O Diário de Mogi
1.5.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quarta-feira, 01 de maio de 1996. Caderno A – capa
No elenco jovem, o ator de 73 anos demonstra fôlego e talento para vencer o desafio de interpretar personagem de Shakespeare
VALMIR SANTOS
Rei Lear é dos personagens mais emblemáticos de Shakespeare. Nele, o autor combina a crueldade e a cadência humana. Octogenário, é o próprio condutor da vida que lhe resta. Num gesto de infantilidade, abdica do poder e das finanças, entrega-os de mão beijadas às filhas megeras e, de quebra, condena ao ostracismo a caçula que o tem com maior carinho. A lei da causa e efeito é implacável.
Tamanha densidade criou uma espécie de mito em torno do personagem. Para interpretá-lo, requer-se um ator com bagagem suficiente para sintetizar a tragicidade inerente. É com essa expectativa, alimentada pelo próprio, que Paulo Autran estrela a montagem brasileira de “Rei Lear”, em curtíssima temporada na Capital (até domingo).
Vê-lo em cena, de fato, compensa. Seu Lear casa-se com os 73 anos de idade. Cambaleando, reflete fisicamente o desequilíbrio do rei shakespeareno . Ator transita com vigor entre os jovens do elenco. Além disso, possui fôlego suficiente para percorrer o cenário espaçoso (duas rampas móveis concentram as principais cenas).
É o viés da loucura, porém, que melhor representa a força do intérprete maior do teatro brasileiro contemporâneo. A “fúria senil” de Lear, que envelheceu sem descobrir a sabedoria, salta aos olhos. Paradoxalmente, já que o bardo inglês faz da contradição uma regra, é nos instantes de puro delírio que o rei se mostra mais lúcido.
Quando caem o véu de Goneril (Karen Rodrigues) e Regan (Suzana Faini), as filhas impostoras, ele já está em processo adiantado de mergulho interior. Num lampejo, se arrepende de maldizer Cordélia (Raquel Ripani). Mas agora é tarde e as mortes são como que inevitáveis. A aura da unanimidade não perturba o trabalho de fôlego de Autran.
A montagem de Ulysses Cruz traz soluções que o diretor encontrara em “Péricles, o Príncipe de Tiro”, leitura instigante e até popular de Shakespeare – a peça foi vista por mais de 100 mil espectadores.
Ulysses coloca os três músicos, responsáveis pela execução ao vivo, no plano superior. As cenas se desenrolam no plano propriamente do palco, além das rampas concebidas pelo cenógrafo Hélio Eichbauer (mesmo de “Péricles”).
A intensa movimentação do elenco, acrescida da indumentária e iluminação, configuram uma estática cinematográfica. Ulysses Cruz está interessado em tornar Shakespeare acessível nos tempos modernos. Consegue. Lança mão de recursos visuais, mas não esquece do trabalho de ator.
Em “Rei Lear”, a preparação fica por conta de Hélio Cícero (Conde de Gloucester), que vem de anos no Centro de Preparação Teatral (CPT), com Antunes Filho.
Outro exemplo de cuidado com a atuação se expressa nos exercícios de tai-chi-chuan, realizados ao início e final da peça. Diante de tanto desequilíbrio dos personagens, os movimentos de leveza constituem um alento.
Rei Lear – De William Shakespeare. Direção: Ulysses Cruz. Com Roberto Matos, Guilherme Weber, Adriano Garib. César Augusto, Kadu Karneiro, Marcos Suchara, Sylvie Laila, Valéria Zeidan e outros. Hoje a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel. 258-3616). R$ 30,00. 135 minutos. Até domingo.
Samuel Beckett (1906-1989) pouco concede ao espectador. Suas peças são marcadas por uma estrutura fragmentada, que dispensa o início-meio-fim. Os vazios, os silêncios prolongados não por acaso. “Alguma coisa segue seu curso”, repete o submisso Clov em “Fim de Jogo”. É assim. Enredar pelos fiapos da existência, eis o fascínio e repulsa em Beckett. Seu texto incomoda e tangencia.
A montagem em cartaz no Centro Cultural São Paulo, dentro do projeto “Beckett 90 anos” – ele completaria no último dia 13 – é coerente com a atmosfera peculiar do dramaturgo irlandês. O que há de mais inusitado e absurdo, para fazer jus ao estilo teatral criado por ele e pelo romeno Eugène Ionesco nos anos 50, foi devidamente assimilado pela concepção e interpretação.
O diretor Rubens Rusche, profundo conhecedor da obra beckettiana, traduziu “Fim de Jogo” em parceria com Luiz Benati. O jogo de palavras tem importância capital e, felizmente, flui muito bem, dispensando-se o tom hermético.
Márcio Aurélio, premiado diretor de “A Bilha quebrada”, revela talento na cenografia. A rusticidade acinzentada das três paredes, “respiradas” por apenas dois buracos nas extremidades, de onde se vê, respectivamente, a terra e o mar, é puro Beckett.
É no elenco, porém, que “Fim de Jogo” brilha por excelência. Linneu Dias (Hamm) e Antonio Galleão (Clov), nos papéis principais, dominam com precisão a interpretação de papéis de pouca sugestão e muita introspecção. Para viver o velho cego e paralítico Hamm e seu criado escravo convém uma interiorização de gestos, de respiração, de tempo, enfim, a técnica é imprescindível.
Hamm e Clov, ou Dias e Galeão, estabelecem uma estranha relação afetiva. A interdependência absoluta. Obsessão e neurose alimentam um a outro. Não bastasse os dois, Beckett cria os pais do paralítico, Nagg (Nivaldo Todaro) e Nell (Bete Dorgam), ambos com pernas amputadas e vivendo, cada um, com o que restou do corpo enterrado em lata de lixo.
Também Bete e Todaro, com a expressão restrita aos músculos da face, com a abertura da lata de lixo, consegue catalisar a atenção do público e se inserem com firmeza na “farsa cotidiana”.
Farsa, claro, porque Beckett, antes de mais nada, parece rir da ridícula condição humana em certas ocasiões. “Fim de Jogo”, a montagem, optou por acentuar o humor corrosivo com o qual o autor acena com os diálogos.
“Isso não está muito divertido”, observa Hamm. “Não há nada mais engraçado do que a infelicidade”, dispara Nell. “Toda humanidade pode renascer de uma pulga”, profetiza Hamm, outra vez. Assim, é impossível não se envolver com tal distanciamento.
Fim de Jogo – De Samuel Beckett. Direção: Rubens Rusche. Com Linneu Dias, Antonio Galleão, Nivaldo Todaro e Bete Dorgam. Quarta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 4,00 (quarta) e R$ 8,00 (demais dias). Até 23 de junho.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.