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Reportagem

Mitos trágicos à luz da linguagem

26.4.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Victor Hugo Cecatto

Ao discorrer sobre uma de suas peças mais encenadas no mundo, Medeamaterial, recriação da obra de Eurípides sobre a esposa sanguinária e vingativa que personificaria as forças cegas e irracionais da natureza, o dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995) lembra a percepção da mulher na polis grega por volta de 25 séculos atrás: ela era referendada apenas pela condição de cortesã ou de mãe. Não por acaso, os mitos trágicos dizem muito aos dias de hoje. Müller associa as experiências coletivas da antiguidade ao “esperanto”, a linguagem universal acessada a qualquer tempo e lugar.

A arte e o pensamento desse teatrólogo são basilares para o ator e diretor Guilherme Leme no espetáculo Trágica.3, que conjuga heroínas à luz da contemporaneidade: Medeia, a que mata; Electra, a que manda matar; e Antígona, a que se mata.

Leme nutre relação longeva com Müller. Dividiu o palco com Vera Holtz e os atores do Bando de Teatro Olodum, de Salvador, na montagem de Medeamaterial (1993) por Marcio Meirelles. Contracenou com Beth Goulart em Quartett (2006). E agora volta a ser inspirado pelo artista que dirigiu teatros de referência na Alemanha dividida e depois unificada, como o Berliner Ensemble, cofundado por Bertolt Brecht, e o Volksbühne, voltado às criações experimentais.

A abordagem do teatro de pesquisa é justamente a que move Leme no novo trabalho. Num primeiro momento, focou em um dos três textos curtos que compõem Medeamaterial, o monólogo da personagem que lhe dá título. Queria aproximar-se do mito com a mesma verticalidade que o fez na direção de RockAntygona (2010), livre recriação do dramaturgo Caio de Andrade a partir da obra de Sófocles. Aos poucos, porém, sentiu necessidade de incorporar outros ícones tão potentes quanto aquela que teria transmutado amor em ódio mortal, nas palavras do pesquisador da cultura grega Junito de Souza Brandão.

O processo criativo de Trágica.3 desemboca em três performances independentes e apresentadas na mesma sessão. Elas superpõem recursos das artes visuais, da música e da videoarte. “O único elo comum é o grito trágico”, diz Leme.

Miwa (Electra), Denise (Medeia) e Leticia (Antígona)Victor Hugo Cecatto

Miwa (Electra), Denise (Medeia) e Leticia (Antígona)

Em Medeamaterial, de Müller, Denise Del Vecchio fala ao microfone, sob interferências de um vídeo projetado ao fundo, captado nas ruas paulistanas por Leme e Victor Hugo Cecatto. O texto sintético aborda a traição da heroína a seu povo e aos consanguíneos (mata o irmão e lança seus pedaços ao mar, possibilitando a fuga de Jasão com o velocino de ouro). Jasão, por sua vez, é convocado por tê-la abandonado casando com a filha de Creonte, Rei de Corinto.

Antygona.2, do paulista Caio de Andrade, é mais vertical em seus intentos performativos. Letícia Sabatella canta e toca ao piano enquanto Fernando Alves Pinto domina o trompete e extrai som até de serrote. A experimentação em torno dessa paisagem sonora funde ainda a base eletrônica de Marcello H. A dramaturgia sintetiza o comportamento humano frente ao poder e à intolerância por meio de recorte poético sobre o mito, evocando a obra do artista plástico e iluminador americano James Turrel e registro variado de cânticos e lamentos musicais.

Electra.3, do amazonense Francisco Carlos, é definido por Leme como um exercício de atriz que cabe a Miwa Yanagizawa. “Um exercício sensorial e de resistência corporal”, segundo o diretor. Compreende três visões da vingança cultivada por Electra, guardiã da façanha executada pelo irmão, Orestes, este que elimina a mãe, Clitemnestra, assassina confessa do marido soberano.

Em vez de colocar em relevo aspectos políticos e históricos de cada um dos mitos visitados ou revisitados, Guilherme Leme opta pelo campo da linguagem, a seu ver também uma escolha política.

“A questão política está contida na proposta de reunir as três tragédias numa montagem”, pondera, observando que o enfrentamento das leis do Estado e das estruturas patriarcais já está correlacionado à mitologia eleita. No verbete para “tragédia” em Dicionário de Teatro (1996), o francês Patrice Pavis pontua: “A história trágica imita as ações humanas colocadas sob o signo do sofrimento das personagens e da piedade até o momento do reconhecimento, da conscientização da fonte do mal”.

“A tragédia não é maniqueísta, não especula sobre bem e mal. Ela é, e ponto”, diz Leme. Quanto ao elenco protagonista, ele já trabalhou com Denise Del Vecchio no seriado Malhação (Rede Globo). Miwa codirigiu dois trabalhos com ele, O laranja azul (2009), do britânico Joe Penhall, e RockAntygona, na qual também chegou a atuar. Já com Letícia Sabatella é a primeira convivência artística e se diz “encantado” pela reciprocidade nos ensaios.

Aos 53 anos, Leme soma 38 de dedicação ao teatro, se considerada a fase amadora – começou aos 15. Ou três décadas de trajetória profissional como ator. Neste ano, arredonda dez anos de lida com o ofício da direção, o que afirma ter ressignificado profundamente sua paixão pelas artes cênicas. Como que reativou o “artista plástico frustrado” que mora dentro de si, frequentador de curso de desenho e pintura no Parque Lage (RJ) durante cinco anos, na virada de milênio, com direito a exposições individuais no circuito carioca e afins.

“As artes plásticas são importantes para todo e qualquer artista. É, entre as artes, a que mais se questiona, se renova, se instiga, se provoca. Tenho grande admiração pela arte contemporânea, suas pesquisas, seus estudos. Por outro lado, o teatro é a arte que acolhe todas as demais”, afirma.

.:. Publicado originalmente no site Ideias Online, projeto da Texto Intermídia para o CCBB São Paulo, sob coordenação da jornalista Beatriz Carolina Gonçalves.

Serviço:
Trágica.3
Quando: Sábado e segunda-feira, às 20h; domingo, às 19h. Até 7/7.
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB SP (Rua Álvares Penteado, 112, centro, próximo às estações Sé e São Bento do Metrô, tel. 11 3113-3651)
Quanto: R$ 10.

Ficha Técnica:
Textos: Medeia, de Heiner Müller; Anttygona.2, de Caio de Andrade; e Electra.3, de Francisco Carlos
Concepção e direção: Guilherme Leme
Com: Denise Del Vecchio, Letícia Sabatella, Miwa Yanagizawa, Fernando Alves Pinto e Marcello H
Cenografia: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Figurino: Glória Coelho
Trilha sonora original: Fernando Alves Pinto, Leticia Sabatella e Marcello H
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Tradução do texto Medeamaterial (Heiner Müller): Monique Gardenberg e Guilherme Leme
Vídeo Medeia: Gustavo Leme e Guilherme Leme (Delicatessen Filmes)
Coordenação de comunicação: Daniela Cantagalli
Programação visual e fotos: Victor Hugo Cecatto
Assessoria de imprensa: Adriana Monteiro
Produção executiva: Sílvia Rezende
Direção de produção: Sérgio Saboya

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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