Reportagem
24.7.2014 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Lucie Jansch
Havia sempre a promessa no ar. Mas eu me dizia: ‘Tenho que esperar até que ele se decida e me proponha’, diverte-se Mikhail Baryshnikov, ajoelhando-se e imitando um noivo galante para falar de sua primeira parceria com o diretor norte-americano Robert Wilson.
Ao lado do ator Willem Dafoe, Baryshnikov protagoniza A velha (The old woman), espetáculo que estreia hoje, 24, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, já com ingressos esgotados, e desembarca na sequência na Cidade das Artes, no Rio, para uma curta temporada.
Inspirada na novela homônima de Daniil Kharms, a peça pouco ou nada tem de narrativa. E, segundo o próprio encenador, deve resultar inútil a busca por um sentido lógico para a história de um homem que passa a ser perseguido pela imagem de uma velha senhora.
No palco, Baryshnikov e Dafoe precisam se desdobrar para viver dezenas de personagens. Mas, como costuma acontecer nas obras de Wilson, interpretar papéis não quer dizer representar tipos psicológicos. Mais importante são os aspectos formais: a luz, o som, as imagens criadas. E, especificamente nessa obra, a dualidade. Se um dos dois falar mais suave, o outro será enfático. Se alguém arriscar um movimento brando, será acompanhado pelo colega com manobras mais bruscas. Como em um jogo de opostos.
Para construir tal relação, os dois atores, que nunca haviam tido a oportunidade de atuar juntos, desenvolveram uma fina sintonia. “Eu gosto de trabalhar com ele, nós nos entendemos muito bem, mas, mesmo se isso não tivesse acontecido, não haveria como ser de outra maneira”, argumenta Dafoe. “Todo o espetáculo está organizado em cima da dualidade, como se fossem dois músicos tocando juntos, dependentes um do outro.”
A sinergia da dupla aparece sempre em destaque nas críticas que foram publicadas sobre o espetáculo, já encenado em Paris, Milão e Nova York. Para o New York Times, a química entre eles lembra a que se pode ver entre pares clássicos, como o Gordo e o Magro ou Fred Astaire e Ginger Rogers.
Na encenação, os intérpretes ganharam a aparência de palhaços. O ritmo acelerado lembra um vaudeville. E a obra chegou a ser descrita como “comédia visceral”. Só que existe mais por trás do riso. A ficção de Kharms carrega laivos de Samuel Beckett, Ionesco e Dostoiévski. A ideia da morte é onipresente. “O que Wilson deixa claro é que não devemos criar algo para que o público ache engraçado ou se emocione. Essas decisões cabem à plateia”, lembra Dafoe.
Baryshnikov está acostumado ao trânsito entre os lugares de bailarino e ator. Tão logo começou a dançar, aos 9 anos, passou também a acompanhar o que acontecia nos teatros de prosa da Rússia. Já morando em Nova York, em 1989, foi chamado por Roman Polanski para interpretar uma versão de A metamorfose, de Kafka. “As coisas hoje não são muito divididas para mim. Me vejo mais como um performer”, observa ele.
Verdade que grande parte de A velha se baseia nos movimentos e no trabalho físico dos atores. E, de acordo com ‘Misha’, Wilson é também um exímio dançarino. “Faz uns movimentos abruptos, idiossincráticos.”
Entretanto, nem esses pontos de contato nem sua experiência de quase 60 anos no palco, o haviam preparado para o que iria encontrar durante o processo de criação do espetáculo.
“Eu me vi fazendo coisas inimagináveis”, confessa o dançarino. “Todo mundo traz uma bagagem, experiências que vão ficando acumuladas. Mas daí ele pede para imitar o som de um violino, para se equilibrar em um pé só, para cantar por 30 segundos – o que para mim já é suficientemente assustador. É como se ele jogasse um anzol dentro de mim e, de repente, pescasse aquilo que tenho de mais profundo. É um lugar desconfortável.”
Conforto, aliás, parece ser um termo banido do vocabulário dos dois intérpretes. “Na verdade, me sinto muito desconfortável quando estou confortável”, graceja Dafoe, que encara pela segunda vez a experiência de ser dirigido por Bob Wilson. Antes, ele havia integrado o elenco de A vida e a morte de Marina Abramovic, espetáculo baseado na biografia da polêmica artista visual, que também aparecia em cena.
Conhecido por suas atuações em obras tão díspares quanto o blockbuster Homem-Aranha ou o controverso Ninfomaníaca, de Lars von Trier, Dafoe faz questão de manter um espaço na agenda para o teatro.
Para ele, que começou na vanguardista companhia Wooster Group, a curiosidade pelo que ainda não foi feito ou experimentado é o principal motor. “Estou sempre em busca de situações desconhecidas, que me forcem a ver o que é essencial. Por isso, busco formas diferentes. Porque, então, você nunca tem a chance de se acomodar. É forçado sempre a investigar a natureza do que você faz, o que significa ser um ator.”
.:. Texto publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C14, em 24/7/2014.
Serviço:
Onde: Teatro Paulo Autran – Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo, tel. 11 3095-9400).
Quando: Quarta a sexta-feira, às 21h; sábado, duas sessões, às 16h e às 21h; domingos, às 18h. De 24/7 a 3/8.
Quanto: R$ 20 a R$ 60 (ingressos esgotados)
Onde: Cidade das Artes – Grande Sala (Avenida das Américas, 5300, Barra da Tijuca, Rio, tel. 21 3325-0102).
Quando: Sexta, às 21h30; sábado, às 21h; domingo, às 18h. Dias 8, 9 e 10/8.
Quanto: R$ 50 a R$ 350.
Ficha técnica:
Direção, cenário, conceito de luz: Robert Wilson
Com: Mikhail Baryshnikov e Willem Dafoe
Texto: Daniil Kharms,
adaptado por Darryl Pinckney
Música: Hal Willner
Figurinos: Jacques Reynaud
Desenho de som: Marco Olivieri.
Iluminação: A.J. Weissbard
Colaboração em cenário: Annick Lavalle-Benny
Produção executiva: Change Performing Arts
(diretores Franco Laera / Elisabetta di Mambro),
em colaboração com Baryshnikov Productions e CRT Centro RicercheTeatrali
Um projeto de Baryshnikov Productions, Change Performing Arts e The Watermill Center Comissionado e coproduzido por Manchester International Festival, Spoleto Festival dei 2Mondi, Théatre de la Ville-Paris/Festival d’Automne à Paris e DeSingel Antwerp
Realização: Sesc São Paulo
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=5EGJXIqWXvc
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.