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Crítica

Relampião questiona quem se deixa conduzir

15.7.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Ricardo Boni

A parceria das companhias Paulicea e do Miolo em Relampião transpõe o mito sertanejo para as pelejas urbanas com agudeza de espírito e licenças poética e histórica que relacionam o cangaço à luta contra injustiça social.

Nas primeiras décadas do século XX, nos sertões do Nordeste, um bando de homens (e algumas poucas mulheres) pobres enfrentou o coronelismo, o conluio destes com políticos e os soldados do governo, os “macacos”. Não se trata de reconstituir os fatos ou contrabalançar heroísmo e marginalidade. Em vez de revisar maniqueísmos da historiografia oficial ao pé da letra, o espetáculo de rua expõe o contraditório da cidadania no presente e a equivalência de forças sob a perspectiva dos explorados.

A dramaturgia de Solange Dias converte o bando mitológico em trabalhadores informais que configuram uma comunidade no espaço público. É nessa ágora contemporânea que os direitos básicos constitucionais são reivindicados (casa, saúde, educação, trabalho, etc.). A consciência crítica é estimulada por meio da cultura popular e suas fontes orais, visuais e musicais – estética ademais vinculada ao imaginário de Lampião, ou Virgulino Ferreira da Silva.

Sete atores e dois músicos seguram a roda e o riscado. Objetos, adereços, algumas máscaras e instrumentos também tocados pelos atuantes servem à narrativa épica.

Antonia Mattos, voz e rabeca como Assum Preto

Destacam-se os desempenhos de Antonia Mattos na figura de Assum Preto (ela é musicista e encanta pela dobradinha voz e rabeca) e de Aysha Nascimento como a vendedora ambulante Janaina, dona de olhos compenetrados que capturam o último espectador do círculo seja onde estiver.

É a musicalidade, de fato, que alicerça o espetáculo. A direção musical de Charles Raszl amarra bem as passagens corais que entremeiam os diálogos. Há composições próprias ou clássicas da MPB, como Moro na roça, de Xangô da Mangueira e Jorge Zagaia (imortalizada por Clementina de Jesus), e Vai trabalhar vagabundo, de Chico Buarque.

Ainda vêm à tona um desempregado que sonha com carteira assinada, um peixeiro que nunca viu o mar, uma sem-teto esperançosa de casa própria, um bicheiro compositor de samba e o próprio Virgulino, que faz às vezes de um oráculo, postado em seu nicho cênico de metro quadrado, um palquinho, de onde salta para pontuar as arapucas da sociedade. O princípio da obra sem protagonistas, que não o coletivo, é o de que cada um deve conduzir sua história e não ser conduzido.

>> O jornalista viajou a convite da organização do FIT Rio Preto. Produziu textos para o catálogo e articulou parte das atividades formativas.

Dudu Oliveira, o pescador de ilusões

Ficha técnica

Dramaturgia: Solange Dias

Direção: Alexandre Kavanji

Direção de atores: Renata Lemes

Com: Antonia Mattos, Aysha Nascimento, Dudu Oliveira, Edi Cardoso, Flávio Rodrigues, Francisco Gaspar e Harley Nóbrega

Músicos: Daniel Zacharias e Glauber Coimbra

Direção musical: Charles Raszl

Figurinos, adereços e ambientação: Luiz Augusto dos Santos

Preparação corporal: Alcio Amaral e Juliana Pardo (Companhia Mundu Rodá)

Maquiagem: Guto Togniazzolo

Técnico de áudio: Gabriel Kavanji

Designer gráfico: Pedro Penafiel

Produção geral: Iarlei Rangel

Realização: Companhia do Miolo e Companhia Paulicea

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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