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Entrevista

O drama segundo Matéi Visniec e Letizia Russo

24.3.2014  |  por Helena Carnieri

Foto de capa: Leo Aversa

Quatro peças de origem europeia revelam neste Festival de Teatro facetas complementares da escrita do velho mundo. De um lado, o romeno Matéi Visniec, de 58 anos, nutriu sua poesia no autoritarismo do Leste Europeu, e hoje lida com sutilezas da manipulação ideológica em bastiões da liberdade, como a França, onde mora desde os anos 1980. De outro, a italiana Letizia Russo, nascida nos anos 80, representa uma juventude que poderia folgar com a democracia – mesmo com todos os seus defeitos –, mas prefere expressar as inquietações da alma.

“Me considero autor de um teatro engajado, que não faz parte da indústria do divertimento e busca acordar as consciências dormentes”, definiu Visniec quando esteve no Brasil, no ano passado. Para despertar mentes, ele procura alegorias que denunciem o atual esvaziamento de conteúdo, como em Espelho para cegos, que tem sessões na quarta e na quinta-feira. Tal qual na ditadura brasileira, em que espetáculos como O rei da vela driblaram a censura com o uso de ironia fina, aqui ele recorre a metáforas como borboletas carnívoras e caracóis pestilentos para tratar da sociedade de consumo.

Também na quarta e na quinta-feira, o diretor Gilberto Gawronski apresenta no Guairinha 2 x Matei, referência à junção de duas peças curtas do autor romeno. O último Godot foi escrita por ele pouco antes de deixar seu país como uma homenagem a Samuel Beckett. Como no célebre Esperando Godot, há um personagem que nunca aparece. “O importante é que o teatro nessa peça renasce na rua. Eu acredito na força do teatro, porque é uma maneira de convidar o público a uma reflexão coletiva, com frequência pelo compartilhamento de uma emoção”, escreveu Visniec à Gazeta do Povo, por e-mail.

A segunda metade de 2 x Matei traz O rei, o rato e o bufão do rei, que o autor considera uma fábula filosófica. Nela, a população de uma cidade tranca o rei num calabouço, mas o lixo acumulado atrai ratos que obrigam todos a se lançar ao mar. “Na Idade Média, os reis tinham bufões que encarnavam o contrapoder. Só eles tinham direito de dizer certas verdades e até debochar do rei e contradizê-lo. Mas a história evoluiu mal, porque aos poucos os bufões é que tomaram o poder…”, diz o dramaturgo.

Relacionamentos

Já para Letizia, as relações de poder que mais importam são aquelas transcorridas em meio aos relacionamentos, como em seu Tumba de cães, que o curitibano Marino Jr. apresenta na mostra principal deste ano na sexta-feira e no sábado. Na peça, uma família enfrenta seus conflitos internos enquanto espera uma guerra acabar lá fora.

“Minhas perguntas principais nessa peça tiveram a ver com os mecanismos que determinam alguns comportamentos: não conseguir agir, transformar o rancor em adoração e a adoração em ódio, fazer experiência de partes obscuras de si próprio e ter de lidar com um mundo cotidiano que deixou de existir”, contou à reportagem. “O público irá identificar na montagem a dramaturgia italiana de hoje. É um apanhado do teatro europeu”, promete o diretor Marino Jr.

Letizia, que morou em Portugal, estará em Curitiba de 27 de março a 1º de abril para uma oficina ligada ao Núcleo de Dramaturgia do Sesi.

Leia a seguir trechos das entrevistas concedidas pelos autores à Gazeta do Povo, por e-mail.

>> Letizia Russo escreve para criar “novos universos”

A italiana Letizia Russo, de ‘Tumba de cães’

Que questões a inquietavam quando escreveu Tumba de cães?
Tinha entre 19 e 20 anos. Nessa altura eu tinha a urgência de tratar temas ligados às questões familiares: quais tipos de relações de poder se constroem dentro das casas, e qual papel o silêncio, os segredos, desempenham na vida das pessoas quando vivem com outros seres humanos com quem compartilham o sangue. Em segundo lugar, queria contar uma história de guerra, em que ela fosse presente e ausente ao mesmo tempo: longe, porque combatida em lugares longínquos, e perto porque capaz de mudar profundamente o dia a dia dos civis, de pô-los em situações que desvelam a sua natureza complexa e profunda.

E hoje, que temas a tocam?
Acho que enfrentei vários temas nos textos mais recentes, como o esforço trágico que as pessoas às vezes fazem para mudar sua própria existência, ou as relações entre grupos de adolescentes, ou os problemas de coabitação entre grupos humanos com diferentes origens geográficas e culturais, ou, como no caso do texto que estou escrevendo neste período, a diferença entre culpa e responsabilidade. Mas, no fundo, para além dos temas, aquilo que todas as vezes faz com que eu comece a escrever uma história é a possibilidade de criar um universo, e deixar com que os personagens, através da própria história, construam um mundo dentro e fora de si.

Que dramaturgos na Europa e no Brasil você admira?
Se tivesse de responder com apenas um nome do teatro contemporâneo, diria Antonio Tarantino, dramaturgo italiano, pela lucidez do seu olhar e ao mesmo tempo a piedade, comicidade e tragédia dos seus textos. Não conheço tão bem a dramaturgia brasileira, mas espero que minha estada em Curitiba seja também a ocasião para remediar essa falta.

>> Matéi Visniec nunca abandonou tema da liberdade

O romeno Matéi Visniec, de ‘O último Godot’

Como a situação política da Romênia e sua experiência na França influenciam sua dramaturgia?
Estou na França desde 1987 e os países do Leste Europeu obtiveram “liberdade” em 1989, mas me preocupo ainda com o assunto liberdade, ou a relação entre as pessoas e a liberdade. Em meu país, como toda minha geração de escritores, eu havia buscado liberdade na literatura. Por meio da poesia, da metáfora, das alegorias e alusões, enfim, por meio de uma literatura codificada, podíamos denunciar o lado grotesco da ditadura e a lavagem cerebral operada pela ideologia.

O que não acontece na França…
É claro que, na França, pude aproveitar outra forma de liberdade, aquela “durável”, que as grandes democracias souberam construir. Mas percebi que é mais fácil denunciar o mal num país totalitário, porque ele é mais visível. É o único conforto do artista e do intelectual numa ditadura: denunciar o culpado. Mas, na França, é preciso um trabalho de reflexão mais profundo. O artista precisa ser mais sutil para reconhecer formas de manipulação da informação, pela publicidade, a moda, a indústria do entretenimento, a sociedade de consumo em geral, os slogans do comércio, a linguagem da mídia e da informática… muitas vezes descobrimos que, nesses países, a lavagem cerebral se esconde por trás de uma grande tela de liberdade.

Quem são os dramaturgo que você admira?
Ainda gosto dos autores dos anos 50 e 60: Ionesco, Beckett, Arrabal… mas também Harold Pinter e Sam Shepard. Ou aqueles que descobri na França, como Valère Novarina, Wajdi Mouawad e Rémi de Vos. Mas também me nutro de romances. Gosto muito de Jonathan Coe e descobri recentemente Haruki Murakami.

.:. Publicado originalmente na Gazeta do Povo, Caderno G, p. 8, em 23/3/2014.

.:. Leia aqui as publicações da coleção Matéi Visniec pela editora É Realizações.

Serviço:

2 x Matei
Onde: Guairinha (Rua XV de Novembro, 971, Centro, Curitiba, tel. 41 3304-7982)
Quando: 26 e 27/3

Espelho para cegos
Onde: Teatro da Reitoria (Rua XV de Novembro, 1.299, Centro, Curitiba, tel. 41 3360-5066
Quando: 26 e 27/3

Tumba de Cães
Onde: Guairinha.
Quando: 28 e 29/3

23º Festival de Teatro de Curitiba
Quando: abre para convidados amanhã. Programação de 26/3 a 6/4
Quanto? R$ 60. Mostra paralela/Fringe: de entrada franca a R$ 60. Mais informações, aqui.

Jornalista formada pela Universidade Federal do Paraná, instituição onde cursa o mestrado em estudos literários, com uma pesquisa sobre A dama do mar de Robert Wilson. Cobre as artes cênicas para a Gazeta do Povo, de Curitiba, há três anos. No mesmo jornal, já atuou nas editorias de economia e internacional.

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