O Diário de Mogi
28.7.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 28 de julho de 1996. Caderno A
VALMIR SANTOS
Importa menos razão ou busca de discernimento em se tratando do teatro de José Celso Martinez. A experiência viva da interpretação, na troca com o público “instalado” (talvez seja esse o termo apropriado) na arena vertical do Teatro Oficina, é de uma injeção catártica rara na cena brasileira.
Seus atores, “possuídos” pelos deuses recorrentes do palco, Dionísio à frente, envolvem o espectador com energia primitiva. Assistindo-se ao trabalho do Uzyna Uzona, fica a sensação de retrocesso ao estado primeiro da comunhão humana – se é que tal dimensão existe -, no qual máscaras sociais não tinham vez.
Em “Ham-Let”, em “Mystérios Gozozos” e agora em “Bacantes”, Zé Celso conquista pela coerência com sua proposta cênica. Impossível se abster; não penetrar seu rito. O encenador, aquele que lançou o Oficina nos anos 70, com “Roda Viva”, enterra a indiferença.
Àqueles que abandonam o embate no primeiro intervalo, sob a desculpa do “tempo”, resta as “incômodas” imagens na cabeça. As cinco e tantas horas, porém, depõem pela suspensão do deus Cronos.
Sim, seus personagens se despem. Mas a nudez como querem alguns, presos ao olhar erotizado, nada tem que ver com a história. Muito além do tecido epitelial, estão os poros da percepção, dos quais William Burroughs já disse a que veio.
Libertária é também uma tradução perfeita para a transcendência do prazer. “Esta cidade vai aprender quanto custa desprezar a orgia”, brada Dionísio (Marcelo Drummond), a certa altura da montagem.
As sensações, como se disse, não são apenas da ordem do olhar. Estão, por exemplo, na uva umedecida pelo vinho, amaciada na boca da plebe-platéia, ou no “estraçalhamento” de quem abre o corpo para as bacantes.
Eurípedes escreveu “Bacantes” (Bakhai) em 406 a.C. É a história de Dionísio, divindade que rege o teatro. Sua chegada à cidade governada por Penteu (Fransérgio Araújo) estabelece o conflito da tragédia.
O nervo da montagem adaptada por Zé Celso é o enfrentamento de Dionísio e Penteu. A ponte entre o clássico e o Brasil dos sem-terra surge com alegoria peculiar.
Zé Celso, como Tirésias, encarna a figura do mestre de cena. Seus longos cabelos brancos, a la Bozo, o corpo esguio, fragilizado pelos recentes problemas de saúde – tudo isso amplia sua presença. Vence, sempre, pela paixão ao teatro.
“Bacantes” é das suas recentes montagens a que mais comunica. Vai às entranhas para dar mensagem. E o faz sem a “ditadura da orgia”. O segredo de tudo isso tem muito a ver com a musicalidade. O reggae, o jazz, o blues, a bossa nova, o carnaval, entre outros ritmos, garantem o pulso graças ao elenco, aos músicos excelentes e à produção (sem medo de ser “super”) bem cuidados. Vale a pena experimentar o rito que, ao final, celebra a vida.
Bacantes – Sexta a sábado, 21h; domingo, 19h. Com Pascoal da Conceição, Denise Assunção, Alleyona Cavali, Vera Leite, Fabiana Serroni, Tânia Albissú e outros. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 606-2818). R$ 20,00 e R$ 10,00 (estudantes). Duração: cinco horas.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.