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Crítica

Um ato de profanação ronda o poder

28.3.2014  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Cacá Bernardes

No programa do espetáculo Abnegação, o espectador pode ler um trecho de Elogio à profanação, um artigo do filósofo Giorgio Agambem que critica a análise etimológica da palavra religião como termo derivado de religare e, consequentemente, com o sentido de ligação, união, elo. Para ele religião deriva de relegere, cujo campo semântico abarca eleger, escolher e, portanto, tem significado oposto: tornar sagrado é separar (o divino) da esfera do humano. Assim, enquanto o rito religioso reforça a distinção entre planos, o ato de profanação é aquele que ignora tal separação ao fazer uso particular e utilitário de um objeto de culto que, por acordo cultural de uma coletividade, estaria reservado apenas ao uso ritualizado em campo sagrado.

O artigo não está no programa por acaso. Nas comunidades ocidentais de organização republicana e democrática, espera-se de homens e mulheres eleitos para cargos públicos o cumprimento do rito político de respeito à separação entre as esferas particular e pública da vida comunitária. Ações como a administração de bens coletivos e a organização das regras de convívio social dizem respeito à esfera pública. Quando as ações dos representantes eleitos são impulsionadas por interesses estritamente privados, seja de indivíduos ou grupos, profanam a Política.

Profanação é elemento fundamental na construção da poética de Abnegação. É a certeza da existência de um ato profanador que instaura a tensão entre os personagens desde a primeira cena e, como um fantasma, irá pairar sobre eles todo o tempo. A consciência de uma fronteira ética transposta assombra os personagens, atravessa cada um de seus gestos e os diferencia de integrantes de uma quadrilha de ladrões comuns. Todo o espetáculo gira em torno do peso simbólico e real – há pessoas sofrendo as consequências na carne – do movimento de profanação do rito político e das tentativas de amenizar estragos e/ou apagar rastros.

A dramaturgia de Alexandre Dal Farra, que também assina a direção em parceria com Clayton Mariano, não se estrutura como fábula, mas sim como configuração de situações. A primeira delas é uma reunião convocada pela necessidade de resolver um problema grave que os envolvidos, quatro homens e uma mulher, tratam como “o acidente”. Os diálogos são cheios de subentendidos, desvios, linhas de fuga. Há poucas pistas de quem são aquelas pessoas, porém suficientes para que o espectador deduza estar diante de um grupo com poder político e ainda que o tal “acidente” pode afetar a vida de muitos. Nos diálogos cheios de subterfúgios é possível ouvir “Partido” quatro vezes, “sindicato” e “legenda” aparecem apenas uma vez cada assim como “empreiteiras”.

Cena de ‘Abnegação’ em apartamento asséptico

Mais do que estimular o espectador a preencher espaços vazios, o que poderia resultar em mero maneirismo formal, a dramaturgia porosa de Alexandre Dal Farra produz o efeito de intensificar a atmosfera de ocultamento delituoso. Porém, se o elaborado trabalho de indeterminação textual é talvez a mais evidente qualidade de Abnegação, não é o único. A carga sugestiva da dramaturgia é potencializada pela encenação e pelas atuações que sustentam e dão densidade a silêncios e trocas de olhares enriquecendo para o espectador a produção de sentido sobre o não dito e trazendo à tona o que está recalcado nos discursos.

Em criações de grupo sempre é difícil falar de autorias. Mais vale ressaltar a existência de alguns procedimentos que convergem para potencializar a contundência crítica do espetáculo. Um deles está na presença da chamada quarta parede, o código teatral que torna invisível o público para os atores/personagens. Sua manutenção contraria a vocação do Tablado de Arruar, cuja trajetória é reconhecida pelo teatro de rua que raramente dispensa a triangulação com o espectador, e vai de encontro ainda ao cânone de uma parcela significativa do teatro de denúncia política que considera a quebra da quarta parede fundamental para provocar distanciamento crítico. Em Abnegação, no entanto, sua permanência é relevante para reforçar o ilícito do jogo, a falta de transparência e o compartilhamento na tomada de decisão que afeta a muitos – “todo o país, talvez o mundo”, diz um personagem –, mas será resolvida em âmbito privado. Por outro lado, nas situações que se seguem à reunião, todas situadas em locais privados como salas de estar de apartamentos e o ambiente exclusivo de um restaurante de luxo, o efeito de distanciamento é literalmente trazido à cena, uma vez que tais espaços são instaurados sobre plataformas móveis deslocadas por meio de traquitanas operadas pelos próprios atores.

Dos sapatos bicolores ao modo como se consomem drogas e bebidas, da sordidez de alguns diálogos ao gesto selvagem no trato com o alimento e com o corpo feminino, muitos são os elementos, ora sutis, ora evidentes, porém cuidadosamente postos em cena para remeter o imaginário do espectador à vasta filmografia sobre gangues, desde clássicos envolvendo mafiosos italianos à violência gratuita retratada por uma parcela do cinema contemporâneo.

Ressalte-se ainda o procedimento de tornar os ambientes cada vez mais limpos, assépticos e organizados na mesma proporção em que a sujeira dos atos escusos claramente se amplia. A ausência de sobrenomes – os personagens se tratam apenas como José, Paulo, Jonas, Celso, Flávia – merece ser observada como a falta que acrescenta sentido, pois não apenas o tratamento íntimo se torna signo de longeva intimidade como por serem nomes genéricos permitem ao espectador associações com referentes reais na política brasileira.

Estados alterados e pouco republicanosSem créditos

Estados alterados e pouco republicanos

Não seria justo encerrar um comentário sobre o espetáculo sem falar dos atuadores. O interesse que os personagens despertam deve muito ao minucioso trabalho de construção dos atores para imprimir vida às figuras, escapando das tipificações e estereótipos, fazendo-nos acreditar estarmos diante de seres humanos com suas contradições, dores, hesitações, memórias, violências. O trabalho de interiorização que altera gestualidade, atitude corporal, timbre da voz e contribui para reter a atenção. Não apenas nas palavras, mas também no corpo dos atuadores é possível perceber, por exemplo, os diferentes graus da sordidez já impregnada nos personagens.

É no retesamento dos músculos e no modo de segurar papeis comprometedores que o ator Vitor Vieira, na primeira situação, faz-nos ver no seu personagem Celso alguém que hesita, talvez na vã tentativa de, quem sabe, salvar algum fragmento (do contrato social?) da destruição causada pelo tal “acidente”. Vinícius Meloni torna visível o caos interno de Jonas por meio de uma partitura gestual elaborada ao extremo da saturação, enquanto no extremo oposto Carlos Morelli faz da lentidão de movimentos signo da liderança e rudeza de Paulo aparentemente o mais calejado no risco do delito. André Capuano sabe fazer do cinismo o principal traço de José, sem tentar criticá-lo, deixando essa função ao espectador, enquanto Alexandra Tavares aposta numa neutralidade inicial para ir revelando aos poucos as múltiplas facetas de Flávia, a única mulher do grupo.

Há um intenso e generoso trabalho de todos os criadores de Abnegação para estimular a parceria do público na produção de sentido. O silêncio atento da plateia, na apresentação acompanhada, e a lotação esgotada nas semanas seguintes sinalizam que a empreitada vem sendo bem-sucedida.

.:. Leia a crítica de Valmir Santos sobre Abnegação, aqui.

Ficha técnica:
Texto: Alexandre Dal Farra
Direção: Clayton Mariano e Alexandre Dal Farra
Com: Alexandra Tavares, André Capuano, Carlos Morelli, Vinícius Meloni e Vitor Vieira.
Direção de arte: Eduardo Climachauska
Assistente de direção: Ligia Oliveira
Preparação corporal: Lu Favoreto
Provocadora: Cibelo Forjaz
Figurino: Melina Schleder
Trilha sonora: Alexandre Dal Farra
Iluminação: Francisco Turbiani
Assistente de iluminação: Marcela Katzin
Direção de produção: Carla Estefan
Assistente de produção: Ariane Cuminale
Assessoria de imprensa: Arteplural Comunicação. Fernanda Teixeira e Adriana Balsanelli
Foto divulgação: Cacá Bernardes
Desenho gráfico: Vitor Vieira

Serviço:
Onde: Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, São Paulo, tel. 11 3397-4002).
Quando: Sexta e sábado, às 20h30; domingo, às 19h30. Até 30/3.
Quanto: R$ 10 (a bilheteria abre duas horas antes do início do espetáculo).

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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