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Crítica

Javier Daulte expõe seus paradoxos

7.9.2013  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Divulgação

Na Argentina, o trânsito de diretores entre os circuitos comercial e independente não causa espanto. As concessões de um artista em busca de dinheiro são entendidas como um mal necessário para manter vivas as propostas experimentais e de pesquisa. Em muitos casos, essa mão dupla leva a um resultado bem sucedido. Em outros, desastroso.

Javier Daulte é um dos principais nomes do teatro de pesquisa portenho, mas também assina a direção de Una relación pornográfica e El hijo de puta del sombrero, peças do circuito comercial da avenida Corrientes. O contraste entre essas duas produções é drástico e, se fossem vistas por alguém desavisado, dificilmente seria possível pensar que são trabalhos do mesmo diretor.

Una relación pornográfica é uma adaptação do filme franco-belga de mesmo nome do diretor Frédéric Fontayne. A versão teatral estreou em Madrid há dois anos, com direção de Manuel González Gil. Em Buenos Aires, está em cartaz desde janeiro e tem sessões lotadas todas as semanas no charmoso Teatro Paseo La Plaza (informações da temporada aqui).

São dois personagens, ambos sem nome, um homem e uma mulher. Eles se conheceram por meio de um anúncio que ela colocou em uma revista. Buscava um parceiro para realizar certa fantasia sexual que não será revelada ao público. Fazem um trato de se encontrar somente para manter relações sexuais, o que ela define como sendo uma relação pornográfica. Aos poucos, as afinidades vão se revelando e crescem os afetos. Mas será possível desenvolver laços com alguém que se quer como fetiche? Sobreviveria o desejo em uma relação convencional? Estariam eles dispostos a arriscar?

No filme, o homem e a mulher contam a história em sequencias separadas e o espectador forma sua versão a partir dos dois relatos. Com isso, há uma intimidade com o público inexistente no casal. Ao mesmo tempo, esse recurso narrativo enriquece o desenvolvimento da trama, pois tornam evidentes as dificuldades de comunicação entre eles, as expectativas não correspondidas, os medos não compartilhados. No teatro, esse recurso é feito por meio de apartes, o que aumenta a cumplicidade com o público por não contar com a mediação do audiovisual. Ao mesmo tempo, cria-se uma situação incômoda pois segredos são revelados enquanto o outro, de quem se fala, está presente no palco.

Cecilia Roth e Darío Grandinetti vivem amantes

A direção de Daulte deixou marcas, especialmente na contenção imposta à personagem feminina, interpretada por Cecília Roth. Estrela de filmes de Pedro Almodóvar em papéis exuberantes e caricatos, em Una Relación Pornográfica ela é uma elegante parisiense, que veste mantôs e pede cafés descafeinados – muito distante da histérica Manuela, personagem que interpretou no filme Tudo sobre minha mãe, em cartaz nos cinemas na mesma época de Uma Relação Pornográfica.

O papel masculino é de Darío Grandinetti, que também já trabalhou com Almodóvar. Ele fez o jornalista Marco Zuluaga em Fale com ela. Em Una relación pornográfica, seus gestos são marcadamente hesitantes, como requer um homem que não sabe se é de fato desejado ou está ali apenas para possibilitar o gozo da parceira de fetiche.

Una relación pornográfica é uma obra comercial, mas de muito bom gosto e bem cuidada. O cenário e o figurino são elegantes. A sonoplastia primou por intervenções discretas.

Tanto bom gosto é incompatível com a desastrosa El hijo de puta del sombrero, outra direção de Daulte na mesma avenida, no Teatro Metropolitan City (informações da temporada aqui). Estrelado por atores conhecidos da televisão argentina, a peça é uma farsa desencadeada por mulher adúltera cujo marido encontra no quarto o chapéu esquecido pelo amante da esposa. As piadas são rasteiras e, muitas vezes, preconceituosas. O cenário é desastroso, com estruturas controladas mecanicamente para puxar móveis e paredes, recurso antiquado e barulhento.

A direção dos atores criou interpretações caricatas, com cacoetes e tiques repetidos à exaustão. Florencia Peña, famosa por apresentar o programa de TV Bailando, faz a esposa adúltera com voz propositalmente estridente, soltando pequenos gritos agudos e cansativos. Pablo Echarri, o marido, também diz suas falas gritando, mas com uma agressividade desmedida.

Diferente de Una relación pornográfica, cuja qualidade é impecável, El hijo de puta del sombrero é vergonhoso. Pela trajetória de Daulte, fica evidente que esta foi uma concessão para ganhar dinheiro. Mas fica a pergunta: valeu a pena?

Ficha técnica – Una relación pornográfica

Texto: Philippe Blasband

Versão para o espanhol: Pablo Kompel

Direção: Javier DaulteJavier Daulte

Com: Cecilia Roth e Darío Grandinetti

Cenografia: Alberto Negrín

Iluminação: Alberto Faura

Figurino: Ana Markarian

Coreografia: Carlos Casella

Produção executiva: Pablo Kompel

Ficha técnica – El hijo de puta del sombrero

Texto: Stephen Adly Guirgis

Direção: Javier Daulte

Com: Pablo Echarri, Florencia Peña, Fernan Mirás, Marcelo Mazzarello e Jorgelina Aruzzi

Cenografia: Alicia Leloutre

Iluminação: Gonzalo Cordova

Figurinos: Sofía Di Nunzio

Produção executiva: Pablo Kompel

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Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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