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Crítica

A falha enquanto linguagem

28.3.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Cacá Bernardes

Em Abnegação, os atos de fala são privados, mas incidem frontalmente na vida pública. Fala-se muito e grosso nesse circuito fechado do negócio da política partidária encruada no poder. No entanto, tudo que esses sujeitos botam da boca para fora soa espasmódico. A interjeição “opa” é recorrente nesses enunciados tensos e quebradiços. A dramaturgia de Alexandre Dal Farra tem suas potencialidades multiplicadas quando o espectador, no caso, dá menos importância ao expressado verbalmente e deixa-se pautar pelo inaudito. A falha como linguagem projeta-se enquanto realidade da cena. Com ela, afloram o caráter de quatro homens e uma mulher que corrompem a própria palavra em sua ambição desmedida. Os cochichos ao pé do ouvido são reveladores do conluio.

A obra do Tablado de Arruar situa como pano de fundo as sombras do presente. No momento em que o Brasil anseia pela narrativa do trauma do ditadura militar, travessia de meio século de golpe, é pertinente notar que os políticos (e empresários, juízes, jornalistas, forças armadas, polícias, mercadores da fé e outros) acumulam traços de autoritarismo e truculência em discursos e ações dissimuladas de estado democrático de direito. Ou, por outra, estão elencadas as razões do cinismo, da delinquência, da violência e do narcisismo como atributos escancarados e vigentes na sociedade que aí está.

Apesar da permeabilidade do noticiário, a peça não cai no reducionismo de malhar genericamente os políticos à maneira das grandes produções de comédias que insinuam indignação cívica, reforçam estereótipos e despolitizam o cidadão. As alusões ao Partido dos Trabalhadores, ao assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, e ao julgamento da ação penal 470, o caso mensalão, resultam indiretas, como nos personagens que atendem por Celso, Paulo e José. Estes dão margem para pensar em como assassinatos e acordos de caixa dois podem levar a óbito ou para trás das grades (Paulo César Faria no Collorgate, José Dirceu e outros mencionados no mensalão).

Predominam os códigos da performatividade. Caminho de rigor e de liberdade para destilar questões caras à pólis: a corrupção sistêmica nesta montagem, o pensamento obscurantista em Mateus 10, trabalho anterior do grupo.

As atuações estendem ao limite. O “‘homo politicus” é visceral na iminência do abismo. Voraz adicto na droga como no cargo. Seres de posses. O elenco enfrenta o imperativo do descontrole sem exceder o que a reação física já prenuncia: o olhar perplexo, a voz colérica, a alma estrebuchada.

Nesse turbilhão, o silêncio distensiona algumas passagens e move o público a encaixar as informações subliminares em torno de um “acidente” que pode colocar as cabeças a prêmio. A trama, se é que deve ser assim designada, sugere a suspeição sobre pacto, traição e crime. Mas a camada policial jamais prospera como tal.

Cena de ‘Abnegação’, do grupo Tablado de Arruar

A estratégia da subtração no texto coaduna as escolhas da encenação assinada por Clayton Mariano e Dal Farra. Uma vez que nem tudo que se fala é o que se está a dizer, os diretores dão a ver a forma global em que o espetáculo é assentado.

O teatro da revelação, aqui, estrutura-se principalmente na dilatação espacial da cena e seu equivalente dramatúrgico em não ser/estar refém de um tema. A concepção polissêmica tem na direção de arte de Eduardo Climachauska um componente cirúrgico. Platôs móveis apartam ou juntam nichos que materializam as mudanças temporais e espaciais. A área diante da plateia vira um corredor, vaza à esquerda e à direita para o deslizamento dos personagens e das situações extremas em que são atravessados.

Ao delimitar essa pista, seu mecanismo de funcionamento braçal à base da manivela, o espetáculo torna a percepção mais concreta independente das inserções fantasmagóricas ou fantásticas descoladas da associação elementar com polarizações político-ideológicas. O vácuo ou a retórica versam sobre a natureza de todas as coisas implicadas. Não há deus ex-machina. Nem superação. A crise de valores é de outra monta. A ética sucumbe e não aprova a emoção.

.:. Leia a crítica de Beth Néspoli sobre Abnegação, aqui.

Ficha técnica:
Texto: Alexandre Dal Farra
Direção: Clayton Mariano e Alexandre Dal Farra
Com: Alexandra Tavares, André Capuano, Carlos Morelli, Vinícius Meloni e Vitor Vieira.
Direção de arte: Eduardo Climachauska
Assistente de direção: Ligia Oliveira
Preparação corporal: Lu Favoreto
Provocadora: Cibelo Forjaz
Figurino: Melina Schleder
Trilha sonora: Alexandre Dal Farra
Iluminação: Francisco Turbiani
Assistente de iluminação: Marcela Katzin
Direção de produção: Carla Estefan
Assistente de produção: Ariane Cuminale
Assessoria de imprensa: Arteplural Comunicação. Fernanda Teixeira e Adriana Balsanelli
Foto divulgação: Cacá Bernardes
Desenho gráfico: Vitor Vieira

Serviço:
Onde: Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, São Paulo, tel. 11 3397-4002).
Quando: Sexta e sábado, às 20h30; domingo, às 19h30. Até 30/3.
Quanto: R$ 10 (a bilheteria abre duas horas antes do início do espetáculo).

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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