Crítica
10.4.2014 | por Valmir Santos
Foto de capa: Lina Sumizono - Clix/FTC
O sensacionalismo das tardes televisivas é pouco preocupado com a verdade. Mesmo quando apela ao tom documental de uma perseguição policial, ao vivo, o apresentador frequentemente enxerga mais do que o câmara e o piloto do helicóptero ao relatar os fatos do estúdio. A natureza espetacular ruge. Em casa, o telespectador interpreta o que vê ou escuta. Ou simplesmente se abstém, deixa-se levar. Esse prólogo desponta por causa do espetáculo Verbo, em que um aparelho de televisão catalisa o cenário de uma sala de estar, ora desligado ora em canal fora do ar, com seus chuviscos em cascata.
A atuadora Michelle Gonçalves e o dramaturgo e diretor Cássio Pires, leia-se núcleo paulistano Isso Não É um Grupo, chafurdam na lama da crônica policial para dela saírem com um projeto cênico claro em suas motivações e resoluções quanto à manipulação da realidade, a vã tentativa de representá-la à fórceps, como nos programas televisivos ou em outros contextos cotidianos. A obra ainda pede ajustes no estado de presença fronteiriço que arma, como se viu na estreia durante o Fringe de Curitiba.
A cobertura dita jornalística de uma reconstituição criminal costuma ser o ápice dessa tipo de armação. Pires abduz da arena midiática a figura da assassina passional confessa e lhe dá voz e ação absolutas para expor como tudo aconteceu. Ela não depõe, expõe. O discurso, a descrição e o rastilho de fábula constituem o fermento que vinga o pão desse trabalho: o princípio bíblico que arbitra o poder da palavra é matizado na cena. O teatro, arte em que falar e agir são como que inequívocas, abre suas entranhas aos elementos da performance com os quais Gonçalves desfila à vontade.
Quando o público mal se dá conta, é enredado pelo ponto de vista da mulher de um famoso (claro!) crime ocorrido em São Paulo em 2012 e sobre o qual não vale detalhar porque prejudicaria o efeito surpresa estratégico. O domínio total da narradora chega ao ponto de manipular um segundo ator (João Gomes) como se fosse ele um boneco. Em vez do manequim representativo da vítima, como nas perícias, a encenação prefere a representação amorfa em carne e osso.
Sem créditos Gonçalves é a figura absoluta na condução de ‘Verbo’
Além do enquadramento da sala familiar, Verbo expande a percepção da audiência para outros cômodos da casa, o espaço cênico invisível. O bebê/boneca que a protagonista aparece segurando no início agora está dormindo no berço, lá dentro. O telefone, quando toca, soa lá de dentro. O marido que descobre traí-la e tampouco lhe dá ouvidos – ao rememorar os conflitos que culminaram em sua execução, pois a unidade temporal vai pelos ares –, também pode estar num outro cômodo ou mesmo estirado no sofá, assistindo ao jogo de futebol com o controle-remoto em pulso.
A dissonância do espetáculo recai na voz monocórdia de Gonçalves. Ou, especificando, na articulação insossa que contrasta o talento da atriz. Se a deformação está implícita nos demais elementos da obra, porque reservar o tom elementar à voz? Contrasta ainda o raciocínio esperto dessa figura determinada na composição territorial, engenhosa na hora de dar fim ao corpo e carismática, creiam, em seu ato único e distanciado de matar e se emancipar com certa discrição teatral, para regozijo da linguagem viva.
Ficha técnica:
Texto e direção: Cássio Pires
Com: Michelle Gonçalves e João Gomes
Desenho de som: Rui Barossi
Direção de arte: Nina Knutson
Iluminação: Jorge Pezzolo
Operação de luz: Rodrigo Oliveira
Realização: Isso Não É um Grupo
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Doutor em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado pelo mesmo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas.