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Crítica

Lume extrai epifanias de sua linha de tempo

6.7.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Alessandro Soave

A condição do artista, sobretudo a do artista brasileiro que se conhece de causa, ziguezagueia da primeira à última cena em Os bem intencionados (2012). Jogo de cintura natural à linha de tempo de convivência por décadas equilibrando-se no ofício dos tablados, galpões e praças.

O Lume Teatro evita a autorreverência ou a expiação a essa altura dos 28 anos. Prefere cortar a carne da memória e fazer troça de si. Bom humor rimando com a instância do ator, régua absoluta em tudo que o grupo de Campinas cria.

Um primeiro olhar pode sugerir que a excelência técnica do corpus e do corpo flerta com promiscuidades formal e temática raras no histórico no Lume. Alvíssaras! Ainda que num ambiente boêmio – um bar com música ao vivo –, reduto de encontro dos personagens músicos em seus primeiros passos na carreira, enredados etílica e emocionalmente por titubeios pessoais e profissionais, o espetáculo logo deixa entrever o refinamento da inscrição física complementar ou subversiva a cada palavra ou silêncio, rastreando a conhecida identidade forjada no treinamento de ator.

A inversão de expectativa encontra na parceria com a dramaturga e diretora Grace Passô, do Grupo Espanca! mineiro, sinapses fabulares para tecer susceptibilidades e autocríticas que os integrantes do Lume potencializavam como matéria-prima havia pelo menos uma década. O resultado está longe de lavar roupa suja ou inspirar comiseração.

O texto é fértil em elipses temporais e espaciais no escaninho de cada um dos personagens que o público mapeia aos poucos. Também a conta-gotas surgem informações sobre gênese, conflito, utopia, amor, violência, solidão. Fios dramáticos que jamais atam por inteiro, deixando em elevo uma costura performativa. Sobreposição personagem/figura/ator explicitada inclusive quando o septeto retira a “máscara”, descompondo figurinos, perucas, discursos e “enxertos” para dar margem a ser o que se é.

As epifanias cênicas brotam por entre as mesinhas do salão de baile cenográfico em que os espectadores sentam e podem desfrutar aperitivos servidos pelos artistas. A interação direta não soa escapismo. Abrem espaços para a cumplicidade confessional. As micro-histórias são embaladas pela cadência nostálgica da música ao vivo (direção do pianista Marcelo Onofri, ao lado do percussionista Leandro Barsalini e do acordeonista Eduardo Guimarães) e sublinhadas pelo desenho de luz que transfigura a teatralidade com imersão cinematográfica, película alcançada por meio de garrafas e garrafões translúcidos (concepção de Nadja Naira, da Companhia Brasileira de Teatro).

O septeto radicado em Campinas

Os bem intencionados embaralha ficcionalmente a amizade e as vicissitudes do coletivo. Destrança as linhas de pesquisa em torno do clown, da mimese corpórea, do acercamento ao butô. Entre os momentos mais comoventes estão o de Carlos Simioni e o de Naomi Silman soltando o vozeirão ao microfone, calando fundo na plateia e expondo a outra face do trabalho corporal extensiva ao sentimento do canto.

É particularmente sedutor ver o grupo chafurdar na cultura brega, dilapidando resquícios de assepsia formal. A autoironia estende-se à condição de empreendedores e trabalhadores da arte que são, como na fixação pelo simulacro do CNPJ e na propalada divisão rigorosa do soldo pelos atores-pesquisadores.

Apresentada no FIT Rio Preto, a obra mais recente do Lume transcreve sua própria tradição com a irreverência e a austeridade expressas nas fisionomias de Ricardo, Renato, Raquel, Naomi, Jesser, Carlos e Ana. Gestos, movimentos, ações, narrativas e diálogos ratificam a liberdade do estado de cena, a qualidade de presença aferida pela prática e pela pedagogia de bailar nas curvas do presente, do passado e dos sentidos da nave que vai.

>> O jornalista viajou a convite da organização do FIT Rio Preto. Produziu textos para o catálogo e articulou parte das atividades formativas.

Ficha técnica

Criação: Lume Teatro e Grace Passô

Texto e direção: Grace Passô

Atuação: Ana Cristina Colla, Carlos Simioni, Jesser de Souza, Naomi Silman, Raquel Scotti Hirson, Renato Ferracini e Ricardo Puccetti

Desenho de luz: Nadja Naira (Cia Brasileira de Teatro)

Coordenação técnica: Maria Emília Cunha

Técnico: Francisco Braganian

Cenotécnico: Elias Abraham

Criação de figurinos e acessórios: Warner Reis

Direção musical: Marcelo Onofri

Músicos participantes: Marcelo Onofri (piano), Leandro Barsalini (percussão) e Eduardo Guimarães (acordeão)

Design gráfico: Arthur Amaral

Produção executiva: Dani Scopin

Direção de produção: Cynthia Margareth

 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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