Crítica
Em Abnegação, os atos de fala são privados, mas incidem frontalmente na vida pública. Fala-se muito e grosso nesse circuito fechado do negócio da política partidária encruada no poder. No entanto, tudo que esses sujeitos botam da boca para fora soa espasmódico. A interjeição “opa” é recorrente nesses enunciados tensos e quebradiços. A dramaturgia de Alexandre Dal Farra tem suas potencialidades multiplicadas quando o espectador, no caso, dá menos importância ao expressado verbalmente e deixa-se pautar pelo inaudito. A falha como linguagem projeta-se enquanto realidade da cena. Com ela, afloram o caráter de quatro homens e uma mulher que corrompem a própria palavra em sua ambição desmedida. Os cochichos ao pé do ouvido são reveladores do conluio.
A obra do Tablado de Arruar situa como pano de fundo as sombras do presente. No momento em que o Brasil anseia pela narrativa do trauma do ditadura militar, travessia de meio século de golpe, é pertinente notar que os políticos (e empresários, juízes, jornalistas, forças armadas, polícias, mercadores da fé e outros) acumulam traços de autoritarismo e truculência em discursos e ações dissimuladas de estado democrático de direito. Ou, por outra, estão elencadas as razões do cinismo, da delinquência, da violência e do narcisismo como atributos escancarados e vigentes na sociedade que aí está.
Apesar da permeabilidade do noticiário, a peça não cai no reducionismo de malhar genericamente os políticos à maneira das grandes produções de comédias que insinuam indignação cívica, reforçam estereótipos e despolitizam o cidadão. As alusões ao Partido dos Trabalhadores, ao assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, e ao julgamento da ação penal 470, o caso mensalão, resultam indiretas, como nos personagens que atendem por Celso, Paulo e José. Estes dão margem para pensar em como assassinatos e acordos de caixa dois podem levar a óbito ou para trás das grades (Paulo César Faria no Collorgate, José Dirceu e outros mencionados no mensalão).
Predominam os códigos da performatividade. Caminho de rigor e de liberdade para destilar questões caras à pólis: a corrupção sistêmica nesta montagem, o pensamento obscurantista em Mateus 10, trabalho anterior do grupo.
As atuações estendem ao limite. O “‘homo politicus” é visceral na iminência do abismo. Voraz adicto na droga como no cargo. Seres de posses. O elenco enfrenta o imperativo do descontrole sem exceder o que a reação física já prenuncia: o olhar perplexo, a voz colérica, a alma estrebuchada.
Nesse turbilhão, o silêncio distensiona algumas passagens e move o público a encaixar as informações subliminares em torno de um “acidente” que pode colocar as cabeças a prêmio. A trama, se é que deve ser assim designada, sugere a suspeição sobre pacto, traição e crime. Mas a camada policial jamais prospera como tal.
Cena de ‘Abnegação’, do grupo Tablado de Arruar
A estratégia da subtração no texto coaduna as escolhas da encenação assinada por Clayton Mariano e Dal Farra. Uma vez que nem tudo que se fala é o que se está a dizer, os diretores dão a ver a forma global em que o espetáculo é assentado.
O teatro da revelação, aqui, estrutura-se principalmente na dilatação espacial da cena e seu equivalente dramatúrgico em não ser/estar refém de um tema. A concepção polissêmica tem na direção de arte de Eduardo Climachauska um componente cirúrgico. Platôs móveis apartam ou juntam nichos que materializam as mudanças temporais e espaciais. A área diante da plateia vira um corredor, vaza à esquerda e à direita para o deslizamento dos personagens e das situações extremas em que são atravessados.
Ao delimitar essa pista, seu mecanismo de funcionamento braçal à base da manivela, o espetáculo torna a percepção mais concreta independente das inserções fantasmagóricas ou fantásticas descoladas da associação elementar com polarizações político-ideológicas. O vácuo ou a retórica versam sobre a natureza de todas as coisas implicadas. Não há deus ex-machina. Nem superação. A crise de valores é de outra monta. A ética sucumbe e não aprova a emoção.
.:. Leia a crítica de Beth Néspoli sobre Abnegação, aqui.
Ficha técnica:
Texto: Alexandre Dal Farra
Direção: Clayton Mariano e Alexandre Dal Farra
Com: Alexandra Tavares, André Capuano, Carlos Morelli, Vinícius Meloni e Vitor Vieira.
Direção de arte: Eduardo Climachauska
Assistente de direção: Ligia Oliveira
Preparação corporal: Lu Favoreto
Provocadora: Cibelo Forjaz
Figurino: Melina Schleder
Trilha sonora: Alexandre Dal Farra
Iluminação: Francisco Turbiani
Assistente de iluminação: Marcela Katzin
Direção de produção: Carla Estefan
Assistente de produção: Ariane Cuminale
Assessoria de imprensa: Arteplural Comunicação. Fernanda Teixeira e Adriana Balsanelli
Foto divulgação: Cacá Bernardes
Desenho gráfico: Vitor Vieira
Serviço:
Onde: Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, São Paulo, tel. 11 3397-4002).
Quando: Sexta e sábado, às 20h30; domingo, às 19h30. Até 30/3.
Quanto: R$ 10 (a bilheteria abre duas horas antes do início do espetáculo).
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Doutor em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado pelo mesmo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas.