Artigo
30.7.2013 | por Valmir Santos
Foto de capa: Flavio Morbach Portella
Os projetos colaborativos do Teatro da Vertigem são recorrentemente marcados por atuações corais. Há sempre muita gente em cena sobre ou sob o espaço real em que a memória é transpassada pelo tecido ficcional: a igreja, o hospital, o presídio, o rio, a rua. Quando as dramaturgias enfeixam uma figura catalisadora, como em O livro de Jó, de 1995, ou naquela rara criação “intimista” para três atores (e às vezes palco), História de amor (últimos capítulos), de 2006, fica mais evidente divisar o trabalho dos atuadores. Um exemplo. Foi por conta da pungente presença no papel-título do personagem bíblico que Matheus Nachtergaele foi abduzido pela TV e pelo cinema. Coube a Roberto Audio substituí-lo em seu primeiro ano de grupo, em 1998, portanto o princípio do vínculo permanente, até quando escrevemos, com as obras dirigidas ou concebidas desde então por Antônio Araújo, Eliana Monteiro ou Guilherme Bonfanti em procedimentos colaborativos.
Em Bom Retiro 958 metros, de 2012, a atuação de Audio modula uma inteligência performativa acumulada em 14 anos de pesquisas e realizações junto ao coletivo paulista. Em seus personagens-espectros, como situa a dramaturgia de Joca Reiners Terron, estão patentes uma profunda dilatação dos sentidos e domínios técnicos. Numa analogia com o pensamento junguiano, o ator radica individuação por meio dos seus Cracômano e Terrorista Poético, espargindo consciência e maturidade sob os estados da palavra, do corpo e da complexa cartografia narrativa que o espetáculo desenvolve em seu percurso, desde o edifício de um centro comercial de varejo, passando pelo asfalto, entre carros e pedestres, até alcançar a ocupação de um teatro carcomido.
Cracômano surge envolto em manto sociológico cortante e urgente na deambulação cênica pelas ruas do bairro multicultural, encarnando o ímã da epidemia de crack que avança em território brasileiro. A despeito da carga realista em passagens nevrálgicas, que não são poucas, além da mimetização dos gestos tensos, do figurino andrajoso, da fala aparentemente desconexa dos filósofos de rua (lembremos de Estamira Gomes de Sousa), Audio transcende a epiderme da primeira impressão e comunica complexidades de outra monta.
O público que interage in loco não demora a descobrir novas camadas nas ações, atitudes e discursos que o atuador-criador nos dá a ver e ouvir. Ao fluxo convulsivo das ideias sobrepõe-se a clareza de pensamento corporal. Domínio ao esgueirar-se da cortina de aço do shopping e do segurança de paletó e gravata que lhe atira um balde de água para impedir seu ingresso por corredores e lojas. O diálogo físico do crackeiro com a pedra se constrói como uma linha evolutiva, cena após cena. Da pedrinha dos sulcos das palmas das mãos ao cume do arremedo de coreografia musical, à maneira da Broadway, e já dentro do teatro abandonado, quando o sujeito é engolido pelo pedregulho das ilusões e do delírio.
A certa altura do espetáculo, ele indaga: “Qual dessas pedras é você, hein? Você agora é um órgão meu, um membro meu, pra separar só com cirurgia! Aqui não é depósito de lixo. Tem que respeitar propriedade alheia. Por que cimentam as pedras?”. E volta a provocar nos momentos derradeiros, sempre conforme a grafia oral digitada por Terron: “Vocês têm um lugar, não têm, e também têm um bairro e têm uma cidade cheia de pontes e marginais e torres e piscinas e agora querem as pedras? Querem pedras pra que, hein, pra construir mais um estádio de futebol, é?”.
O transir de Roberto Audio pelos espaços a céu aberto ou fechados equivale a um zás-trás, tal a habilidade com que aparece e desaparece do campo de visão. Fluxo codependente da contracena com os demais 14 atores igualmente disponíveis nesse jogo de revelações e subtrações ao longo do trajeto.
A compleição física de Audio ganha outro tônus quando ele escala um muro inteiriço numa das ruas do bairro, saltando para o outro lado em sua busca desesperada pela pedra como salvaguarda metafórica da sua condição de viver em meio à consciência de imersão no inferno pessoal/urbano/republicano em que se encontra.
Audio alterna os personagens-espectros do Cracômano e do Terrorista Poético, figura não menos fugidia que pontua o roteiro com dissonâncias como tocar fogo na fachada de uma loja, pichar o asfalto, atacar o estúdio de uma rádio simbolizada na sua locutora ambulante. A condição errante, no sentido do verbo transitivo direto, chama a atenção porque o ator surge e se insurge em questão de segundos, minutos, ora caracterizado como o homem cinza “empedrado” ora como o sujeito oculto, de sobretudo e chapéu. Num, o olhar esmaecido e a expressão corporal lancinante que não apagam um pedido de socorro pessoal, público; noutro, a dissimulação estratégica de quem vem para instaurar a discórdia.
Equalizar essas presenças em set cênico que é móvel, em que os desenhos e as operações de luz e som, além da concepção cenográfica, também derivam da mesma instabilidade, torna singular o trabalho do atuador em Bom Retiro 958 metros. A cada estação, com o espectador a poucos centímetros, no mesmo respiro, Audio não desarma das partituras de cada um dos dois personagens-espectros. Transparece a qualidade instrumental e a potencialidade poética a cada vez que vai à cena ou dela se retira.
Na linha de tempo do grupo, ele se viu enredado em processos criativos tão verticais quanto. Afinal, ninguém colabora incólume nas remontagens de O paraíso perdido, de 1992, e O livro de Jô, além da estreia de Apocalipse-se 1,11, de 2000, desfecho da chamada Trilogia Bíblica, o que o fez aderir de vez à plataforma das obras seguintes do Vertigem.
A memória do espectador de Audio no repertório do grupo apresenta traços de depoimento pessoal que tornam ainda mais sólida a experiência colaborativa com os seus pares. O arcabouço técnico e a sensibilidade filosófica pelo ofício e pela arte do teatro encontram em Bom Retiro 958 metros condições férteis para a rigorosidade de um trabalho corroborado pela mesma inquietude experimentada em direções que o atuador encarou nos últimos anos, quer sob a égide do Vertigem, quer em obras assinadas junto à Companhia Arte Bruta[1].
Ao colapso da dependência química do indivíduo e da sociedade onde as relações espelham outras formas de entorpecimentos, Roberto Audio lapida a sua pedra filosofal com alquimia e autoria nem sempre resplandecidas nas células de um grupo teatral.
PS: Artigo escrito originalmente para a Revista Belas Artes, publicação eletrônica do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
[1] Roberto Audio dirigiu El truco (2008), espetáculo baseado em Sonho de uma noite de verão, de William Shakespeare, e Cine Belvedere (2009), dramaturgia coletiva, sempre com a Companhia Bruta de Arte, cuja maioria dos atores é oriunda do Núcleo Experimental dos Satyros (NES). No Teatro da Vertigem, ele foi autor e diretor de Cartas de despejo (2011).
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.