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Reportagem

Tablado expõe bastidores do poder partidário

14.2.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Jonas Tucci

Diariamente, os jornais divulgam as declarações que os políticos consentem em tornar públicas. Mas sobre o que eles falam quando estão a salvo dos gravadores e das câmaras? Abnegação, novo espetáculo do grupo Tablado de Arruar que estreia no CCSP, parte desse pressuposto. “Nunca vamos saber o que eles discutem de verdade. É algo intangível. E foi isso que nos interessou”, comenta Clayton Mariano, que divide a direção do espetáculo com Alexandre Dal Farra.

A portas fechadas, cinco integrantes de um partido político (interpretados por Alexandra Tavares, André Capuano, Carlos Morelli, Vinícius Meloni e Vitor Vieira) precisam tomar uma decisão para se livrar de uma catástrofe que os ameaça. É a partir dessa situação que o espetáculo discute a dinâmica de um grupo que está no poder há algum tempo e usa os recursos de que dispõe para manter seu status.

Ainda que não haja menções a dados verídicos, fica evidente o vínculo entre a problemática proposta e a presença do PT (Partido dos Trabalhadores) no governo federal. Impossível também não lembrar de fatos recentes, como o julgamento do mensalão. “Mas não temos a intenção de retratar historicamente o que aconteceu no País nem a pretensão de dar conta das questões sociológicas aí envolvidas”, ressalva Mariano.

Nesse encontro entre companheiros de partido, um problema (que a plateia nunca chega a saber exatamente qual é) exige que eles sacrifiquem um de seus integrantes em nome da sobrevivência do grupo. Após muitos conchavos e intrigas, o presidente da sigla decide se suicidar. Daí, a “abnegação” do título.

“Um sentimento que é diferente daquele de militantes do passado, de quem lutou contra a ditadura. Aqui, eles não estão se sacrificando por um projeto maior do que eles. Não acreditam mais nisso. É uma abnegação que carrega um gosto ruim”, comenta o diretor e dramaturgo Alexandre Dal Farra, ganhador do Prêmio Shell de melhor autor por seu trabalho em Mateus 10 (2012).

O conflito acerca do sacrifício está restrito ao primeiro ato da montagem. Na segunda parte, acompanhamos a maneira como cada um dos personagens reage à morte do colega – um fantasma com o qual não conseguem lidar. Ainda que eles estejam a salvo agora – e até numa situação melhor do que aquela que havia antes da crise – há um mal-estar disseminado.

Além de não conhecer a causa de tantas transformações, o espectador também pouco apreende dos diálogos. No jorro verbal desenfreado proposto pela peça, não existe substrato algum. Em certo sentido, percebe-se o apego extremo da dramaturgia pelo real. Um realismo, contudo, que pode resvalar no absurdo. Uma personagem pode arrancar a roupa subitamente, sem que haja motivação aparente para a sua atitude. Outro pode descontrolar-se igualmente sem propósito.

O excesso não está restrito às palavras. Tudo que vai ao palco é desmesurado. Uma referência para os encenadores foram as competições de MMA. “Se o boxe é estilizado, o MMA é uma pura descarga de violência. Não tem qualquer mediação simbólica”, diz Dal Farra.

Atores em cena estilizada da peça 'Abnegação'Sem créditos

Atores em cena estilizada da peça ‘Abnegação’

Nesse contexto, a trilha sonora convoca títulos de novos gêneros musicais, como o arrocha universitário. Letras nas quais há poucas variações: uma combinação de sexo, bebidas alcoólicas e bens de consumo. “Essa barbárie que está sendo colocada em cena tem muito a ver com o que é o Brasil hoje. Com as classes que ascenderam à classe média pelo mero consumo. Com essa ideia de ostentação”, observa o autor.

A contrastar com todo esse desregramento, a cenografia assinada pelo artista plástico Eduardo Climachauska preza pela racionalidade. As ações se concentram em dois tablados de madeira que possuem um sistema mecânico manipulado pelos próprios atores. “É um sistema que mostra como os personagens conduzem, mas também são conduzidos”, define Climachauska.

Concebida para ser encenado em um espaço fechado, Abnegação deve ganhar uma versão para a rua. A trama seria diferente, mas deveria se desenrolar a partir dos mesmos personagens. A proposta se relaciona à dupla natureza do grupo, que concebe trabalhos tanto para o palco (Petróleo, Mateus 10) quanto para áreas externas (Helena pede perdão e é esbofeteada).

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C7, em 14/2/2014.

Abnegação – Sex. e sáb., às 20h30; dom., às 19h30. R$ 10. Centro Cultural São Paulo – Espaço Ademar Guerra (r. Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 11 3397-4002.

Ficha técnica:

Texto: Alexandre Dal Farra

Direção: Clayton Mariano e Alexandre Dal Farra

Com: Alexandra Tavares, André Capuano, Carlos Morelli, Vinícius Meloni e Vitor Vieira

Direção de arte: Eduardo Climachauska

Assistência de direção: Ligia Oliveira

Figurino: Melina Schleder

Trilha sonora: Alexandre Dal Farra

Direção de produção: Carla Estefan

Assistente de produção: Ariane  Cuminale

Assessoria de imprensa:  Arteplural Comunicação – Fernanda Teixeira e Adriana Balsanelli

Fotos: Jonas Tucci

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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