O Diário de Mogi
6.4.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 06 de abril de 1997. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
CURITIBA – Nelson de Sá aproveitou a última edição do Festival de Teatro de Curitiba, mês passado, para distribuir um catálogo do seu primeiro livro, a sair nos próximos dias pela editora Hucitec. Com fotos de Lenise Pinheiro, “Divers/Idade – Um Guia de Teatro dos Anos 90” é uma coletânea de textos publicados na ‘Folha de S. Paulo”, onde trabalha há oito anos. São críticas e reportagens que refletem tendências da década, até aqui. Da renovação dramatúrgica encabeçada, acredita, pelo americano Tony Kushner (“Angels in America”) ao rito cênico católico do pernambucano Romero de Andrade Lima (“Auto da Paixão”), Sá resume o que sua parabólica captou até agora. Tem carinho especial por Zé Celso (autor da “orelha” do livro), de quem chegou a ser assistente. “Não sou niilista, tenho esperança”, afirma o paulista de Andradina. Paralelamente, assina coluna de análise do telejornalismo brasileiro, invariavelmente alfinetando. Na conversa com O Diário, em Curitiba, Sá falou de sua formação, influência de Francis, retratações, espetáculos preferidos, fio que separa a atuação de crítico e de artista, enfim, de “Divers/Idade”.
O Diário – Como foi a pesquisa?
Nelson de Sá – Eu fui lá no cadernão da “Folha”. Fiquei lá pesquisando. Depois da quarta hora, você nem sabe mais o que está vendo. Não só as críticas, mas textos de tendências, de panoramas do teatro brasileiro, como a reafirmação da dramaturgia, do teatro ritual, com abertura maior para presença do ritual religioso, de uma cultura popular. Enfim, tem entrevistas também.
O Diário – E essa volta ao começo, essa retrospectiva dos anos 90 até aqui? Houve surpresas, mudanças significativas nos trabalhos dos grupos, diretores ou autores?
Sá – Fiquei surpeendido com alguns artistas… Havia uma certa unidade geracional, que começou na virada dos anos 90 e estabelecia o que eu imagino ser um novo momento no teatro brasileiro.
O Diário – O que você identifica de mndança dos anos 80 para os 90?
Sá – Os anos 80 foram do diretor e do trabalho visual, tanto Antunes Filho como Gerald. A dramaturgia não era o centro. Em dezembro de 90, acho interessante, morrei Tadeuz Kantor, o “pai” do teatro visual. Gerald Thomas, que era o nosso paradigma do teatro visual, escreveu M.O.R.T.E.”. A partir daí o teatro estilhaçou, o teatro foi para todos os cantos imagináveis. Tem outros aspectos que a gente pode colocar aí: a queda do Muro de Berlim, em 89, que abalou a cabeça de todo mundo, trouxe um novo momento não só para o teatro, mas para a sociedade em geral. Com o fim da “velha ordem”, tudo era possível. O teatro refletiu isso. Foi muito bonito acompnahar esse momento, e continuar acompanhando, porque a coisa continua. Daí o título do livro, “Divers/Idade”, a idéia de uma idade da diversidade, de uma idade que não existe mais, sem programa comum. É até engraçado…
Entrevistei o Décio de Almeida Prado – e ele autorizou colocar como citação no abre do livro -, ele disse que na época dele, por mais que as pessoas fizessem coisas diferentes, havia uma linha comum que unia, de certa maneira, as coisas mais aparentemente díspares. TBC e Arena tinham pelo menos um eixo. Hoje em dia não tem mais isso.
O Diário – Que pessoas, espetáculos-chave, aspectos da atuação e dramaturgia que o livro destaca?
Sá – Em termos de espetáculos, no Brasil e no exterior, a grande peça da primeira metade dos anos 90 foi “Angels in America”. É inquestionável. Deu a possibilidade de poder retornar a dramaturgia no mundo, com temas da realidade contemporânea. Abriu caminhos. Ela foi escrita em 90, eu a vi em 92 ou 93, em Londres. O texto mais longo do livro, inclusive, é uma entrevista com Tony Kushner, o autor.
No Brasil destaco “Romeu e Julieta” do Galpão, dirigido por Gabriel Villela. Teve “Auto da Paixão”, de Romero de Andrade Lima, com As Pastorinhas, um rito católico muito significativo. Teve “M.OR.T.E.” e “Fim de Jogo”, duas peças com títulos interessantes, fim de um tempo mesmo. A primeira do Gerald e a segunda de Beckett. Tem ainda “O Livro de Jó”, dirigida por Marco Antônio Araújo, e “A Bao Qu”, de Enrique Diaz. E mais recentemente está começando a entrar finalmente a segunda metade dos anos 90, que pretendo retratar posteriormente. São peças de dramaturgos que a gente pode caracterizar mais claramente como um movimento. A expressão é horrível, eles odeiam, acham que não é um movimento em si, no que eles estão certos, mas de qualquer maneira. nós como jornalistas e tutores, podemos reduzi-lo a um movimento nessa altura. Tem vários autores, como Dionísio Neto, Fernando Bonassi, Patrícia Melo, Bôsco Brasil. O diferencial dramatúrgico é que são realistas, de certa maneira, porque tentam retratar a realidade cotidiana, urbana que as pessoas vivem, espelho da vida.
Espetáculos como “Banheiro” e “Opus Profundum”, mais do que tentar revolucionar o mundo, falam de si mesmos. “Eu vivo isso e olha aqui”, é mais ou menos essa idéia.
O Diário – E aí o Antunes ficou fora?
Sá – Não, ele é um grande diretor. O problema é que o livro tenta identificar a nova leva de autores, diretores e atores… Aliás, deixei de falar de Antunes. Ele teve atores geniais neste período. O trabalho do Eduardo Moreira no Galpão, de Marcelo Drummond no Oficina… É sempre complicado citar nomes.
O Diário – Dá para apontar esteticamente as tendências nos primeiros anos da década?
Sá – Houve uma revalorização muito grande da cultura popular, do teatro de rito, onde a figura de Deus é mais presente. Como em “Auto da Paixão”, “As Suplicantes”, “A Rua da Amargura” de Villela, o trabalh do Antonio Nóbrega; “O Livro de Jó”, baseado na bíblia etc. É mais uma tendência do que movimento. Se falar assim os caras têm ataque…
Outra coisa foi a retomada da palavra na dramaturgia. São duas vertentes conflitantes, o ritual e a palavra. Mas ao mesmo tempo é um mundo em que a gente vive, um mundo da diversidade.
Houve também uma ruptura no eixo Rio-São Paulo, com grupos de Belo Horizonte, João Pessoa, Porto Alegre, festivais de Londrina, de Curitiba, uma explosão de cultura que reflete o momento que estamos vivendo. As culturas regionais estão ganhando mais força do que antes.
O Diário – Você chegou a trabalhar com Zé Celso…
Sá – …Eu fui assitente de direção em “As Boas”, adaptação de “As Criadas”, de Jean Genet. E traduzi “Ham-Let”. “As Boas” foi um trabalho muito problemático. A “Folha” é um jornal que joga pesado com essa questão de distanciamento. Eu estava fazendo uma coisa que achava ao mesmo tempo certo e errado. Eu mesmo me questionei. E botei na minha cabeça que não podia escrever sobre nenhuma das duas pecas. Esse foi meu limite na “Folha”.
O Diário – Existe algum tipo de cerceamento às suas críticas?
Sá – Tem assim uma ou outra restrição… Pode-se fazer então…Mas censura não, nenhuma, zsero. Na estréia do primeiro espetáculo de Otávio Frias Filho (“Típico Romântico”), por exemplo, fiz uma crítica negativa do espetáculo e criou uma polêmica muito grande com o diretor da peça (Maurício Paroni de Castro) e nada foi questionado ou limitado.
O Diário – Como lida com as críticas ao seu trabalho? Tem muitos inimigos?
Sá – Inimigos também não né (ri). Tem problemas, sim… Bom, ninguém gosta de não ser gostado. Só mesmo diretor de teatro para achar que vaia é a glória… Não existe carinho na vaia. Eu procuro me agarrar às regras do jornalismo.
O Diário – Já teve críticas que retratou?
Sá – Teve milhares… Milhares não (ri). Eu não consigo lembrar aqui… Teve coisas que eu poderia ser menos agressivo. O difícil é quando você cai no tom pessoal. Uma vez o Décio, quando soube que eu estava trabalhando com Zé Celso, ele disse que crítico não pde. Na época eu achava que era uma experiência para completar um ciclo e me tornar um crítico de fato. Ele falou que crítico de teatro não vai na coxia, não vai no bastidor, não vai em festas da classe. Enfim, crítico tem que ficar fora. Acho importante o crítico saber que ele não tem partido.
Eu aprendi isso. Saí da companhia do Zé Celso por causa disso. Cria-se uma situação que prejudica o seu trabalho jornalístico depois. Tem que ser de uma frieza jornalística, um distanciamento, mesmo com os amigos. É como você ficar amigo da fonte e privilegiá-la. Uma vez escrevi uma crítica do Zé Celso {“Mistérios Gozozos” } e ele me disse que chorou. O próprio Zé Celso e as pessoas da classe em geral criticam esse distanciamento, acham bobagem. Mas eu não acho.
O Diário – Para você, a crítica é antes uma atitude jornalística?
Sá – É jornalismo sim. Isso não é novo. O Décio, teve momentos em que ele se disse da classe teatral e outros em que disse exatamente o contrário. O Brasil teve um momento em que o jornalismo tinha uma configuração ideológica maior. Eu só faço refletir no trabalho de crítica uma coisa que é do próprio jornal hoje… Da mesma maneira que tem uma diversidade de teatro existe uma diversidade de críticas.
O Diário – Qual a função da crítica hoje no Brasil?
Sá – O papel da crítica em geral… Assim como no teatro, você tem várias vertentes. Não existe uma crítica só, e isso não é so no Brasil. Questões básicas para mim são: eu faço uma crítica para o leitor, não para o espetáculo. Obviamente existem várias coisas próprias do teatro. Tem peças que você considera boa mas, enfim, você vive num mundo que tem milhares de referências na televisão, no rádio. Outra questão importante, que não está nem na minha boca, foi dita pelo Otácio Frias Filho, diretor de redação do meu jornal, por acaso também um dramaturgo… Por acaso não, também um dramaturgo. O jornalismo hoje é mais massificado do que era 40, 50 anos atrás. As tiragens dos jornais são milhares. Para esse público, o “leitorado”, como a gente costuma dizer, por mais que a gente tenha um carinho muito grande pelo teatro, um carinho que eu tenho, para esse público o teatro não é prioridade.
Cinema, televisão e música popular são prioridades básicas hoje na cobertura de cultura de qualquer jornal. Isso tem várias implicaçõe em relação à crítica. Uma delas é o espaço menor. A gente tem que se adaptar e é a realidade. E isso não é só no Brasil. Crítica em Nova Iorque, em Paris também tem espaço menor. Paulo Francis escrevia uns 50 centímetros. A minha média hoje é de 35 centímetros.
O Diário – O que você busca no exercício da crítica?
Sá – Existe uma discussão antiquérrima se a crítica é técnica ou subjetiva. Eu não acredito em crítica técnica, acho impossível. Pessoas com as quais me formei não acreditavam nisso, não têm isso como base. A idéia da crítica técnica, imparcial, isso é uma fantasia, não acho viável. Quem gostaria de uma crítica técnica, com critérios técnicos, com padrões técnicos é a própria classe teatral. Isso é normal no Brasil e no exterior.
O Diário – Não dá medo que a crítica acabe diante da falta de espaço nos jornais? Você, por exemplo, divide a função com uma coluna diária que analisa o noticiário da televisão.
Sá – Acho que é uma função necessária para o Jornalismo, para o 1eitor. Acredito que ainda é necessário, mas não tenho certeza se ela vai acabar. A crítica não existe há muito tempo. Aliás, como direção de teatro, um pouco mais de 100 anos.
O Diário – Fale um pouco da sua formação.
Sá – No final do livro, readaptei uma palestra que fiz para o Festival Internacional de Teatro de Londrina, onde exponho mais a minha formação… eu sou um jornalista formado, não tenho formação específica de teatro. Fiz peças amadoras, cursos de ator. De dramaturgia, mas meu trabalho é jornalístico… Não sou da classe teatral… Mas a formação verdadeira, nesse sentido, teve vários fatores, professores neste caminho. Na faculdade de Jornalismo tinha um professor, Péricles Eugênio da Silva Ramos, que fez a tradução de “Hamlet” para o Sérgio Cardoso, nos anos 50. Era um senhor maravilhoso, poeta que tinha uma paixão muito grande pelo romantismo. Eu me sinto de certa maneira influenciado por ele porque também tenho um gosto pelo romantismo, pelos espetáculos que tragam uma carga, que buscam uma certa verdade anti-formal, que era o que os românticos traziam. O crítico da “Folha” nos anos 50, Miroel Silveira, que adorava, era amigo pessoal, também me influenciou.
Mas o que moveu realmente a atuar na crítica foi o trabalho com o Francis. Fui enviado pela “Folha” em 87/88 para trabalhar em Nova Iorque com Paulo Francis, que foi crítico nos anos 50, começo dos 60, no Rio. E veio dali a vontade mesmo de ser crítico. A influência do Francis sobre mim foi avassaladora. Todo o meu trabalho posterior foi de certa maneira em função do que ele me ensinou. Naquela época, eu era correspondente bolsista da “Folha”. Era um pouco assim um lugar-tenente ou garoto de recados do Francis.
Eu lembro de uma frase formal, uma recomendação do Caio Túlio Costa, se não me engano, para quem ía trabalhat com o Francis lá: “Aprender com Paulo Francis sem copiar o seu estilo” (ri). Eu aprendi com ele, copiei o seu estilo, enfim… (ri). Mas é a influência básica que eu tomo como formação no meu teatro. Mas com o tempo eu rompi com ele como crítico, como jornalista, com relação ao trabalho dele, com os comentários como o de que o Vicentinho merecia chibatadas…
Uma série de coisas assim impublicáveis. Eu adoro o Francis, tenho paixão veneração, mas não pode. Chegou um momento em que acreditava naquilo, e hoje não mais.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário”
“Arrogância” do texto não confere com lado pessoal
Texto enxuto, por vezes cruel, isento. A pena de crítico tem pouco a ver com o perfil pessoal de Nelson de Sá. Onde a “arrogância” apontada, por exemplo, pelo diretor Maurício Paroni de Castro (“Típico Romântico”), dos seus piores desafetos em oito anos de cobertura teatral na “Folha”? Nada – pelo menos fora do papel. Pinta de moleque, invariavelmente tênis e calça jeans, não aparenta os 36 anos. A polêmica o persegue (ou ele a atrai?) sistematicamente desde o início, em 1989. Numa das três primeiras críticas que publicou no caderno “Ilustrada”, certo diretor – prefere não revelar o nome – foi tirar-lhe satisfação em plena redação. O jornalista correu entre cadeiras e só não foi agredido por causa dos seguranças. Assustado com o episódio, se eximiu de escrever por um tempo. Retomou no ano seguinte, mais seguro. Desde então, lida sem complacência com a “classe teatral” (“Eu não faço parte dela”, faz questão de dizer). Não poupou sequer o patrão, Otavio Frias Filho, autor da mesma “Típico Romântico” (1992). Como o colega Alberto Guzik, do “Jornal da Tarde”, autor do romance “Risco de Vida” e da peça “Um Deus Cruel” – estréia em maio -, Nelson de Sá também se aventura na dramaturgia. Mas por enquanto prefere manter seus textos na gaveta.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.