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O Diário de Mogi

‘Regras do Jogo’ traz humor britânico

17.8.1995  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 17 de agosto de 1995.   Caderno A – capa

 

Os atores Paulo Autran, Glória Menezes e Karin Rodrigues são dirigidos por Marco Nanini na peça do dramaturgo Noel Coward

 

 

VALMIR SANTOS

Não se deve esperar mergulhos profundos na alma humana em uma comédia dita sofisticada. Caso de “As Regras do Jogo”, um dos últimos textos do inglês Noel Coward, prestigiado dramaturgo dos anos 30 e 40. Aqui, o caminho é o da sutileza. E bem escolhido.

O que não significa ausência de conflito e de vasculhação interior. “As Regras do Jogos” mostra britanicamente os descaminhos da velhice. Sir David Latymer, o protagonista, é um escritor cuja vaidade e prepotência não têm mais porquê. Personagem prato-cheio para drama, porém revestido por Coward com forte apelo humorístico.

Perfil ideal para um grande ator, como Paulo Autran. Na montagem em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, ele é a principal sustentação do texto enxuto. Sua presença impõe graça a um Laytmer gozador e inseguro, já descortinando a morte em vida. Autran, como no monólogo “Quadrante” no papel de Próspero em “A Tempestade” com a companhia Armazém (Londrina), em recente passagem pela Capital, domina a cena como ninguém.

Ao seu lado, Glória Menezes, atriz que cai com tipos hilariantes, à beira do escracho. Sua Carlota Grey, amante do escritor, além de atriz decadente, também concentra fogo no poder do riso. Dos gestos alongados à fala propositadamente afetada, Glória vai ao exagero da interpretação, terreno que conhece, para conquistar a empatia do público ávido por uma deixa.

Karin Rodrigues, fechando o triângulo estelar, empresta elegância a Hilde, atual mulher de Latymer. Dona menos de si do que dos outros, faz da conciliação uma regra.

“As Regras do Jogo” traz um cenário naturalista (a velha sala de estar), fazendo jus ao texto. A direção de Marco Nanini é tranquila, respeitando o autor e a característica de cada um dos atores.

As Regras do Jogo – De Noel Coward. Tradução: Sérgio Viotti. Com Paulo Greca, Paulo Autran, Glória Menezes e Karin Rodrigues. Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. R$ 20,00 (quarta) e R$ 30,00 (demais dias). Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, tel. 288-0136). Até 1º de outubro.

Ator mergulha no mito e emociona em “Eva Perón”

 Roberto Cordovani faz uma evolução corporal impressionante em “Eva Perón – O Espetáculo”. Começa com a exuberância juvenil da então atriz de rádio Eva Duarte e termina com a frágil primeira-dama e companheira de Juan Domingos Perón, coronel que se tornou um dos principais nomes da história argentina, nos anos 40 e início dos 50.

A peça visita o mito Eva Perón. Em pleno regime militar, com a preponderância masculina no poder, ela construiu seu trajeto. Quando morreu aos 33 anos, fulminada pelo câncer, 28 quilos, colocou a Argentina em prantos. Eva, ou Evita, levou a bandeira dos humildes, dos “descamisados” – qualquer semelhança com o gasto discurso de Collor é mera usurpação histórica.

Há um tom grandiloqüente no espetáculo, mais fruto da própria cultura do país vizinho, europeizado de norte a sul, do que opção estética. O universo do tango, da passionalidade, é traduzido com esmero. O conteúdo trágico abre espaço também para o místico.

Logo na abertura, surge um Abutre (Marcos Veraz). Os movimentos do corpo se estendem às “asas” pretas. Como que um prenúncio da tragédia que se abaterá sobre o palco nos minutos seguintes. Sem contar o quinhão religioso, com inserções de uma Freira (Nair Cordovani).

Cordovani, que também assina a direção, não desembocou para o clichê. Soube se distanciar do mito para mostrá-lo como ele é. Sua Eva Perón é profunda e toca. Afetação passa longe. A carreira do ator, aliás, espelha a excelência em papéis femininos (“Olhares de Perfil – O Mito de Greta garbo”, por exemplo, é seu trabalho mais conhecido e premiado).

Além da atuação contagiante de Cordovani, “Eva Perón” apresenta Nuno de Carvalho Homem perfeitamente sintonizado com o papel do general. Despojamento do cenário (Manuel Rodrigues) e figurinos também funcionam. (VS)

 

Eva Perón – O Espetáculo – De Roberto Cordovani, Iolanda Aldrei e Angelo Bréa. Direção: Cordovani. Com Cordovani, Nuno de Carvalho Homem, Marcos Verza e Nair Cordovani. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 189-2358). R$ 25,00. Espetáculos para escolas, tel. 562-7437 (com Júlia ou Atílio).

 

‘Verás Que Tudo é Mentira’ faz poesia com metateatro

Quem se emocionou ao assistir ao sensível filme “A Viagem do Capitão Tornado”, do cineasta italiano Ettore Scola, não vai se decepcionar com a montagem de “Verás Que É Tudo Mentira”, também uma adaptação da obra de Theophile Gautier.

Metateatro, constitui uma verdadeira declaração de amor à arte de representar. A adaptação de Reinaldo Maia e a direção de Marco Antonio Rodrigues respeitam a idealização do artista pelo autor – um ser superior, um olhar diferente e captador da essência humana nas sociedades.

“Verás…” transforma uma carroça em palco. Resume, então, o espírito mambembe. Como um grupo de Tonhetas (Antonio Nóbrega), atores de uma companhia levam sua arte pela estrada, de cidade em cidade. A solução da carroça (por Márcio Medina) cria um espaço lúdico, bem ocupado quando da primeira temporada em um salão paroquial. Agora, a peça está em cartaz em nova sala, o Teatro Lucas Pardo Filho.

A montagem vibra pela entrega do elenco em cena. O sentido de roda, de jogo, está presente do início ao fim.

Trata-se de uma história que evoca a secular comédia dell’arte. Uma trupe mambembe francesa dirigida por Tirano (Paulo Bordhin) viaja com destino a Paris, em busca do sucesso – das luzes. No caminho, se hospeda no castelo do barão Sigognac (Mário Condor). Descontente com a vida, ele acaba se incorporando ao grupo e, quando menos espera, está no palco.

Abdicar do curso comum dos mortais, eis a função do artista, parece ser a mensagem poética de Theophile. A montagem a leva à risca e compartilha um momento muito especial com os espectadores. (VS)

 

 Verás que é tudo mentira – De Theophile Gautier. Adaptação: Reinaldo Maia. Direção: Marco Antonio Rodrigues. Com Renata Zanetta, Rogério Bandeira e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Lucas Pardo Filho (rua Gravataí, 47, Consolação, tel. 276-3026). R$ 15,00. 90 minutos. Até novembro.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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