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Crítica

‘Memória roubada’ não alinha tempo e imagem

29.10.2013  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Paulo Barbuto

Para o bem e para o mal, Memória roubada é um espetáculo contemporâneo, híbrido e globalizado. Em cartaz na Sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo, trata-se de uma coprodução que reúne os grupos brasileiros Linhas Aéreas e Solas de Vento com o diretor australiano Mark Bromilow e os atores canadenses Michel Robidoux e Yves Dubé (da Companhia Les Deux Mondes, de Montreal). A princípio, chama a atenção pelo impacto das imagens e pela forma singela que trata temas densos como a velhice e a perseguição política. Parte da trama se passa em Bali, outras em um quarto de hospital, um circo e uma sala de tortura da ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Memória roubada conta o encontro transformador de duas mulheres pertencentes a gerações diferentes. Esse tema não é novo no teatro. Para citar alguns exemplos, em 2010 Glória Menezes e Arlindo Lopes protagonizaram Ensina-me a viver, de Colin Higgins, direção de João Falcão, sobre o amor entre uma idosa fora dos padrões e um jovem desiludido. Em 2012, Antônio Fagundes e seu filho, Bruno Fagundes, atuaram em Vermelho, de John Logan, direção de Jorge Takla, sobre o relacionamento do pintor Mark Rothko e um aprendiz. E na Argentina, ainda está em cartaz Los elegidos, direção de Daniel Veronese, sobre as lições que um escritor mais velho pode passar a um novato (ver a crítica deste site aqui).

Ainda que cada uma dessas peças tenha suas peculiaridades, a estrutura é a mesma: a suposta experiência ou o exemplo dos mais velhos indicam caminhos aos mais novos. É esse o caso de Memória roubada. Dona Aparecida, com 94 anos de idade, está presa a uma cama de hospital e já não consegue falar. Renata (Ziza Brisola), uma bibliotecária de 40 anos, começa a visitá-la para ler livros em voz alta. A moça ressente-se de ter sido abandonada pela mãe, cujo único contato que mantém é por meio de cartões postais vindos de Bali. É a partir do encontro com Dona Aparecida que Renata cria coragem para procurar a mãe e, para isso, viaja até a Indonésia.

Espetáculo conjuga linguagens do circo e do teatro

O lugar-comum do texto cede espaço para as imagens, essas sim potentes e originais em Memória roubada. Dona Aparecida é um boneco de animação, manipulado pelo ator Bruno Rudolf. Ela foi trapezista e dona de circo. Sua imaginação é projetada em desenhos animados no fundo do palco e com números circenses. As interseções entre o audiovisual e o circo são os momentos mais bonitos do espetáculo, remetendo ao universo particular da personagem, compartilhado com o público por meio de imagens poéticas. Bruno Rudolf, por sua vez, não é somente um titereiro, mas reage com gestos ao jogo cênico com os outros atores.

O circo aparece como tema e como prática em Memória roubada. A história dessa arte (ou artes) tem relações próximas com o teatro moderno. Na Europa do final do século XVIII, ambos se desenvolveram nas cidades e, com a industrialização, tornarem-se espetáculos urbano-massivos que não pertenciam às chamadas belas artes. As famílias circenses que se desenvolveram em várias partes do mundo chegaram ao Brasil no século XIX e foram responsáveis pela popularização das comédias e dos melodramas. Até os anos 1960, o que se chamava “circo teatro” eram apresentações de peças em palcos italianos improvisados dentro das lonas dos circos. Mark Bromilow, que foi diretor artístico do Cirque du Soleil entre 2008 e 2010, representa a nova fase dessa relação, quando técnicas circenses são inseridas dentro de montagens teatrais e os próprios espetáculos circenses passam a contar com temas e narrativas similares às das artes cênicas, como faz, além do Cirque du Soleil, os brasileiros da Imprépida Trupe e do Acrobático Fratelli.

Com experiência no uso teatral de recursos multimídia, Bromilow conseguiu em Memória roubada surpreender o espectador com o que há de mais encantador em cada uma das linguagens: a potencialidade onírica do cinema, o deslumbramento do circo, o convívio do pacto teatral.

Nesse sentido, a relação entre imagem e performance é apresentada em seus muitos suportes: a representação cênica, o circo, o teatro de bonecos, o audiovisual.

O espetáculo é de uma beleza ímpar, mas a bricolagem de referências arrasta alguns momentos de maneira excessivamente longa para a proposta, com redundâncias e cenas que se prolongam de modo cansativo. Algumas vezes, imagens de grande impacto inicial têm seu efeito enfraquecido por se estenderem em demasia.

Montagem é assinada pelo australiano Mark Bromilow

A concepção da cenografia foi bem pensada. A área do palco reservada ao hospital é um quadrado com móveis de linhas retas e predomínio de horizontais. Fica do lado oposto da sala de Renata, com uma poltrona clássica por onde circula seu cachorro. Esses dois espaços se contrapõem ao aéreo em que são realizados os números de circo. O efeito é forte e desloca a atenção do espectador.

Outro cuidado da produção foi a confecção para os personagens cômicos de máscaras topeng, típicas do teatro tradicional indonésio, feitas pelo artista balinês Nyoman Setiawan. Na mesma linha, a participação em off de Walderez de Barros, como a voz de Dona Aparecida, é um presente para o público.

Ficha técnica
Concepção, direção e dramaturgia: Mark Bromilow
Criação e interpretação: Bel Mucci, Bruno Rudolf, Natalia Presser, Ricardo Rodrigues e Ziza Brisola
Voz de Aparecida: Walderez de Barros
Direção musical: Michel Robidoux (Les Deux Mondes/Canada)
Desenho de vídeo: Yves Dube (Les Deux Mondes/Canada)
Desenho de luz: Domingos Quintiliano
Cenografia: Mark Bromilow
Figurinos: Luli Guimarães
Gestão cultural: Doble Cultura + Social
Assessoria de imprensa: Arteplural
Assessoria administrativa: Tatiana Badra
Design gráfico: Estúdio Buzz
Fotos: Paulo Barbuto
Realização: Linhas Aéreas e Solas de Vento
Cenotécnico: Alessandro de Angelis
Serralheiro: Dimas Gonçalves
Costureira: Teresinha Carneiro
Máscaras balinesas: Nyoman Setiawan
Boneca de teatro e sombra: Verônica Sayuri e Bruno Rudolf
Apoio figurino: Riachuelo
Direção de produção: Linhas Aéreas, Mark Bromilow e Solas de Vento
Produção executiva: Ludmilla Picosque (Touchè Cultural)
Técnicos de palco: André Schulle e Alessandro de Angelis
Operação de luz: Roseli Martinelli
Operação de som: Lays Simogyi
Operação de video: Marina Presser

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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