas referências diretas estão grafadas no corpo dos personagens, com expressões contra o conservadorismo. Já em Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou o discurso está na própria fala dos personagens e em máscaras com o rosto de políticos como Eduardo Cunha, Michel Temer e Marcos Feliciano.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Graal, 2001.

LYRA, Luciana. Guerreiras e heroínas em performance: da artetnografia à mitodologia em artes cênicas. Tese defendida no Instituto de Artes da Unicamp, 2011.

TREVISAN, João Silvério. Seis balas num buraco só: a crise do masculino. Editora Record, 1998.

Ficha técnica:
Anatomia do Fauno
Dramaturgismo: Alexandre Rabelo
Direção: Marcelo D’Avilla e Marcelo Denny
Assistência de direção e produção: Jean Carlo Cunha
Performers: André Medeiros, Bruno Wendel, Camilla Ferreira, Carlos Jordão, Carlos Valle, David Medrado, Douglas Ricci, Duda Oliveira, Felipe Cavalcanti, Gabriel Castro, Gabriel Morgante, Gregório Candeloro, Hélio Beltrânio, Igor Luís, José Raul Molina, Marcelo D’Avilla, Marcelo Salvatore, Mateus Rodrigues, Pedro Braga, Pedro Pêra, Rodrigo Ximarelli e Vagner Cruz.
Equipe de cenografia: Denise Fujimoto, Felipe de Oliveira, Gabriel Prado, Lucas Menezes, Nina Simão, Marcelo Denny e Marcello Girotti
Equipe de figurinos: Hugo Cabral Carneiro, Marcello Girotti, Marcio Tassinari e Sueliton Martins
Equipe de iluminação: Douglas Ribeiro, Eidglas Xavier e François Moretti
Trilha sonora: Renato Navarro
Assistentes: Gabriela Barbara e Renata Sotero
Ilustração: Diego Cernohovsky
Ilustração e montagem de vídeo: Nerone Prandi
Captação de vídeo: Hugo Cabral Carneiro, Lucas Villar e Nerone Prandi
Fotografia: Hélio Beltrânio
Designer gráfico: Lucas Menezes
Body art: Hugo Cabral
Apoio: PopPorn, SP Escola de Teatro
Realização: Laboratório de Práticas Performativas da USP e Teatro da Pomba Gira Coletivo de Criadores / Residência SP Escola de Teatro

Ficha técnica:
Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou
Criação: A Motosserra Perfumada
Dramaturgia e direção: Biagio Pecorelli
Com: Alex Bartelli, Biagio Pecorelli, Camilla Rios, Felipe Vasconcellos, Bruno Caetano, Jonnata Doll e Paula Micchi
Banda ao vivo: Jonnata Doll, Feiticeiro Julião, Edson Van Gogh e Augusto Coaracy
Direção de arte e figurinos: Hugo Cabral
Desenho de luz: Marcela Katzin
Trilha composta: Jonnata Doll e Biagio Pecorelli
Ilustração: Mozart Fernandes
Adaptação e operação de luz: Marcela Katzin
Técnico de som: Dug Monteiro
Fotos de cena: Marcos Lobo
Vídeo de divulgação: Saulo Tomé
Direção de produção: Paula Micchi e Alex Bartelli
Produção executiva: Camila Rios e Felipe Vasconcellos
Agradecimentos: Governo do Estado de SP – Cultura, Prefeitura de São Paulo, Secretaria Municipal da Cultura, SP Escola de Teatro, Sulla Andreatto, Leandro Resende, Ivam Cabral, Beth Néspoli, Paulo Cesar Pereio, Renato Borghi, Suely Rolnik, Marcia Tiburi, Laerte Coutinho e Dimmy Kieer

Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).

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