Crítica
14.9.2013 | por Valmir Santos
Foto de capa: Jorge Etecheber
Como dar corpo à meticulosa dramaturgia de subversões ao personagem, ao ator, ao narrador, ao diálogo, ao observador, ao título? Em Circo negro, tudo está em suspenso feito o pisar tenso do trapezista no arame de aço, sob o mar de olhos estupefatos a seus pés.
Na peça de meados da década de 1990, originalmente destinada à manipulação de bonecos, o diretor e dramaturgo Daniel Veronese mistura elementos do naturalismo e do realismo que serão profundamente decantados em peças de sua autoria (e para atores) ou em adaptações que viriam depois, como nas recentes visitas a textos de Tchékhov e Ibsen.
Quem mergulha naquela tão produtiva quanto bem humorada crise de representação é a CiaSenhas de Teatro. Seus artistas demonstram intimidade com os experimentos pós-dramáticos do cofundador do grupo El Periférico de Objetos, cometendo transbordos e sínteses de linguagens da cena e da escrita processados pelo núcleo curitibano há 14 anos. Sob o manto das inquietudes deste Circo negro, a companhia inventa formas e se coloca em perspectiva pujante quanto ao caráter multidimensional da cena.
Veronse deve ter se espantado com a ideia de um grupo brasileiro, não praticante do teatro de animação, montar o roteiro que ele e Ana Alvarado dirigiram em 1996. Para quem acompanha a CiaSenhas de longa data, o encontro estético se revelou dos mais frutíferos.
A diretora Sueli Araujo, o quarteto de atuantes e a equipe toda se apropriam vivamente dos subtextos. Expõem as próprias fissuras de estilo e somam outros enigmas aos encontrões entre criador e criatura colocados sob escrutínio na peça.
Desde a primeira cena fica estabelecido o jogo da manipulação ou da percepção de que a vida pode se esvair a qualquer momento, num piscar de olhos, como pede o velho espírito do picadeiro evocado como simulacro.
O gesto é o que rege: quem ou o que opera a manipulação e quem ou o que a ela se submete. O pensamento e as mãos. O ator e o personagem. Ou o ator e o títere. A aura e o objeto. O senhor e o servo. A visão e a cegueira. Enfim, os paradoxos dos comediantes à maneira das questões levantadas por Diderot em seus estudos sobre o distanciamento emocional.
Há uma forte pitada de nonsense nos dez números que compõem o texto e não chegam a configurar uma trama. Além da prosa, a pantomima, a sonoridade e a visualidade interpondo os desenhos de espaço e de luz, com direito à ribalta, soam decisivas ao que é contado ou dialogado.
Na estrutura de sinais e de sintomas criado por Veronese, o que está em observação é a natureza do ato teatral. A atuação de permeio. É como se fosse uma conferência em torno das “muletas” do ator sustentada pela excelência artística. A exposição do que seria negativo em termos de postura ou de movimento não vem a galope de discurso moralizante. Emerge da teatralidade sobre a não-representação, do mecanismo da repetição que está no âmago dessa arte dita efêmera.
A relação com os objetos é determinante. Uma boneca, um laptop, um cigarro, um chicote ou uma faca, sejam factuais, invisíveis ou retráteis, transformam os ritmos e as paisagens.
Aqui, um dos portos seguros que a CiaSenhas encontra na obra do argentino: a sujeição da cena à ilha de edição, ao respiro do acaso, ao bricabraque que Araujo já pontuava em montagens em que interfere ao microfone, dá comandos, assovia.
Essa composição tragicômica aparece também na interação direta com o público. Nessa travessia, o espectador é chamado à cumplicidade no desvelar da “mágica” do ofício do ator, seus “truques”.
Ou, por exemplo, a conferir a abertura de uma janela de inspiração tchekhoviana, que o transporta a uma Moscou enevoada. Lá, sob tintas realistas, em metamorfose radical de registro de cena e de interpretação, duas mulheres narram a historia de um velho trapezista que deixa sua companheira cair num dos seus números, tornando-se um pobre coitado nas ruas a projetá-la na boneca exposta na vitrine de uma loja.
“Vim de um lugar de onde só os atores podem vir: da representação”, ouve-se a certa altura do texto, aproximadamente com essas palavras.
Ciliane Vendruscolo, Greice Barros, Luiz Bertazzo e Raquel di Lari fiam-se nas variações dessa boneca russa que é Circo negro com aquela inteireza dos pesquisadores que realmente sabem o que estão fazendo na aventura aparentemente errática, mas jogada conforme as regras e as transgressões do jogo.
Como artistas convidados, Vendruscolo integra-se com segurança à combinação de linguagens enquanto Di Lari tem a dicção comprometida ao contracenar com Bertazzo, justo nos diálogos em que a força do verbo precisa infundir – fala é música.
Integrados à companhia desde o início e meados da década passada, respectivamente, Barros e Bertazzo são desenvoltos com os códigos abertos da dramaturgia e da encenação. Não ultrapassam a linha amarela, o que poderia por tudo a desandar se não fossem verdadeiros com a mentira de ser e não ser. A lascívia insinuada em Concerto para rameirinhas (2011) agora desliza com convicção na hora de seduzir e dominar nesta partitura textual tão incisiva como quem conduz a marionete ou pratica a ventriloquia.
A performance de Bertazzo destila beleza e arrebatamento às velocidades e dicotomias do terceiro olho nascido da fusão Veronese/Araujo. Sua presença traduz sutilezas (já esbanjadas em Homem piano – uma instalação para a memória, 2010) e credulidades do bom comediante. Dá a ver a construção do holograma de palavras, ações e imagens que Araujo e Veronese transmitem em suas afinidades eletivas (atores, dramaturgos e diretores), em que pesem as diferentes gerações e geografias que habitam.
Ficha técnica
Texto: Daniel Veronese
Tradução: André Carreira
Direção: Sueli Araujo
Assistente de Direção: Anne Celli
Com: Ciliane Vendruscolo, Greice Barros, Luiz Bertazzo e Rafel di Lari
Direção de movimento: Cinthia Kunifas
Sonoplastia: Ary Giordani
Iluminação: Wagner Correa
Figurino: Amábilis de Jesus
Cenário: Paulo Vinícius
Produção: Marcia Moraes
Realização: CiaSenhas de Teatro
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.