O Diário de Mogi
27.3.1993 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Sábado, 27 de março de 1993. Caderno A – capa
O próprio diretor admite que a sua nova montagem passa por processo de amadurecimento, côo se viu no festival de Curitiba
VALMIR SANTOS
A história de “O Império das Meias Verdades” seria, em tese, a seguinte: espectador volta para casa à noite e depara com uma cena de esquina, onde uma mulher está agachada ao lado do corpo de um homem. Reluz a lâmina de uma faca que corta a escuridão local. O espectador se aproxima. Assustado, percebe que existe uma pessoa atrás de uma árvore, olhando para ele.
O observador, aqui, é observado. A mulher foge. O espectador encontra, ao lado do corpo, uma caderneta de anotações. E retira-se da cena com a mesma. Em sua casa, a leitura das páginas remete a outra história, a da criação do mundo sob perspectiva de ninguém menos que Adão. Quando o leitor-voyeur chega na parte do sexo para o sétimo dia, adormece (descansa). E sonha.
Seria esse o fio, mas Gerald Thomas o reduz a uma narração em off, feita pelo próprio. Ele é avesso ao preconceito. Assim, o público que lotou o Ópera de Arame, o belíssimo teatro de Curitiba, na quarta-feira, viu um espetáculo onde predomina o jogo onírico. O diretor mergulha no sonho desse espectador angustiado. É por isso que “O Império…” se apresenta inacabado, fragmentado. Thomas fala em um processo de amadurecimento que pode durar até um semestre. Enquanto isso, o público solta fumacinha da cabeça – talvez também o diretor, o elenco – em busca de respostas.
Thomas volta a cutucar a religião, o sexo. Chama Deus de Anastácio. Eva passa boa parte da peça menstruada. Numa cena-síntese, o Mordomo pedala sua bicicleta, um cidadão aleijado “anda” sobre um carrinho de rolimã, Adão se apóia em muletas e Eva rasteja no chão permeado de maçãs. Tudo indica forma. Sem preencher o vazio, o oco. A fumaça peculiar está lá, mas em menor intensidade. Daniela Thomas, que deixou o cenário por conta do ex-marido, faz falta. Gerald Thomas recorre a vaivéns de seis paredes, recurso batido. E o véu, que costumava ficar à frente do palco, desta vez foi colocado no fundo.
Uma boa notícia: o ator de Thomas está mais livre. Numa linha progressiva que indicou em “M.O.R.T.E.” e passou pela última montagem. “The Flash And Crash Days”, a Companhia Ópera Seca não é mais a mesma. A agora primeira atriz, Fernanda Torres, Luís Damasceno e Edílson Botelho, por exemplo, têm bons momentos. O corpo fala mais.
“O Império…” se completa com um texto simultaneamente despojado e coloquial, conciso e poético. Thomas coloca na boca de seus personagens a autocrítica (“Somos mesmo uma sociedade de imbecis”), a estética (“Nossa obra do acaso total”) e a reivindicação (“Convoco uma nova geração de criadores com a geometria de um parangolé brasileiro ou de um guarda-chuva; que chova em nossa poesia!”). Para arrematar, há um “fuck you” repetido aqui e acolá, um desabafo do criador diante da criação incompreendida.
Protestos marcam passagem de diretor
* Alguns quiprocós marcaram a passagem Gerald Thomas por Curitiba. Atrasou cerca de uma hora a coletiva; a Imprensa paranaense se retirou “em protesto”.
No final de “O Império…”, quarta-feira, mandou um dedo médio em riste para as poucas vaias da platéia. E no debate de anteontem (“Exportação é que importa?”), tema que tratou do teatro brasileiro lá fora), ficou patente a pouca sintonia com a diretora Bia Lessa, no que tange aos respectivos estilos.
“O Império…” chega em São Paulo no final do mês que vem.
* Quem também chega à Capital é o diretor carioca Moacyr Góes. Traz para o Centro Cultural São Paulo e Teatro Itália seus três últimos espetáculos: “Escola de Bufões”, de Michel Guelderode; “Comunicação a Uma Academia”, de Frank Kafka; e Guelderode – as duas últimas foram apresentadas em Curitiba.
A estréia tripla deve acontecer na próxima semana
* “O Paraíso Perdido”, do grupo Teatro da Vertigem, provoca o levante de católicos radicais, inconformados com a encenação da peça na Catedral Metropolitana de Curitiba. Mas a celeuma não deve dar em nada, pois foram programadas até sessões extras.
* Yacoff Sarkovas, 38 anos, a principal cabeça do festival, já manteve uma fazenda em Salesópolis. Lidou com minhocário, caquizal e eucaliptal entre 83 e 84, quando deixou o campo para lidar com outra paixão: as artes cênicas. Sua empresa, a Artecultura, de São Paulo, se juntou a Arte de Fato, de Curitiba, para organizar o evento que, em sua segunda edição, se consolida como o mais profissional do País.
Sarkovas foi responsável pela introdução do marketing cultural no Brasil, a partir de meados da década de 80. Praticamente lançou Gerald Thomas, Bia Lessa, Geraldo Villela, Antônio Nóbrega, entre outros criadores de cerca de 50 projetos abarcados pela Artecultura.
* O festival acaba amanhã. A previsão é de que 25 mil pessoas assistam aos 16 espetáculos
As últimas peças são “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, de Plínio Marcos, direção de Emílio Di Biasi; “Cartas Portuguesas”, baseada em cartas da freira Mariana Alcoforado; e “Othelo – A Sombra de uma Dúvida”, versão cine-teatro dos jovens Fabrízia Pinto e René Birocchi para a obra de Shakespeare.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.